Tempo - Tutiempo.net

Cerca de 20 mil estudantes assistem às aulas em hospitais, segundo dados do MEC

Pedagogia Hospitalar

Uma sala colorida no andar da pediatria do Instituto Nacional do Câncer (Inca) no Rio é um refúgio entre agulhas e remédios. Quando entram no “consultório” de Rosane Santos e Izabel Oliveira, os pequenos pacientes recebem outro tipo de tratamento: um giro pelo globo terrestre em miniatura, uma tela para pintar, atividades acompanhadas de um cavalo e um dinossauro de brinquedo. A dor? No que depender das professoras, fica dali para fora. A classe hospitalar do Inca existe há 18 anos e atende, por mês, de 30 a 40 crianças e adolescentes internados no local.

Eles fazem parte de uma estatística que vem crescendo nos últimos anos. Um levantamento feito pelo Núcleo de Jornalismo de Dados do GLOBO com base nos números do Censo Escolar mostra que o Rio tem a quarta maior taxa de alunos em hospitais no Brasil, com 94 para cada 100 mil matrículas. O Espírito Santo lidera, com 138 a cada 100 mil matrículas. Os microdados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) revelam que houve uma evolução na taxa de matrículas em hospitais no país entre 2013 e 2017 (veja no gráfico abaixo). No ano passado, elas somavam 20,6 mil, de um total de quase 54 milhões de inscritos em todos os níveis de escolaridade básica — da educação infantil ao ensino médio e técnico, incluindo Educação de Jovens e Adultos (EJA).

ROTINA IMPREVISÍVEL

Mais do que garantir que os pacientes não percam o ano letivo — o atendimento em hospitais funciona em consonância com as secretarias de educação —, as aulas têm um caráter terapêutico. A escola, que costuma ser um peso para os estudantes regulares, em um ambiente hospitalar acaba se tornando um dos raros momentos de diversão.

— A coisa mais legal que fiz no Inca foi ir para a escola. As professoras são ótimas. Na minha escola antiga, se eu derrubava uma borracha no chão, o professor já xingava — conta David Santana, de 9 anos, acrescentando que, quando sair do hospital, a primeira coisa que fará é soltar pipa.

O carinho de David pelas professoras ecoa pelos corredores do quinto andar do Inca. Rosane e Izabel são recebidas calorosamente pelos pacientes e por suas famílias todas as manhãs, quando checam quais alunos estão aptos a comparecer às aulas. Em alguns casos, o atendimento especial é adiado em decorrência do estado de saúde das crianças; em outros, as mesinhas com cores alegres da sala das professoras ficam totalmente ocupadas. A imprevisibilidade da rotina é um elemento com o qual as duas precisam lidar diariamente.

— No hospital, nós nos tornamos a pessoa que vai levar para aquela criança a vida, o mundo, uma alegria, em um espaço onde ela pouco opina. Uma criança dentro de um hospital pode optar pelo quê? Por nada. Ela tem que ser furada, tem que tomar remédio. E aí chega a professora e dá uma escolha: vamos estudar matemática ou português hoje? É a chance de ela continuar estudando, viva, acreditando que tem um futuro — defende Rosane.

Desde 2013 até o ano passado, o número de matriculados que tinham aulas em hospitais saltou de 9.996 para 20.607, enquanto o total de matrículas no Brasil teve uma pequena queda, de pouco mais de 55,4 milhões para 53,9 milhões. Com isso, a taxa de alunos tendo aulas em hospitais no país também aumentou, chegando a 38 para cada 100 mil.

Uma análise mais detalhada dos microdados mostra, no entanto, que esse número não dimensiona com exatidão a parcela de matrículas de alunos que estão internados em decorrência de problemas de saúde. Entre as matrículas há escolas que oferecem cursos técnicos na área da saúde, como enfermagem, que declararam que seus alunos têm aulas nesse tipo de ambiente, o que gera uma distorção. As instruções do Censo da educação básica, entretanto, são claras ao dizer que o atendimento em hospitais é voltado apenas para “os alunos que, de forma temporária ou permanente, estejam impossibilitados de frequentar a escola, devido ao tratamento de saúde em hospital”.

