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Território, neoliberalismo e pandemia no Brasil

Território e neoliberalismo

“Qual é o novo conteúdo explosivo do território hoje?”.

Esta foi a indagação feita por Milton Santos em seu último livro publicado com Maria Laura Silveira em 2001, ano de seu falecimento. Foi feita no contexto do aprofundamento das desigualdades territoriais no Brasil em virtude da consolidação do sistema normativo neoliberal. Tal pergunta vai nortear esta reflexão, que tem em seu bojo uma visão geográfica.

A pandemia do COVID-19 em curso atualmente tem afetado a dinâmica socioespacial de muitos territórios no mundo, sobretudo àqueles em que seus governantes se recusam a encarar de frente sua gravidade, a exemplo de Donald Trump, que chegou a defender o fim do confinamento em seu país já em abril e o presidente Jair Bolsonaro, que nos idos de março afirmou que a economia não podia parar.

Não por acaso, Estados Unidos e Brasil lideram, em termos absolutos, o número de casos e de óbitos por coronavírus no mundo. Os dois países juntos concentram 41,3% de infecções e 36,4% de mortes em todo o planet.

As declarações de Trump e Bolsonaro – que encontram apoio entre dezenas de milhões de pessoas – revelam seus principais objetivos na posição que exercem: a saúde do mercado financeiro tem de estar acima de tudo, até mesmo da saúde das pessoas.

Este é um dado fundamental para se entender o poder neoliberal na atualidade, compreendido nas palavras de Dardot e Laval como uma “racionalidade, que tende a estruturar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”.

Tal racionalidade se manifesta como biopoder pela vigilância dos corpos, e como psicopoder pelo controle e captura das mentalidades.

O neoliberalismo foi um projeto idealizado no fim dos anos 1940 por intelectuais como Karl Popper, Walter Lippmann, Friedrich Hayek e Milton Friedman que atacavam o Estado-Providência “afirmando que esse tipo de Estado destruía a liberdade dos cidadãos e a competição, sem as quais não há prosperidade”.

Tal projeto foi posto em prática no fim dos anos 1970 por Margareth Thatcher, Ronald Reagan e Augusto Pinochet, traduzido como um conjunto de discursos, práticas e dispositivos próprios de uma ideologia dominante, disfarçado por uma retórica que enaltece a liberdade individual, a autonomia, a meritocracia, o empreendedorismo, o livre mercado e que invade “os aparelhos do Estado, os quais tem a função de elaborar, apregoar e reproduzir esta ideologia, fato que é importante na constituição e reprodução da divisão social do trabalho, das classes sociais e do domínio de classe”.

A expansão das desigualdades e a intensa concentração de riqueza no mundo indicam que o projeto neoliberal tem alcançado êxitos.

O neoliberalismo no Brasil possui suas raízes com a eleição de Collor em 1990, mas encontra na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) seu aprofundamento, e desde lá é uma realidade.

Em se tratando dos fatos mais recentes, a conturbada conjuntura política e econômica brasileira desde as manifestações de junho 2013, passando pela eleição presidencial acirrada e polarizada em 2014 e o impeachment de Dilma Roussef em 2016 – em meio a uma forte recessão econômica no país – possibilitou, de forma mais visível e aberta, a instauração de políticas neoliberais e antissociais capitaneadas por Michel Temer e seus aliados no parlamento até culminar com a eleição de Bolsonaro em 2018 e seu programa econômico reformista e subserviente aos interesses imperialistas.

O governo Bolsonaro foi eleito sem qualquer projeto de país, sem proposições, no entanto se baseou numa retórica superficial de enxugamento do Estado, com discurso exaltado contra a corrupção, em favor da liberação de armas de fogo para a população, defendendo a meritocracia, a família, a moral, os bons costumes, os valores cristãos e se utilizando fortemente das redes sociais para disseminar notícias falsas, desinformação e ataques contra adversários políticos.

Mas de que forma o território no Brasil vem sendo afetado por políticas de cunho neoliberal?

Antes de responder esta questão, é preciso entender a noção de “território utilizado”, que se mostra reveladora de um conjunto de técnicas que são a base material da vida social e é seu uso que gera reconhecimento e dá valor ao espaço.

O território usado antes de tudo é abrigo, o lugar das vivências, mas pode ser também recurso, e isto depende, em primeiro lugar, dos interesses das grandes corporações e do poder do capital e do Estado.

