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Estudante negra consegue matrícula provisória na USP após denúncia de fraude.

Estudante Juliane Almeida tira foto no banheiro da Faculdade de Medicina da USP em seu primeiro dia de aula — Foto: Arquivo pessoal

Uma liminar concedida nesta segunda-feira (9) pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu à estudante Juliane de Souza Almeida o direito à matrícula no curso de fisioterapia da Universidade de São Paulo (USP) após denúncia de que outro estudante, que ficou à sua frente na lista, teria fraudado o sistema de cotas do vestibular.

Juliane, de 21 anos, era a quarta colocada na categoria que contempla pretos, pardos e indígenas (PPI). O curso de fisioterapia, que adotou cotas raciais na Fuvest pela primeira vez neste ano, aprovou três candidatos nesta categoria, e portanto Juliane era a primeira da lista de espera.

“Eu já tinha aceitado que não tinha conseguido, que não ia ser dessa vez, eram só três vagas para PPI e eu estava em quarto lugar. Mas, quando eu encontrei esse perfil [do estudante suspeito de fraude] e eu vi pela foto que não batia com os requisitos das cotas. Eu me senti decepcionada, injustiçada, porque aquilo não tava certo, e ao mesmo tempo emocionada porque me deu o mínimo de esperança”, disse Juliane em entrevista.

A aluna conseguiu realizar sua matrícula provisória na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) nesta quarta-feira (10), um dia antes do prazo final da universidade para matrículas em 2020 e uma semana e meia depois do início das aulas.

Segundo a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, há indícios de que um dos três alunos convocados não se encaixa nos critérios das cotas raciais determinados pela legislação federal por ter fenótipo (aparência física) branco.

A decisão judicial liminar é vista como uma conquista pela defensora pública Isadora Brandão, que é titular do Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da defensoria e cuidou do caso de Juliane. Antes disso, Brandão já havia notificado a USP pela falta de fiscalização em seu sistema de cotas raciais, mas a universidade não respondeu às recomendações da defensoria.

Em nota, a universidade afirma que o caso de Juliane “já está sendo apurado pela Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP, ligada à Pró-Reitoria de Graduação” e que, em relação à liminar, a “universidade adotará as medidas cabíveis, em especial no que tange à determinação de matrícula provisória”.

Estudante Juliane Almeida tira foto no banheiro da Faculdade de Medicina da USP em seu primeiro dia de aula — Foto: Arquivo pessoal
Estudante Juliane Almeida tira foto no banheiro da Faculdade de Medicina da USP em seu primeiro dia de aula — Foto: Arquivo pessoal

Felicidade incompleta

Juliane ficou emocionada ao chegar à faculdade nesta quinta-feira (12) para seu primeiro dia de aula, mas diz estar receosa com o fato de sua matrícula estar condicionada a uma decisão judicial que ainda é provisória.

“Tem uma pedra no meu sapato, porque eu estou extremamente feliz, mas não me sinto pertencente a esse lugar ainda”, diz Juliane.

“Eu fiquei entusiasmada de ver os professores, comer no bandejão, entrar nos laboratórios, porque isso é o sonho que eu alimentei por anos, mas a todo momento eu me breco porque eu não tenho uma decisão final. Eu não consigo ficar feliz plenamente”, diz a estudante Juliane Almeida.

Depois de receber a decisão judicial, publicada na segunda-feira (9), a estudante teve que correr para efetivar sua matrícula dentro do prazo determinado pela universidade, que se esgotou nesta quarta (11). “A matrícula teve alguns impasses porque nunca aconteceu uma situação dessa, com ordem liminar, na USP, para entrar numa vaga que teoricamente já está preenchida. Foi um pouco demorado pra faculdade efetivar”, conta.

Questionada sobre seus planos para a graduação, Juliane diz que não consegue planejar os próximos meses diante da incerteza de ter sua matrícula efetivada.

