Tempo - Tutiempo.net

Conversa para a boiada dormir

Ninguém quer saber o que Bolsonaro pensa sobre o clima e muito menos acredita no que ele diz. Mas o capitão não está nem aí para a Amazônia ou para a Cúpula.

O que realmente lhe preocupa é o que acontece no Congresso, onde Renan Calheiros é mais importante que Joe Biden.

1. O cowboy e a boiada. Joe Biden é o novo xerife no pedaço e ele precisa recolocar os EUA nos trilhos dos acordos mundiais sobre a mudança climática. O problema é que não há debate global sobre o meio ambiente hoje que não passe pela questão: o que fazer com o Brasil e Bolsonaro?

O conjunto da obra do governo brasileiro em destruição ambiental é extenso e foi sistematizado pela Rede Brasil Atual em 13 pontos que o tornam uma ameaça à natureza.

Funcional para o agronegócio e a mineração, o governo Bolsonaro constrange os setores empresariais que precisam prestar contas à opinião pública internacional mais exigente ou aqueles que, como Biden, querem transformar a ecologia num negócio rentável.

Aliás, com exceção de garimpeiros e fazendeiros, a rejeição à política ambiental brasileira é unanimidade entre artistas, políticos e entidades. E mesmo entre os empresários bolsonaristas, não há quem acredite em mudança de rumo.

Prova disto é que, mesmo com a oposição pedindo seu afastamento ou tentando reverter a demissão do delegado que lhe denunciou, Ricardo Salles se sente protegido e à vontade para ridicularizar os povos indígenas.

Mesmo numa situação de todos contra um, Bolsonaro e Salles decidiram partir para a ofensiva e condicionar os resultados e metas que não cumpriram nos últimos anos à liberação imediata de recursos pelos países mais ricos.

Como alerta Natalie Unterstell, a ideia é ter uma meta mais frouxa e arrecadar recursos adicionais, porém sujeitos a menor controle social. Salles já pensa inclusive em propor uma milícia ambiental sob seu controle depois de três anos em que ele próprio desmontou as estruturas de fiscalização existentes.

No fim das contas, Bolsonaro moderou o discurso, mas permaneceu em seu universo paralelo de realizações inexistentes, cumprindo a previsão de Maria Cristina Fernandes de que iria se agarrar ao discurso da vitimização e perseguição internacional, que só faz sentido para os seus seguidores:

“para não ser engolfado por uma conjuntura interna cada vez mais incontrolável”. Detalhe: Joe Biden não ficou na sala para ouvir o discurso.

2. Renan reloaded. Até agora, todas as tentativas de Bolsonaro para barrar a CPI da Covid falharam.

Não conseguindo evitar a sua instalação, nem obter maioria – numa derrota reconhecida até por Flávio Bolsonaro – o governo tenta direcionar as investigações contra os governadores.

Para isso, contou com a ajuda de seu inestimável aliado, o procurador-geral da República Augusto Aras, que enviou um ofício aos governadores cobrando explicações sobre o uso de verbas federais.

Porém, senadores governistas, como Chico Rodrigues (DEM – RR) e Telmário Mota (Pros – RR), que já são alvos de investigações em Roraima, temem que a jogada do governo vire fogo amigo.

Ao mesmo tempo, o governo faz movimentos que vão da intimidação à oferta de cargos. O mais recente alvo das ameaças é o senador Renan Calheiros (MDB – AL), cotado para assumir a relatoria da comissão.

As milícias bolsonaristas bombardearam o velho cacique peemedebista nas redes sociais, enquanto os deputados governistas abriram processos na Justiça para barrar a sua nomeação.

Com isso, Bolsonaro até ganhou um tempo para resolver o imbróglio do orçamento que vinha se arrastando. É improvável, porém, que consiga reverter a indicação de Calheiros.

Agora, com data marcada para iniciar os trabalhos no dia 27, a tendência é que o embate entre governistas e oposição passe a ocorrer dentro da própria CPI.

