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Folha foi tomada pela “síndrome da Troika”

Folha golpista

Em 2 de abril de 1964, logo após o golpe, o jornal O Globo publicou editorial intitulado “Ressurge a Democracia”, saudando o término do regime democrático. O editorial paradoxal começava com uma frase retumbante:

“Vive a Nação dias gloriosos”. Entrou para a História. Como tragédia. Em agosto de 2013, quase meio século depois, O Globo reconheceu que o editorial fora um “erro”.

Foi, no entanto, muito mais que um erro isolado. Na realidade, o editorial apenas refletia uma posição política consolidada, sistemática e duradoura de apoio às forças mais reacionárias do país.

Com efeito, tanto O Globo como outros grandes jornais do país se dedicaram, ao longo de suas histórias, com inegável consistência ideológica, a desestabilizar governos progressistas, como o segundo governo Vargas e o governo Goulart.

Na ditadura, eles emprestaram suas plumas à defesa dos “dias gloriosos” e da “democracia” sem Congresso, sem partidos e, sobretudo, sem povo.

Alguns órgãos de imprensa foram mais longe e emprestaram também viaturas para as forças democráticas de torturadores e assassinos.

Até há alguns anos, muito julgavam, ingenuamente, que esse período heroico da grande imprensa tupiniquim estava definitivamente enterrado pelos anos transcorridos desde a redemocratização, que nos afastou dos “dias de glória”.

Engano. Foi só um outro governo de índole política progressista se instalar no Planalto para que o invariável DNA reacionário e golpista da nossa brava grande mídia voltasse a se manifestar.

Com efeito, desde 2005 que a nossa velha mídia, talvez saudosa dos dias gloriosos, faz campanha sistemática e raivosa contra os governos do PT, os quais são sempre apresentados como os piores governos da História do Brasil; talvez do mundo, quiçá do Universo.

Nesse último período, os grandes acertos desses governos foram ocultados da opinião pública e seus erros foram grosseiramente amplificados.

Institui-se um festival neoudenista de mentiras e meias verdades, de escândalos fabricados ou superdimensionados, para deslegitimar os governos que conseguiram fazer ascender 40 milhões de excluídos à classe média, eliminar a pobreza extrema e retirar o Brasil do Mapa da Fome.

Trivialidades sem importância de dias de pouca glória.

No último dia 13, contudo, a imprensa conservadora se superou. Em editorial delirante e arrogante, intitulado “Última Chance”, a Folha de S. Paulo resolveu dar singelo ultimato à presidenta Dilma Rousseff.

Como o editorial de 1964, esse também já entrou para a História. Como farsa.

Ignorando os 54 milhões de votos obtidos pela presidenta nas últimas eleições, mero detalhe, o jornal afirma que, caso Dilma Rousseff não tome as medidas aconselhadas, não lhe restará alternativa a não ser “abandonar suas responsabilidades presidenciais e, eventualmente, o cargo que ocupa”.

Não se sabe bem porque a Folha resolveu substituir o julgamento do povo nas urnas por seu próprio e glorioso julgamento. Sabe-se bem, não obstante, o que está por trás disso.

A Folha recomenda a Dilma que tome medidas radicais para conter a crise.

Aconselha cortes drásticos na Previdência, nas políticas sociais e até mesmo nas despesas obrigatórias em Saúde e Educação.

Ou seja, a Folha quer que o governo adote um ajuste ainda mais pesado e recessivo que o que vem fazendo para reequilibrar as contas públicas.

E que se coloque o custo maior do ajuste no lombo dos de sempre. Uma espécie de opção preferencial pelos pobres adulterada.

Em outras palavras: ou Dilma topa regredir no progresso social feito nos governos do PT ou tem de sair.

Ou aceita sua morte política ou será devidamente assassinada politicamente por um golpe.

Conforme a Folha, esse convidativo convite teria de ser aceito pela presidenta, pois ela teria “abusado de sua capacidade de errar”.

Gozado é que, em nenhum momento, o editorial da Folha menciona o aumento das taxas de juros, que neutralizou todo o esforço fiscal feito até agora.

Mais curioso ainda é a falta total de menção à pior crise internacional desde a Grande Depressão de 1929, muito mais profunda, extensa e duradoura que as crises periféricas que atravessaram os governos tucanos, preferidos da Folha, e que, como se sabe, nunca erravam.

Mesmo quando afundavam o país e pediam arrego ao FMI, eles estavam absolutamente certos e contavam com o apoio da democrática Folha. Dias gloriosos.

A Folha parece saber o que ninguém sabe: a economia brasileira é uma entidade metafísica que se move por leis próprias.

Forte crise mundial?

Fim do ciclo das commodities?

Gigante chinês em queda?

Mais de 80% dos países do mundo com déficits orçamentários?

Boa parte dos países desenvolvidos com indicadores econômicos piores que os brasileiros?

Tudo frescura.

Afinal, a Folha sabe que o Leman Brothers quebrou mesmo por causa do Lula.

A ironia maior, contudo, tange ao fato de que o patriótico editorial não menciona uma única vez as palavras corrupção, crime, ilícitos etc. Até agora, essas eram as desculpas para o golpe.

Não são mais. Agora, a desculpa é a política econômica.

A Folha inventou nova regra constitucional pela qual indicadores econômicos negativos podem dar ensejo ao golpe.

Só não se sabe por que a Folha não inventou essa moda nos tempos gloriosos do paleoliberalismo tupiniquim.

Teria nos poupado de muito sofrimento. E, convenhamos, se a nova regra constitucional da Folha fosse aplicada ao mundo de hoje, pouquíssimos governos sobreviveriam.

De qualquer modo, no caso do Brasil, a Folha, como muitos, confunde efeito com causa.

Na realidade, o grande problema econômico do Brasil de hoje está no clima político deteriorado, nesse calculado pessimismo que os derrotados de 2014 infundem continuamente à Nação.

Não há medida econômica, por mais “drástica” que seja, que possa funcionar adequadamente nesse clima de crise política permanente alimentada pelos neoudenistas de plantão e pelos que se recusam a aceitar sua derrota no último pleito eleitoral. Alimentada, também, pela Folha.

Não há ajuste econômico capaz de dar jeito nessa falta de compromisso com o Brasil e sua democracia.

A Folha foi tomada pela “síndrome da Troika”. Acha que suas receitas draconianas devem ser impostas independentemente do que achem os eleitores de Dilma Rousseff. Independentemente da democracia.

Talvez não se possa esperar mais desse e de outros jornais, assim como de políticos que, por motivos menores e torpes, se recusam a colaborar com seu próprio país.

Mas a Folha, que, nos dias de glória, foi tão generosa com ditadores e torturadores, podia ser mais generosa com uma presidenta recém-reeleita.

Podia, sobretudo, ser generosa com o Brasil e sua democracia. A Folha pode até não perceber, mas dar ultimato à presidenta eleita é dar ultimado ao povo que a elegeu.

A Folha ainda tem uma última chance de abraçar a democracia.

 

MARCELO ZERO

Sociólogo, especialista em relações internacionais

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