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O neonazismo na Ucrânia está sendo relativizado?

iSTOMÉ O QUE OS EUA E OTAN SUSTENTAM NA UCRÂNIA

Desde que o governo russo anunciou um dos objetivos da operação especial na Ucrânia — desnazificar o país vizinho —, o Ocidente, para quem a atual situação na Europa configuraria uma disputa maniqueísta do bem contra o mal, aumentou os esforços para reduzir o peso de grupos neonazistas na política, na defesa e na sociedade ucranianas.

Seja na cobertura da grande mídia ou nos discursos de governos e corporações que se atêm a demonizar a Rússia, o neonazismo ucraniano tem sido eclipsado na ordem de temas abordados na sociedade mundial.

A partir daí a Sputnik Brasil conversou com analistas e pesquisadores na tentativa de entender esse fenômeno.

‘Vistas grossas para o neonazismo’

Para o jornalista Breno Altman, fundador do site especializado em questões internacionais Opera Mundi, quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, fala de desnazificação, está fazendo um discurso contra esses grupos — mas também contra o apoio omisso aos neonazistas por parte da coalizão ocidental que sustenta o presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, na cadeira presidencial.

Altman relembra ainda a atuação dos banderistas, neonazistas que reverenciam o nacionalista Stepan Bandera (1909-1959), que, por sua vez, chegou a lutar ao lado dos soldados nazistas de Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial.

“Eles inclusive aparecem em várias fotos com bandeiras carregando suásticas, com toda a simbologia do nacionalismo pró-fascista e pró-nazista dos anos 1940”, contextualizou.

O jornalista observou que a Ucrânia teve um passado nazista ao menos desde os anos 1920, quando surge no país uma corrente nacionalista profundamente antissoviética.

Essa corrente nacionalista lutaria com armas contra a União Soviética durante a guerra civil no início dos anos 1920. Depois, parte dessa corrente seguiu para o exílio.

Porém ela continuaria, durante os anos 1930, exercendo atividades terroristas de sabotagem da construção do socialismo na Ucrânia.

Alguns dos líderes dessa corrente foram presos e seriam libertados pelos nazistas, constituindo depois uma tentativa de se criar uma Ucrânia independente sob controle desses nacionalistas, explicou Altman. O mais importante desses líderes nacionalistas foi Bandera.

“Putin se referiu à desnazificação por duas razões fundamentais. Uma é o passado da Ucrânia. A outra, mais importante, é o fato de que, na região do Donbass […], os ataques, as agressões e os atentados são organizados fundamentalmente por grupos que se reivindicam na prática neonazista, no nacionalismo ucraniano.

São muito vinculados à tradição de um líder chamado Stepan Bandera, nacionalista ucraniano que fez acordos com nazistas da Segunda Guerra e lutou ao lado dos nazistas contra a União Soviética.

Esses grupos — o mais famoso deles é o Batalhão Azov, situado no mar de Azov — são os que participaram intensamente dessas sabotagens, agressões e ataques […]. Foi Bandera quem levou o nacionalismo ucraniano a uma aliança com os nazistas em prol da independência da Ucrânia, contra a União Soviética.

Eis o passado nazista da Ucrânia: a fusão da liderança nacionalista ucraniana soviética com a invasão nazista. A isso se refere Putin, também, em seus discursos”, descreveu ele.

Ainda de acordo com o jornalista, o Ocidente está sendo leniente com esse problema por uma questão de comodidade: o alinhamento das pautas entre diversos segmentos da geopolítica mundial em torno do golpe de Estado pró-ocidental, em 2014.

“Não tenho dúvidas de que o Ocidente fez vistas grossas a esses grupos nazistas e neonazistas na Ucrânia porque eles eram funcionais, eles eram parte importante do golpe que, em 2014, derruba o governo do Viktor Yanukovich (2010-2014), que era um governo aliado a Moscou.

Então a coalizão de forças que daria sustentação ao golpe de 2014 na Ucrânia incluía de grupos social-democratas pró-Ocidente até grupos neonazistas, como é o caso dos banderistas e de distintos grupos que se reivindicam dessa tradição nacionalista de extrema-direita que existe na Ucrânia há tanto tempo.

O Ocidente fez de conta que esses grupos não existiam, embora eles fizessem sua propaganda se associando à suástica e a toda representação simbólica desse nacionalismo ucraniano que foi aliado do nazismo. Fecharam os olhos porque esses grupos eram importantes, eram decisivos naquele golpe de Estado construído em 2014 contra um governo aliado a Moscou”, criticou.

