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Professora usa educação para ‘libertar mentes’ no sistema prisional

Rodrigo Pereira

A lousa, forrada de números. As alunas, silenciosas e atentas nos cálculos propostos oralmente pela professora. Um simples processo de alfabetização? Para quem está presente na sala de paredes rosas e móveis decorados com pétalas coloridas de celofane é mais do que isso: um processo de libertação e transformação pelo amor. E quem demonstra isso são os próprios personagens desta história.
A sala é um dos espaços da Penitenciária Feminina de Campinas (SP), as alunas são internas da unidade e a educadora é Maria Amélia Arruda Andrade Silva, de 61 anos. Formada em pedagogia plena e mãe de dois homens de 38 e 42 anos, ela dedicou seus últimos 15 anos à alfabetização de pessoas com restrição de liberdade, primeiro na Fundação Casa e, depois, na penitenciária.
Por causa dela, detentas conseguem hoje ler as cartas recebidas de familiares e responder os recados, ser transportadas a outros mundos pelas linhas dos livros que leem, e alimentar a esperança de dias melhores por meio da retomada e continuidade dos estudos.

Eu sou suspeita pra falar delas, porque eu amo demais minhas alunas, porque elas são minhas amigas mesmo. […] Então, cada uma que assina o nome, para mim, é uma glória muito grande. É como se tivesse me dado um diamante. Porque cada conquista delas é o maior prazer pra mim”, confidencia a docente.

E a recíproca é verdadeira. As estudantes confirmam o apego pela docente.

É aquela pessoa que ela chega na sala, ela não olha com aquele olhar diferente para nós. Ela chega na sala e ela abraça nós. Pergunta: ‘Como você está, como foi seu final de semana? Sua família veio, não veio?’ É como ser humano que ela trata mesmo. É a minha quarta cadeia. Eu nunca tinha conhecido uma pessoa assim”, conta J., que está há oito meses na unidade e desde janeiro no processo de alfabetização.

“Com a Maria Amélia eu aprendi tudo. Aprendi até a ser uma nova pessoa. A gente entra aqui de um jeito e você começa a conviver com as pessoas e a gente aprende muita coisa além do ensino dela. É uma grande amiga. Dá conselhos bons pro futuro nosso lá fora”, elogia A., que tem aulas com a professora há sete meses.

Para a profissional, a educação é uma “ponte para o mundo”, proporcionando um meio de liberdade por meio do imaginário.
“Se você tem a educação, você consegue ler. Você pode estar numa cela com um monte de mulheres, você vai lá na sua cama, pega o livro, você começa a ler, começa a se interessar pela história e você começa a imaginar o local que está, aonde se passa”, reflete.

E essa ponte para o mundo tem efeitos práticos sim. Por meio de programas educacionais existentes na unidade prisional, as detentas reduzem tempo de sua pena ao frequentarem as aulas e lerem livros.
Na Penitenciária Feminina de Campinas, apenas três das atuais detentas sem alfabetização negaram participar das aulas. Atualmente, a unidade tem 467 internas. Estudando, há nove pela manhã, cursando do 1ª ao 4ª ano do ensino fundamental, e 15 à tarde, do 5ª ao 9ª.
Saber ler escrever também é uma forma de vencer as barreiras de concreto e aço quando bate a saudade e a única forma de comunicação com familiares e amigos são as cartas.

“Foi muito gratificante quando eu escrevi a primeira carta e eles [filhas e familiares] entenderam o que eu escrevi e mandaram respostas. […] Eu nunca tive estudo lá fora. Perdi essa oportunidade. Mas aqui dentro eu to procurando resgatar”, relata E., que está na unidade há um ano e oito meses.

“Na minha carreira eu não mudaria nada, porque minha metodologia é o amor. Só o amor constrói. Porque, antes de você alfabetizar outra pessoa, você tem que fazer com que ela te ame, com que ela goste de você. Porque ninguém gosta de uma professora que grite, que fale alto”, diz Maria Amélia.

O segundo é a paciência. “Eu cheguei a ficar dois meses ensinando conta de somar, lembram disso, gente? [Pergunta, olhando para as alunas]. Eu olhava e perguntava: ‘Quem me entendeu?’. Ninguém me respondia nada. Eu falava: ‘Então vocês não entenderam’. E voltava. ‘Gente, quem ainda não entendeu?’. E voltava”, relembra.
Paciência repassada para as estudantes, como J. “Eu aprendi a ter paciência, a ter calma, a compreender mais o próximo. Ela me ensinou muito isso. Ela é muito carinhosa. Eu tava uma pessoa muito estourada. […] Tudo era motivo de brigar”, compara a interna, que chegou ao local após envolvimento com drogas.
“Ficava ele [marido] e minha mãe andando atrás de mim, dia e noite. E eu ficava quatro, cinco dias pra fora de casa. Então, isso não é uma vida né. Então, quando eu sair, vou voltar os estudos, pretendo arrumar um serviço”, vislumbra.

O preconceito, no entanto, faz parte do dia a dia. Maria Amélia diz que até ela o sofre por dar aulas em penitenciária.
“Se eu tiver na Unicamp assistindo uma palestra e tiver mais de duas mil pessoas assistindo, […] eu vejo que as pessoas, quando a gente vai tomar um café, quando eu retorno, olho para o meu lado e não tem mais ninguém. […] Que país é esse? Se tem preconceito comigo que sou educadora, não vai ter preconceito com aluno que saiu daqui?”, questiona, mas já querendo afirmar.

“O que eu gostaria que fosse falado é que elas são seres humanos, que elas estão aqui resgatando cidadania e quando elas saírem daqui vão estar aptas ao mercado de trabalho. E todos nós merecemos uma chance na nossa vida. Quem não errou aqui gente, de uma maneira ou de outra?”.

 

Rodrigo Pereira

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