A partir daí, a situação deve se tornar mais difícil e promete ser um desgaste permanente para o governo. O presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM), já recebeu uma lista de pelo menos 15 integrantes ou ex-integrantes do governo que devem ser convocados.

A inclusão do nome de Paulo Guedes na lista gerou divergências entre aqueles que acham que a CPI deve se ater às medidas tomadas pelo Ministério da Saúde e os que consideram importante ampliar as investigações para a área econômica.

Ou seja, Bolsonaro tem de fato o que temer com o andamento da CPI, ainda mais num momento em que o plenário do STF confirma a suspeição de Moro e a inocência de Lula, repassando os processos contra o ex-presidente para a vara do Distrito Federal.

3. Disfarçando as evidências. O futuro de Bolsonaro depende da convicção dos membros da CPI, pois provas de seus crimes não faltam. O mais provável é que as investigações sigam o caminho da cloroquina, tentando provar que a busca pela “imunidade de rebanho” foi uma estratégia deliberada pelo governo.

Outro foco podem ser os entraves criados pelo governo para a compra de vacinas. Já está em mãos do senador Renan Calheiros um documento de junho de 2020 em que o governo federal orientava a Fiocruz a divulgar e indicar a prescrição da cloroquina. Mas essa é apenas uma gota num oceano de evidências.

Em março de 2020 o exército liberou recursos para aumentar a produção de cloroquina em seus laboratórios dois dias depois das orientações de Bolsonaro nesse sentido. O rastro da distribuição de quase 3 milhões de comprimidos foi seguido pela Agência Pública.

Também se sabe que houve um aumento descomunal na compra de cloroquina e azitromicina em farmácias depois que o governo começou a fazer propaganda e facilitar a emissão de receitas para esses medicamentos. E ainda houve um conjunto de negligências nos repasses da União.

Em maio de 2020 o TCU solicitou que o governo federal desse orientações claras sobre como os recursos destinados ao combate à pandemia deveriam ser utilizados por estados e municípios, mas a solicitação foi ignorada.

Além disso, segundo dados do Pnad Covid-19, os setores mais pobres foram aqueles mais atingidos pela pandemia porque tiveram que continuar deslocando-se para o trabalho, enquanto os setores médios puderam trabalhar em casa.

Afinal, o auxílio emergencial do governo foi insuficiente e tardio para garantir o sucesso das medidas restritivas.

Como a cloroquina, a política também mata. O levantamento do Congresso em Foco descobriu que, nos 12 estados onde Bolsonaro teve maior votação no primeiro turno em 2018, a média de óbitos na pandemia foi mais alta do que a média nacional.

Em compensação, os estados do Nordeste registram as menores taxas de mortalidade.

E, por fim, um estudo feito pela Universidade de Michigan e pela FGV investigou 30 países e comprovou com dados o que já sabíamos: no início da pandemia o Brasil era o país da América Latina com melhores condições para enfrentar a propagação do vírus, mas o governo conseguiu boicotar deliberadamente o sistema de saúde.

4. Reincidentes. Se alguém pensa que uma CPIzinha intimidará o capitão está muito enganado. Mesmo sob investigação, Bolsonaro segue convicto e produzindo provas contra si mesmo.

Por exemplo, relatório do TCU aponta que o governo federal ainda não repassou nenhum recurso destinado ao combate à pandemia para estados e municípios este ano.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também faz das suas. Já que as vacinas e insumos estrangeiros estão atrasados, Queiroga resolveu simplesmente parar de atualizar o cronograma de vacinação, deixando o país às cegas.

A medida levou o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, a solicitar um esclarecimento do governo sobre o assunto. Mas o Congresso que vai investigar Bolsonaro na CPI também não é santo. Foi ele que aprovou o projeto de lei que autorizava a compra de vacinas por empresas privadas.

A medida provavelmente será engavetada pelo Senado, não só devido a seus custos políticos, mas também porque é difícil de ser operacionalizada no momento.

A mais recente irresponsabilidade da Câmara foi a aprovação do projeto de lei que converte a educação num serviço essencial, o que pode dificultar que governos estaduais e municipais restrinjam aulas presenciais.