Extremistas ucranianos: ‘de subalternos a institucionalmente legítimos’
Já o historiador Bruno Garcia, que estuda o movimento das direitas na Europa, diz que é impossível negar os problemas que a Ucrânia tem com organizações radicais de extrema-direita.

A questão se acentua no país, segundo ele, pela institucionalização desses grupos sorrateiros, que vêm ganhando espaço no espectro político ucraniano.

“De fato a Ucrânia tem um problema com grupos extremistas. Não simplesmente porque eles existem. O problema da Ucrânia é que essas pessoas migraram da posição subalterna para uma posição de legitimidade e visibilidade institucional.

Isso aconteceu depois dos protestos de 2013, 2014, que não só terminaram por derrubar o presidente do país como desagregaram o próprio Estado ucraniano.

A hierarquia — a cadeia de forças de comando, por exemplo o Exército e a polícia — foi praticamente desfeita. Os ucranianos chamaram isso de revolução, e os russos, de golpe de Estado”, analisou.

Para Garcia, com a reunificação da Crimeia e a aparição de grupos independentistas nas províncias de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia, o país se viu sem Exército e sem organização suficiente para reagir. Foi nesse contexto, ele diz, que muitos grupos radicais começaram a ser incorporados às forças ucranianas como brigadas de voluntários para combates nessas regiões.

O especialista vê nessa integração uma soma de “nacionalismo exacerbado com uma circunstância na qual a própria existência da Ucrânia se via em xeque”.

Isso explicaria, em sua opinião, “a entrada nas forças convencionais de grupos como o Pravy Sektor (que é um grupo composto de gangues de skinheads, praticamente), além de outras brigadas com simbologia racista”.

Garcia considera que, nos últimos anos, o campo de ação desses grupos se ampliou e hoje vai muito além da zona de conflito no leste da Ucrânia.

O historiador relembra algumas reportagens de anos atrás da imprensa europeia que puseram foco nesse fenômeno. De acordo com ele, o assunto é muito ventilado em produções intelectuais do meio acadêmico.

“O próprio embaixador da Ucrânia na Alemanha, por volta de 2015, admitiu a integração de grupos radicais nas forças militares ucranianas. E isso em um canal de TV aberta na Alemanha”, disse.

A luta da Rússia contra os nazistas

Para Michel Gherman, sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a ideia de se discutir a operação militar especial a partir da lógica do nazismo ou do não nazismo é perda de tempo porque o contexto do nazismo deve ser levado em conta.

“A Rússia trabalha com a ideia de que o nazismo afetou o Estado soviético a partir da chamada Grande Guerra Patriótica, em que o Exército Vermelho defendeu a liberdade do mundo a partir de uma resistência heroica. É importante porque está se falando de luta contra os nazistas e não necessariamente sobre o Holocausto”, avaliou ele.

“A ideia de mortes em grande número, de resistência, é uma perspectiva típica da dimensão da existência e da experiência russa em relação à Segunda Guerra Mundial.

Se a gente trabalha com perspectivas mais ocidentais, não há como se discutir Segunda Guerra Mundial sem se discutir genocídio. Esse debate é diferente na Rússia. Quando se fala sobre genocídio está se falando sobre número de mortos, combates etc.

Também é esse o discurso do Zelensky apontando o dedo para os russos: ele está se referindo à experiência da Ucrânia, hoje, como a experiência de genocídio e de nazismo.

Esse uso constante e político do nazismo tem a ver com a banalização do nazismo, ou seja, a ideia de que tudo que é muito cruel e causa muitas mortes é nazismo.

Mas há uma concentração muito grande, em nível nacional e internacional, de grupos neonazistas na Ucrânia, principalmente no leste”, declarou.

Ele ressalta a falsa dicotomia que existe no imaginário do Ocidente e em partes da Europa Oriental entre comunismo e nazismo — sendo que eles são paradoxos não somente em termos como também na perspectiva ideológica enquanto correntes políticas.

“Há um contexto histórico que coloca os países do leste da Europa que fazem fronteira com a Rússia em uma experiência em que viam a si próprios como se entre dois diabos, o diabo soviético comunista e o diabo nazista. Essa percepção é um equívoco: é incomparável o nazismo com o comunismo. São dois regimes com naturezas diferentes, um é genocida [nazismo] e o outro, igualitário [comunismo]. Um que produziu campos de extermínio e outro que produziu coletivização. Um que produziu um projeto de morte e outro que produziu um projeto de sociedade. Não vejo comparação possível. Se não entendermos o contexto político, não entenderemos nada”, concluiu.

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