Tempo - Tutiempo.net

Bullying deixa marcas para a vida toda

Bullying deixa marcas para a vida toda

primeira vez que Fernanda Brzezinski fez uma dieta foi aos seis anos. A avó cobrava dela um corpo dentro dos padrões. E a menina absorvia toda aquela cobrança. Na escola, as piadas dos colegas também a estimulavam a perder peso. “Eu ainda era peluda, então começaram a dizer que eu parecia uma foca quando ria”, relembra. Não comprava roupas justas ou do tamanho certo; preferia camisetas e calças largas, na tentativa de esconder o corpo.

Na adolescência, quando frequentava a casa de uma amiga bem magra, na hora do lanche da tarde ela era proibida de comer. Fernanda só perdeu peso perto dos 30 anos, quando teve seus dois filhos: Felipe, hoje com 14 anos, e Sofia, com 10.

Os filhos passaram pelas mesmas dificuldades que a mãe. No ano passado, Felipe entrou em um papo sobre política no grupo de WhatsApp da sala de aula. Apaixonado pelo assunto, ele e os amigos discordaram de uma colega, que pediu para encerrar a discussão. Ela argumentou que aquela conversa era coisa para adultos e não para adolescentes como eles — como resposta, tomou uma invertida: “Mas idade para beijar na boca você tem, né?”.

A briga não parou ali. Chateada, a garota adicionou amigos mais velhos no grupo para defendê-la. E foi o que fizeram. Só quem continuou na conversa foi Felipe — e ele foi ofendido de todas as formas por causa do peso. “Você vai morrer virgem”, ouviu. Aos prantos, mostrou a mensagem à mãe e perdeu a vontade de ir à escola. Só superou parcialmente o trauma com a ajuda de psicólogos.

Com a irmã, Sofia, a história foi outra. Ela começou a apresentar sintomas fortes de ansiedade — mordia a parte interna da bochecha até sangrar — e a adotar uma postura mais agressiva com todos, inclusive em casa, com os pais. Uma das professoras comentou com a mãe que a menina comia duas vezes durante os intervalos. Só não contou que ela havia se afastado dos amigos e que a única pessoa com quem conversava era a atendente da livraria da escola. Até que um dia Sofia não aguentou mais e pediu desesperadamente para mudar de colégio. Fernanda atendeu, e só depois da mudança se deu conta de que a filha sofria bullying.

É que reconhecer o bullying não é fácil. Em geral, todo mundo percebe que não era uma simples “brincadeira de criança” só quando a história atinge seu desfecho mais trágico — e não faltam casos nos últimos tempos. A Polícia Civil trabalha a hipótese de que o adolescente que atirou nos colegas numa escola em Goiânia, em outubro, foi motivado pelo bullying. Chamado de fedorento, ele teria ganhado um desodorante de presente de um colega dias antes.

Outra história, mais recente, que virou notícia no mundo todo em janeiro, é a da adolescente australiana Ammy “Dolly” Everett, de 14 anos. Ex–garota-propaganda de uma marca de chapéus, a jovem se suicidou depois de constantes ataques virtuais — os pais não disseram o motivo, mas deixaram um convite aos agressores. “Se as pessoas que pensaram que se tratava apenas de piadas e que se sentiam superiores com o bullying constante virem esse post, por favor, venham ao funeral para testemunhar a completa devastação que criaram”, escreveu Tick Everett, pai da garota, no Facebook.

Só tem um detalhe: histórias extremas como essas são exceções. Em geral, os adolescentes sofrem em silêncio — normalmente não tomam atitudes tão drásticas — e, por isso, os casos crescem fora das estatísticas, despercebidos. Ainda assim, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizada em 2015 com mais de 70 mil alunos, um a cada três adolescentes brasileiros já sofreu bullying. Outros 20% admitem praticá-lo.

A maior parte dos agressores e das vítimas têm, em média, 14 anos. É a fase da puberdade, das conquistas amorosas, e quem não se enquadra nos padrões de beleza é quase sempre alvo. Não à toa, de acordo com a pesquisa, os principais motivos das zoeiras são a aparência do corpo e do rosto.

O problema persiste porque pais e professores ainda têm muita dificuldade até em nomear o que é bullying — até porque o termo surgiu e começou a ser estudado com afinco recentemente, em 1999. É definido como o desejo consciente e deliberado de maltratar uma pessoa e colocá-la sob tensão. A origem vem da palavra inglesa “bully”, e remete a valentões, tiranos e brigões. Mas nem todo bullying envolve briga física — as agressões podem ser verbais, como aconteceu com Felipe, ou psicológicas (isolar um colega, como fizeram com Sofia).

“Há pouco tempo, o conceito era rejeitado por não ser bem definido. E hoje é um pouco deturpado, tudo a gente diz que é bullying. ‘Ai, a professora não gostou do meu trabalho, sofro bullying’”, explica a psicoterapeuta Quézia Bombonatto.

É justamente para não transformar tudo em bullying que os pesquisadores definiram critérios para descrever o problema: comportamento agressivo ou propositalmente doloroso ao outro, repetido várias vezes ao longo do tempo e caracterizado por um desequilíbrio de poder entre pessoas. Essas situações envolvem sempre três atores, não apenas um ou dois. Há o agressor, a vítima (mais frágil e, em geral, com baixa confiança e autoestima para se defender) e o público. Sem a plateia para rir ou repassar as piadinhas, nenhuma brincadeira tem vida longa.

Na sua época — e na de seus pais, avós, bisavós — isso já existia, só não era chamado de bullying. Diziam que era brincadeira e não tinha nada demais, afinal, você (ou eles) cresceu saudável e forte. Certo? Não exatamente. Fernanda sabe bem as marcas que o bullying deixou e que o tempo não apagou. “Como eu fui gorda, sempre avisei meus filhos: ou vocês emagrecem ou aceitam que serão chamados de gordos, como eu fui”, conta. “E errei nisso. Não estimulei a autoestima deles.” Mas não é só isso.

Pesquisas recentes mostram ainda que o bullying aumenta os riscos de depressão e transtornos de ansiedade durante a vida toda da vítima, não apenas na infância. Uma coisa, no entanto, é certa: bullying existe (e causa dor às vítimas) desde sempre.

GALILEU

OUTRAS NOTÍCIAS