A possibilidade de proporcionar um novo olhar sobre o mundo para os estudantes reduz, mas não é capaz de eliminar os momentos de tristeza presentes na realidade dessas salas. As professoras, diferentemente dos médicos, não são treinadas para lidar com as dores do dia a dia hospitalar.

No caso de Rosane, o vínculo que cria com os alunos já fez com que, no início da carreira, precisasse se afastar após a perda de um deles. Hoje, a terapia é uma ferramenta para transpor com tranquilidade esses momentos. No caso de Izabel, a fé é a aliada principal.

— Tem que ter uma estrutura muito grande, porque vemos uma criança que está bem e quando voltamos na outra semana ela não está. É um desafio pessoal trabalhar em um espaço onde a morte está presente a todo momento — afirma Izabel. — Tem dias em que a gente fica muito mal. Mas há o outro lado, quando você chega e uma criança que está no CTI perguntou por você. Há as crianças que se recuperam e depois nos encontram e dizem que as aulas no hospital foram importantes, porque eles não perderam o ano e a vida escolar.

ALUNA MAIS VELHA TEM 91 ANOS

Maria Trindade contornava a casa dos 87 anos quando arriscou as primeiras letras do seu nome sobre um pedaço de papel. Analfabeta, a ex-empregada doméstica cultivava o sonho de aprender a escrever sua assinatura quando o Abrigo João Paulo II, onde vive em Marituba, no Pará, decidiu implementar aulas no local. Matriculada desde então na classe de alfabetização da unidade, hoje, prestes a completar 92 anos, Maria é a estudante mais velha do Brasil a ter aulas em uma classe hospitalar, segundo o Censo Escolar 2017.

— Tudo que eu queria era ter feito uma faculdade, infelizmente não deu certo. Mas hoje depois de tantos anos, estou estudante. Nunca é tarde para aprender, basta a gente querer — contou em entrevista ao GLOBO.

Há muito tempo, quando tinha apenas 15 anos, o mesmo lugar onde hoje ela cursa a alfabetização acabou dificultando seu acesso à educação. Na década de 1940, o atual Abrigo João Paulo II ainda era a “Colônia de Marituba”, uma espécie de clínica para onde eram levadas ao isolamento as pessoas com hanseníase. Separada forçadamente de toda a família e da casa onde trabalhava como doméstica, Maria foi uma das pacientes levadas para o local, de onde só saiu anos depois, quando já estava casada. A política de saúde pública vigente obrigava a internação de pacientes com a doença para evitar a disseminação do contágio. O que só começou a mudar no final da década de 1970.

Se as chances de estudar já eram restritas para sua classe social, com o isolamento forçado, ficou ainda mais difícil. E, por muito tempo, Maria deixou adormecida a vontade de aprender.

— Eu gosto da escola, gosto de pintura. Quando era jovem, fui empregada na casa das pessoas e não tive tempo de estudar. Vontade eu tinha. Gostaria de ser professora ou enfermeira, de ser uma pessoa bem educada, bem vivida — afirma, revelando também um dos momentos mais penosos de sua história:

— A parte mais difícil foi quando fiquei doente, porque eu tive que me separar da minha família.

O afastamento dos pais e dos irmãos não foi o único imposto a ela. As duas filhas que teve com o marido, que também vivia isolado na colônia, foram retiradas de seu convívio. A prática da época previa que os bebês nascidos lá fossem para um educandário.

Depois de sair da Colônia, já adulta, Maria viveu em uma casa com o marido e retomou contato com a filha mais velha. A mais nova, no entanto, só foi encontrada por ela há dez anos, quando — após receber uma indenização do Estado por conta do isolamento imposto pela política de saúde pública — viajou ao Ceará para encontrá-la.

Nessa época, ela já estava de volta à ex-colônia, agora Abrigo João Paulo II, onde vive até hoje. Foi com a ajuda de Milene Borges, diretora da unidade, que Maria encontrou a filha e também voltou a estudar.

— Ela tem uma deficiência nas mãos por conta da doença, está há 14 anos aqui no abrigo. Eu trabalho aqui há 22 anos, e todos os dias tenho uma coisa nova a aprender. O que mais me chama atenção é a motivação da dona Maria. Nessa idade e ainda quer aprender. Essa força de vontade de viver apesar de tudo. Parece que sempre tem um gás novo— diz Milene.

Agência O Globo

OUTRAS NOTÍCIAS