“Meu maior objetivo era entrar e, do jeito que foi, ainda estou um pouco aérea e não parei pra pensar no depois. Eu sempre tive o sonho de fazer pesquisa acadêmica, eu tenho esses sonhos, só mas vou alimentá-los quando eu tiver meu lugar aqui de verdade”, afirma.

Fachada de um dos prédios da Faculdade de Medicina da USP  — Foto: Divulgação/FMUSP
Fachada de um dos prédios da Faculdade de Medicina da USP — Foto: Divulgação/FMUSP

Antes da aprovação na USP, Juliane fez três anos de cursinho popular, com o apoio da mãe, costureira, e do pai, vigilante, que está desempregado há três anos. A estudante chegou a ser convocada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e, no ano seguinte, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas decidiu não efetivar a matrícula porque o auxílio permanência não seria suficiente para se manter fora de São Paulo.

Denúncia de fraude

Após concluir o ensino médio em 2016, Juliane decidiu se dedicar ao estudo para o vestibular de uma universidade pública por não ter condições financeiras de arcar com uma faculdade particular. Quando a lista de aprovados da Fuvest 2020 foi publicada, e seu nome constava em quarto lugar, ela decidiu monitorar se algum dos três alunos convocados pretendia desistir do curso.

“A lista só roda se uma das três pessoas desistirem. Então minha estratégia foi buscar as pessoas que foram chamadas, pra ver se elas divulgam que passaram em outra faculdade, pra saber se elas iam desistir da vaga, assim eu poderia me programar e saber se ainda tinha ou não alguma chance de entrar”, lembra Juliane.

Ao buscar as contas dos alunos aprovados nas redes sociais, ela encontrou o perfil de um estudante que não tinha os requisitos para a cotas raciais. Ela entrou em contato com o Núcleo Ayê, coletivo negro de estudantes da FMUSP, e fez uma denúncia de suspeita de fraude por meio do canal anônimo que o coletivo oferece. O grupo encaminhou a estudante para a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que a auxiliou no processo judicial.

“Seria mais fácil se esse controle fosse sistematizado, porque a gente não queria judicializar caso a caso. Se a USP tivesse mecanismos, não precisaríamos de uma decisão liminar”, avalia Isadora Brandão, defensora pública.

Vista da Praça do Relógio e Prédio da Reitoria da Universidade de São Paulo - Campus Butantã. — Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Vista da Praça do Relógio e Prédio da Reitoria da Universidade de São Paulo – Campus Butantã. — Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Para Glaucia Verena, fonoaudióloga e fundadora do Núcleo Ayê, não deveria ser papel dos estudantes localizar e denunciar possíveis fraudes no sistema de cotas da universidade. Verena acredita que a ferramente criada pelo coletivo para encaminhar denúncias à USP só existe porque a própria universidade ainda não tem nenhum canal oficial para acolher denúncias e apurar possíveis fraudes.

“O mais esperado é que ano que vem a USP tenha uma banca averiguadora. Não deveria estar nas costas dos alunos denunciar quem é ou não alvo das cotas. Eu espero que, no ano que vem, ninguém tenha que passar por essa situação que eu passei”, avalia Juliane.

Decisão judicial

A decisão do juiz Otávio Tioitti Tokua, da 10ª Vara de Fazenda Pública de SP, determina que a USP deve instaurar processo administrativo para verificar se o estudante denunciado possui fenotipia negra e, portanto, se faz jus ou não à política pública afirmativa. A decisão estabelece um prazo de 90 dias para a conclusão desta avaliação.

O documento determina ainda que, caso a conclusão seja que o candidato fraudou a declaração de fenotipia, a matrícula de Juliane de Souza Almeida será efetivada de maneira definitiva.

Para a defensora Isadora Brandão, a USP ainda não possui uma instância incumbida de avaliar esse tipo de denúncia. “A Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão da USP não tem atribuição regimental pra fazer a averiguação das denuncias. Foi o que o próprio pró-reitor disse. Então não adianta este grupo discutir o tema se ele não tem atribuição para decidir ainda, vai ficar discutindo eternamente”, questiona a defensora.

Patrícia Figueiredo

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