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Situação de Amanda Nunes expõe conflito entre o velho e o novo UFC

Amanda Nunes desistiu de enfrentar Valentina Shevchenko no UFC 213. Acerto ou erro? (Foto: Evelyn Rodrigues)

O UFC vive um momento de definição na sua história. Ao mesmo tempo que busca se tornar mais limpo e passar uma imagem do MMA mais sóbria e “empresarial”, ainda tenta se agarrar ao espírito de guerreiros e gladiadores do Vale Tudo, que o ajudou a se destacar do boxe e demais esportes e conquistar milhões de fãs pelo mundo inteiro. Talvez haja um meio-termo que agrade ambos os lados, mas o conflito atual é gritante.

A International Fight Week desta semana, e o fiasco do cancelamento da luta principal do UFC 213, demonstram bem esse problema. O megaevento se propunha como uma celebração do passado difícil não só da companhia, mas do esporte, e da evolução ainda em andamento de ambos. O contraste drástico não esteve mais aparente do que na cerimônia de indução ao Hall da Fama do UFC, na quinta-feira.

Ali estavam Maurice Smith e Kazushi Sakuraba, celebrados por sua bravura em enfrentar homens muito maiores em lutas homéricas, às vezes sem conhecer o adversário até poucos minutos antes de entrar no ringue ou cage. Em seus discursos, ambos ressaltaram que fizeram isso por honra e orgulho, numa época em que as bolsas dos lutadores eram ínfimas se comparadas aos valores atuais.

O principal homenageado da noite, contudo, foi Urijah Faber, mais conhecido pelos jovens fãs que eram maioria na plateia. Longe de mim diminuir os méritos do “California Kid” como lutador; o louro de Sacramento começou sua carreira quando o MMA ainda tinha muito de Vale Tudo, foi campeão mundial legítimo no peso-pena e se manteve competindo em alto nível até sua última luta.

Entretanto, seu aspecto mais celebrado em sua introdução foi justamente seu empreendedorismo, a forma como não só criou um mercado para os lutadores mais leves, mas também como soube alavancar sua popularidade, lucrar com ela e criar oportunidades para um futuro próspero mesmo após se aposentar do esporte.

– Honestamente, eu poderia continuar lutando por mais 10 anos. Mas estou focado no meu próximo passo. Tenho muitos grandes planos e grandes objetivos. Temos um filme de grande orçamento que estamos fazendo, montamos uma nova estrutura no nosso time que está levando as coisas a um outro nível. É uma época muito empolgante para mim, e estou me divertindo – disse Faber em seu discurso.

Contraste isso ao espírito de outros lutadores como o próprio Smith e Sakuraba, que pareceram mais forçados por seus corpos a seguirem adiante fora do cage do que realmente dispostos a isso. Não estou criticando Faber; na verdade, ele está fazendo o certo, e nada disso significa que ele não tenha um “espírito de guerreiro”.

Todo soldado precisa voltar da guerra em algum momento, e é melhor fazê-lo ainda vivo e com as faculdades mentais intactas do que em um caixão ou com sequelas irreversíveis. Kevin Randleman, Mark Coleman, Gary Goodridge e Tim Hague são exemplos do que pode acontecer quando se passa do ponto de parar.

O que me leva ao cancelamento da luta entre Amanda Nunes e Valentina Shevchenko. O presidente do UFC, Dana White, disse aos quatro ventos que a brasileira, apesar de ter passado mal dois dias seguintes e na noite do evento, tinha condições de lutar.

Ele afirmou que sua decisão de não se apresentar foi “90% mental e 10% física”, o que é muito próximo de dizer que a “Leoa” se acovardou de última hora.

Ao mesmo tempo, celebrou a postura de Joanna Jedrzejczyk, polonesa campeã dos pesos-palhas, que se ofereceu para substituir Amanda no mesmo dia, e só não foi seriamente considerada porque os padrões modernos do MMA impedem que ela seja licenciada sem cumprir algumas exigências burocráticas, incluindo um exame de gravidez que levaria mais de 24 horas para ter seus resultados revelados.

Amanda deu sua versão dos fatos no dia seguinte: uma crise de sinusite a atacou durante o corte de peso, ela precisou tomar antibióticos no dia da luta e sua equipe julgou que lutar não seria seguro. Imediatamente, fãs do mundo inteiro reclamaram que a campeã “amarelou” por causa de um simples “nariz entupido”.

Não importa que muita gente peça licença de trabalhos bem menos desgastantes fisicamente pelo mesmo motivo; a Leoa devia ter “sido forte” e colocado seu cinturão em jogo mesmo com dificuldade para respirar, porque “nenhum atleta compete 100% saudável”.

O que nós queremos: os guerreiros e gladiadores de antigamente, que iam pra porrada a qualquer custo e em quaisquer condições? Ou lutadores responsáveis, que lutam quando estão no auge de suas capacidades? Não é isso que o UFC quer: vender a imagem de uma liga séria, que preza pelo alto nível de suas lutas e pela saúde de seus atletas?

Se Amanda entrasse no cage no sábado, estaria arriscando tudo o que trabalhou para conquistar, a 50% de suas capacidades, apenas por orgulho e honra. Isso não seria inteligente.

Olha, não quero passar a mão na cabeça da Amanda: ela errou na preparação. Se tem mesmo problema crônico de sinusite, devia ter se preparado melhor para tentar evitar seus efeitos sem afetar seu corte de peso, ainda mais conhecendo o clima seco de Las Vegas, onde lutou inúmeras vezes.

Desistir de uma luta principal, quando se é a lutadora mais esperada do evento, é péssimo, uma injustiça com os fãs que investiram dinheiro suado em ingressos, passagens, hospedagem e acomodação para assisti-la, com a adversária e sua equipe que trabalharam meses para dar um show e receber seu salário, e com a organização que investiu pesado para promovê-la – algo que, desta vez, Amanda não pode mesmo reclamar; ela fez turnês de mídia pelos principais veículos do Brasil, e seu rosto e nome estavam espalhados por toda Las Vegas.

Mas o ponto aqui é outro: se nos importamos de verdade com esses atletas, se prezamos por sua saúde e seu futuro, como podemos nos virar contra eles assim que sentem doenças ou lesões para sair de lutas? No passado do Vale Tudo, quando a lógica era “quem é o mais bravo”, eu entendo: se você é bravo mesmo, tem que competir sob qualquer condição.

No momento, contudo, o UFC se vende como uma liga esportiva séria, nos moldes da NBA ou, já que se trata de um esporte individual, a ATP ou a WTA. Bem, quando um tenista se lesiona ou está doente, ele não joga; na semana passada, em Wimbledon, a decisão de diversos competidores de abandonarem jogos por causa de lesão foi recorrente e tema de debate. Se o MMA é um esporte, então por que seria diferente?

No tênis, contudo, uma desistência resulta em derrota por “forfeit”; isso significa que o cinturão deveria ser destituído e entregue ao oponente? Talvez. É um desdobramento válido para o debate. Por ora, fico apenas nisso: se o UFC quer parecer mais sóbrio e empresarial, um esporte mais profissional e sério, não cai bem detonar uma lutadora quando toma uma decisão de negócios com o melhor para seu futuro em vista.

Adriano Albuquerque

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