De fato, quando o assunto é combate à pandemia, uma das poucas decisões acertadas até o momento foi o processo de vacinação, que mesmo lento já começa a produzir alguns efeitos positivos, como a queda no número de óbitos entre os idosos.

5. Pax Bovespa. Foi a troca de presidente da Petrobrás que desencadeou a crise de relacionamento entre Bolsonaro e o mercado.

Apesar de todo choro e acusações de que Bolsonaro era, na verdade, um comunista estatizante, nesta semana, o mercado financeiro recebeu alegremente a posse do novo presidente, o general Silva e Luna.

E, basicamente, porque em seu discurso de posse, o general garantiu a manutenção da paridade internacional dos preços. Ou seja, o preço do combustível no Brasil continuará determinado pelo mercado internacional e a inflação agradece.

Essa não foi a única boa notícia para o mercado: o governo também reduziu R$ 25,5 bilhões no preço do leilão de dois campos no pré-sal da Bacia de Santos e avançou na privatização dos Correios.

Os bancos também não têm do que reclamar: em plena pandemia, 1.400 agências foram fechadas e 13 mil empregos eliminados, mas, mesmo com a queda, os cinco maiores bancos tiveram lucro de R$ 79 bilhões.

Para Thomas Traumann, o mercado decidiu ser realista. Aceitou que Paulo Guedes não manda nada e que Bolsonaro não fará nada. E vai deixar para o ano eleitoral a chantagem sobre as reformas econômicas.

Por isso, vale até fazer vista grossa para a pedalada conjunta do Congresso e do governo para driblar o teto de gastos: o Congresso aprovou um projeto que tira do teto fiscal os gastos emergenciais com a pandemia e facilita o corte de verbas dos ministérios.

Quase R$100 bilhões ficarão fora do teto gastos, enquanto outros R$ 9 bi serão cortados dos ministérios, o que permitirá acomodar R$ 16 bi em emendas parlamentares. Resolvido o imbróglio do orçamento, resta saber se o mercado aceita a reconciliação, se Bolsonaro vai se esforçar para isso ou se só terá olhos para o centrão em tempos de CPI.

6. Ponto Final: nossas recomendações.

No caminho com Alípio Freire. O jornalista e escritor Carlos Vanucchi se despede do jornalista, artista plástico, escritor e ex-preso político na ditadura Alípio Freire, que nos deixou nesta semana.

  • Legado do caso George Floyd para política nos EUA é incerto, diz jornalista americano. Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista Eugene Puryear reflete sobre as contradições que permanecem na sociedade americana após o julgamento.
  • As famílias que perderam a renda, mas não podem pedir o auxílio emergencial. A BBC mostra a realidade dos 28 milhões de brasileiros excluídos do auxílio emergencial neste ano.
  • Os pastores estão onde o poder público e os partidos progressistas nunca estiveram. Na Carta Capital, a pesquisadora Esther Solano escreve sobre o papel de acolhimento que as igrejas cumprem na pandemia.-
  • Quando a rebeldia ancestral é transmitida. Célio Turino escreve sobre a história e o papel que a rádio insurgente Wayna Tambo desempenha nas lutas populares na Bolívia.-
  • Como a extrema direita burla punições do YouTube. O The Intercept mostra a falsa campanha do Google/YouTube contra fake news: apenas um canal foi fechado e os demais continuam recebendo dinheiro por anúncios.-
  • Os 80 anos do “rei” Roberto Carlos e seus afagos às ditaduras do Brasil e do Chile. De Geisel e Pinochet à Sérgio Moro, Julinho Bittencourt mostra quais eram os “milhões de amigos” do cantor.-
  • A política radical de Nina Simone. A Jacobin traduz artigo da escritora Chardine Taylor-Stone sobre o impacto da leitura de Marx e Lênin no pensamento e obra de Nina Simone.-
  • Obrigado por nos acompanhar. Você pode recomendar a inscrição na newsletter neste link aqui. Até a semana que vem!

Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Leandro Melito

OUTRAS NOTÍCIAS