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ENEM: Funcionários relatam pressão para excluir questões e sala secreta violada

Governo macula o ENEM

Tentativas de interferência no conteúdo das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ―a principal porta de entrada para as universidades públicas brasileiras― estão por trás da debandada de 37 servidores públicos do Inep na semana passada.

Eles deixaram o instituto, ligado ao Ministério da Educação e responsável pelo exame, sob denúncias de assédio moral, acúmulo de trabalho e desmonte de diretorias.

Segundo parte destes funcionários relatou no último domingo ao Fantástico, da TV Globo, houve tentativa de censura em questões que envolvem contextos sociopolítico e socioeconômico do Brasil em um movimento de “pressão ideológica” no processo de formulação da prova.

Nesta segunda (15), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) celebrou, durante entrevista à imprensa em Dubai, que as questões do Enem “começam agora a ter a cara do Governo”.

“Ninguém precisa ficar preocupado, aquelas questões absurdas do passado que caíam tema de redação que não tinha nada a ver com nada. Realmente algo voltado para o aprendizado”, afirmou o presidente.

A prova do Enem é elaborada anualmente sob um forte esquema de segurança.

As 180 perguntas que a compõe são retiradas de um banco nacional, cujas questões são elaboradas por professores escolhidos por um edital.

A escolha delas cabe à equipe técnica do Inep em um espaço chamado “ambiente seguro”, cercado por câmeras e sem pontos cegos. Para acessá-lo, é preciso passar por um scanner que acusa qualquer objeto de metal.

No entanto, conforme servidores relataram ao Fantástico, este esquema de segurança foi supostamente quebrado no dia 2 de setembro. Um policial federal conseguiu acessar este “ambiente seguro”, e funcionários acreditam que o objetivo foi intimidar os servidores. Eles cobram explicações do Inep sobre quem autorizou a entrada desta pessoa e o que ela fazia exatamente lá.

Para além disso, servidores contaram que houve censura às questões do exame.

Um dirigente designado pelo presidente do Inep, Danilo Dupas, teria lido as questões que a equipe técnica havia montado e solicitou a exclusão de mais de 20 delas ―especialmente aquelas que tratam da história recente do país.

Diante da tensão instalada, uma segunda versão do exame foi feita, mas a equipe técnica percebeu que ao excluir os itens vetados, a prova baixava a nota máxima possível, enfraquecendo a capacidade do Enem.

Por isso, uma terceira versão foi elaborada reincluindo alguns itens. Uma grave crise se instalou no órgão, e 37 funcionários pediram demissão. Mesmo assim, o Ministério da Educação assegura que o exame ocorrerá normalmente no próximo domingo.

A prova do Enem é alvo de críticas do presidente Bolsonaro desde antes de ele assumir o cargo no Palácio do Planalto.

Em 2018, ele considerou a prova contaminada por ideologia. Reclamou especificamente de uma questão que perguntava ao aluno o que torna o dialeto um elemento de patrimônio linguístico.

O texto de apoio usava como exemplo o Pajubá, identificado como expressão cultural de gays e travestis.

“Este tema da linguagem particular daquelas pessoas, o que temos a ver com isso, meu Deus do céu?”, reclamou.

Bolsonaro então prometeu rever a prova antes da aplicação nos anos posteriores, gerando incertezas sobre a segurança e a inviolabilidade das questões.

Em 2019, o Governo chegou a criar uma comissão para revisar as questões do Enem e filtrar “ideologias”.

Na edição de 2020, sumiram as perguntas sobre o período da ditadura militar no Brasil, até então recorrentes na prova. Neste ano, supostas interferências levaram a uma verdadeira debandada de servidores do Inep nas vésperas da realização do Exame, e o presidente tentou minimizar o escândalo durante entrevista que concedeu em Dubai.

“Conversei muito rapidamente com o Milton [Ribeiro, ministro da Educação], seria bom vocês conversarem com eles, o que levou àquelas demissões. Não quero entrar em detalhes, mas é um absurdo o que se gastava com poucas pessoas lá. Um absurdo, tá? Inadmissível o que acontecia. Então o Milton é uma pessoa séria, responsável, é do ramo, ele mandou mensagem para mim agora há pouco, diz que a prova do Enem vai correr na mais absoluta tranquilidade”, afirmou Bolsonaro.

Ribeiro é o terceiro ministro a comandar o Ministério da Educação no Governo Bolsonaro. Assumiu após a saída de Ricardo Veléz e Abraham Weintraub ― em uma das mais intensas trocas de comando na pasta desde a redemocratização.

Para Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação, os três ministros “adotaram a mesma premissa do presidente, transformando a educação num dos principais fronts da guerra cultural que instalaram no país”.

Em artigo no portal Poder360, Cruz relata o apreço desmedido por teses polêmtias e desestabilizadoras no Ministério da Educação.

“Revisionismos sobre a ditadura militar, incentivo à vigilância a professores, tentativas de expurgar Paulo Freire das escolas, intervenção ideológica em livros didáticos, pregação contra supostas sexualização de crianças e doutrinação da esquerda na educação foram algumas frentes desse falso combate”, escreve.

“Todos exibiram outra característica em comum: um apreço desmedido pelas teses polêmicas e desestabilizadoras, pela visão elitista e pelos estereótipos contra universidades, estudantes e professores”, completa.

Recentemente, Ribeiro esteve envolvido em polêmicas ao atribui demora para retomada das aulas presenciais a “embates” com sindicatos e professores e ao declarar que que a criança com deficiência “atrapalha” as demais na sala de aula.

As denúncias feitas pelos funcionários do Inep foram relatadas aos deputados que compõem a Frente Parlamentar de Educação.

O colegiado deve colocar em votação nos próximos dias um pedido de audiência pública para detalhamento dos fatos na Comissão de Educação da Câmara.

A senadora Leila Barros (Cidadania-DF) também encaminhou ao Tribunal de Contas da União um requerimento para que seja feita uma auditoria no Inep.

Beatriz Jucá

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