O Estado, “cuja principal função hoje é dobrar a sociedade às exigências do mercado mundial”, sob o comando de Bolsonaro tem agido de forma a supervalorizar ainda mais o poder do capital e das classes dominantes, ao mesmo tempo que desdenha dos Direitos Humanos, ataca a sobrevivência dos povos tradicionais ao tentar afrouxar fiscalizações ambientais em áreas de proteção, ao insistir em legalizar garimpos e liberar mineração em terras indígenas e encorajar desmatadores na Amazônia, ao permitir também a liberação excessiva de centenas agrotóxicos, muitos dos quais proibidos em dezenas de países.

Nem mesmo a pandemia impediu tais ações governamentais.

O sistema normativo neoliberal no país tem em Paulo Guedes, Ministro da Fazenda do governo Bolsonaro, seu maior e mais forte defensor.

O ministro é um banqueiro que já serviu à ditadura Pinochet no Chile e tem trabalhado incessantemente na depredação e no loteamento do Estado brasileiro em favor dos interesses corporativos privados, com o consequente esvaziamento do fundo público e das políticas de assistência e seguridade social, possuindo ainda uma latente obsessão pelas privatizações de estatais estratégicas e valiosas.

Ao abrir toda uma série de possibilidades para a instalação de empresas e atores hegemônicos capitalistas globais, o Estado brasileiro permite que o território seja um “espaço da racionalidade”que em certos lugares recebem adequações técnicas e políticas, permitindo ao grande capital aumentar a produtividade e auferir lucros e rendas.

As privatizações ao longo dos últimos vinte e cinco anos no Brasil, com raras exceções, tem se consolidado como grandes negócios às empresas estrangeiras, que criaram uma certa densidade técnica no território via modernização (rodovias, portos, telemática, torres de transmissão via satélite, turbinas de energia eólica, etc.) mas cobram caro por seus serviços, nem sempre oferecidos de forma qualificada.

Voltando a indagação de Milton Santos e Maria Laura Silveira do início do texto, pode-se afirmar que o Brasil de hoje, sob o comando da extrema direita neoliberal e em meio a uma pandemia, se apresenta como um território que tende cada vez mais a ser desigual, seletivo e injusto, mediado por decisões autoritárias e de cunho fascista, de uma vida financeirizada, em que o valor de uso é escravo do valor de troca.

A pandemia do COVID-19 agravou uma situação já insustentável na periferia do capitalismo, qual seja a pobreza e a miséria, representada pela escassez de comida, moradia, água potável e de acesso à renda pelos mais vulneráveis.

E o pós-pandemia no Brasil se mostra ainda mais tenebroso, já que não terá auxílio emergencial, nem oferta de emprego digno.

O que nos espera é uma crise sem precedentes, é a falência do Estado com o que dele resta para a promoção de políticas públicas inclusivas de saúde, educação, cultura e lazer.

A pandemia vigente e o que está por vir, enquanto novo conteúdo explosivo no território, é a potencialização do medo, das ansiedades, das depressões, da violência, do racismo estrutural, seja no campo ou na cidade, são ameaças reais diante dos nossos olhos, do tempo empiricizado do agora, momento que o Brasil atinge 100 mil mortes por COVID-19, isto por absoluta descrença e irresponsabilidade de um governo que se recusa levar a sério as pesquisas científicas, as autoridades médicas e sanitárias e as recomendações de agências internacionais especializadas de saúde sobre o coronavírus.

Que não sejamos contaminados por novos vírus, qual seja o da apatia, da indiferença, do conformismo, do silêncio e da aceitação da dominação política e econômica e do status quo.

As condições para a realização de uma revolução estão postas, uma revolução dos comuns mundiais como apregoam Dardot e Laval, instituindo redes de cooperação permanente entre povos de diferentes territórios do mundo, afim de combater o perverso sistema normativo neoliberal, e isto só pode ser feito com base na práxis: nos incansáveis encontros, debates, diálogos, mobilizações, levantes e protestos, nas mais diversas escalas.

E, como sabemos, as mudanças não virão de cima. A pandemia nos faz lembrar da utopia de Miltoniana[16], a possibilidade da humanidade se constituir como um grande e forte bloco revolucionário, apta a produzir uma nova história, com uma mutação filosófica dos povos, capaz de atribuir um novo sentido à existência no planeta.

Luiz Eduardo Neves dos Santos é Geógrafo, Mestre em Economia (UFMA), Doutorando em Geografia (UFC) e professor Adjunto I do Curso em Licenciatura em Ciências Humanas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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