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De emergente a potência, China caminha em busca de harmonia social e ambiental

Foto: Divulgação

Quando se fala em China, há certo tempo que se ouve certas máximas que, umas certas outras erradas, permeiam o imaginário ocidental sobre o que é hoje o país mais importante do oriente, tendo há mais de uma década superado a importância econômica do Japão. Dona de um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 12,24 trilhões e uma população de quase 1,4 bilhão de habitantes, o gigante asiático corrobora as esperanças por um mundo mais multipolar, ao mesmo tempo que assombra o Ocidente com questões que envolvem respeito aos direitos civis e ao meio ambiente. Por isso, Plurale em Revista inicia este mês reportagem especial, dividida em duas edições, sobre os avanços e desafios da China nos temas ambiental e social.

A começar pelo meio ambiente, a terra dos antigos imperadores, das místicas tradições orientais e das filosofias taoísta e confuciana assenta-se na busca do equilíbrio para encontrar a fórmula exata da preservação de seus recursos minerais, da saúde física e mental de seus habitantes e do patrimônio natural e histórico de seus 5 mil anos. Hoje, a China encontra-se num momento de desequilíbrio na equação entre o desenvolvimento e a conservação da qualidade do ar e das águas. Isto porque o país é altamente dependente da emissão de gases-estufa, ainda gerando energia por meio de termelétricas e utilizando veículos a combustão.

De 2001 a 2015, no entanto, os índices de gás carbônico emitidos pela China têm se mantido estáveis, em 20 milhões de toneladas. Embora alto, o número não se elevou junto ao seu crescimento econômico, de menos de US$ 1 trilhão em 1999 para os atuais 12,24. O salto de mais de 1000%, portanto, não resultou em aumento significativo nos dados de poluentes e, desde 2015, tem encontrado ligeira redução. Isso tem resultado na expectativa de vida, que saltou de menos de 70 anos em 1999 para 76 anos em 2019. Uma das ferramentas para combater os índices de poluição é o investimento em tecnologia verde, isto é, que não utiliza combustíveis como gasolina e diesel.

Nos dias 17 e 18 de maio, Plurale visitou o Congresso Internacional de Inteligência (WIC – sigla em inglês para World Intelligence Congress), em Tianjin, para conferir os veículos desenvolvidos para ampliar a mudança nos padrões utilização da energia. Por toda a parte, carros de passeio, veículos para passageiros e até um modelo esportivo, adotado pela polícia dos Emirados Árabes Unidos, movidos a eletricidade. No último ano, todas as montadoras que operam em solo chinês ampliaram sua produção de carros elétricos em 53%, visando ao seu mercado interno. Isto porque o país responde por cerca de 40% de todos os veículos de tecnologia verde vendidos no planeta, o que é resultado de uma ampla estrutura criada pelo Governo, que envolve mais da metade dos postos de recarga de baterias no mundo, 241 de um total de 424.

De acordo com o ambientalista ex-diretor da Administração Estatal para Proteção do Meio Ambiente, Xie Zhenhua, já premiado internacionalmente por órgãos como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a World Wide Fund of Nature (WWF), “o desenvolvimento verde da China pavimenta seu caminho para o desenvolvimento sustentável, para uma coexistência harmônica entre o ser humano e a natureza”. O conceito de “harmonia” é uma tônica do pensamento chinês, aplicável a todos os segmentos da sociedade. Por isso, mais que revelar números e gráficos, Plurale busca entender os conceitos filosóficos e sociais que sustentam o caminho chinês para superação das mazelas ambientais.

Nas montanhas do Centro da China: o berço da harmonia

A China mais conhecida, porque hoje mais midiática, concentra-se em três centros principais: Pequim, Shanghai e a província de Guandong e áreas especiais adjacentes, onde estão Guangzhou e Shenzhen, Hong Kong e Macau. Fora desse espaço, no entanto, bate o coração da China tradicional, que vive nas montanhas, plantações, monastérios e vilarejos dispersos sobre o imenso território Chinês, pouco maior que o Brasil. Plurale visitou em junho as províncias de Hubei e Shaanxi, no centro do país, e conheceu esses espaços de contemplação e proteção à cultura tradicional chinesa, além das áreas rurais que reverberam uma das mais importantes conquistas do povo chinês: a reforma agrária, ainda tão incipiente no Brasil.

Wuhan, a capital de Hubei, é uma das principais cidades onde está localizado o principal manancial do país, o rio Yang-tsé, que tenta sobreviver aos problemas que, geralmente, o crescimento econômico causa aos mananciais, devido ao escoamento de rejeitos de indústrias e alto grau de urbanização. Se em 2002 os níveis eram alarmantes, com 23,4 bilhões de toneladas de rejeitos ao longo de seus 6.212 quilômetros, em 2010 tinham passado para 33 bilhões, e estima-se que tenha sido reduzido para 25 bilhões nesta década, segundo a revista Live Science. Isto porque a China despende muitos recursos pela recuperação de nascentes e afluentes que poluem o principal rio do continente asiático.

A importância da despoluição do Yang-tsé é transversal, pois parte da proteção ao meio ambiente e chega às políticas sociais, visto que a região é um dos principais pólos de agricultura na China, onde predomina o tão conhecido arroz para exportação. Para além da grande Wuhan, centenas de vilarejos pontilham o mapa da província de Hubei, recortando-o nas demarcações retangulares de charcos de arroz, além de pequenas produções para consumo local.

A vila de Lijawan, distante mais ou menos 200 km de Wuhan, é uma das beneficiadas com as políticas sociais e ambientais chinesas nos últimos 20 anos. Diante do avanço econômico e de distribuição de renda do país, o povoado que abriga aproximadamente 50 famílias passou por uma acentuada melhora nos índices sociais, atingindo 100% de acesso a serviços de educação e saúde, triplicando a renda média familiar e a produção. “O trabalho governamental mostra o quanto a redução da pobreza e o compromisso social têm resultados econômicos efetivos, muito mais que as políticas exclusivamente de mercado adotadas no Ocidente”, explica o chefe da aldeia, Zheng Xingping. A subdiretora Shi Yuyan completa: “qualidade de vida resulta em mais produção, porque o trabalhador saudável e satisfeito produz mais não porque trabalhe mais tempo, mas porque trabalha melhor e mais motivado”.

O mesmo se passa na pequena cidade de Yan’an, na província de Shaanxi, mundialmente conhecida pelos Guerreiros de Terracota, na capital, Xi’an. Distante 300 km da capital, a cidade guarda centenas de pequenas produções familiares que se organizam em cooperativas governamentais, beneficiárias da reforma agrária promovida por Mao Tsé Tung. Na China, a terra pertence ao Governo, cabendo ao produtor o papel de arrendatário, em período que pode ser vitalício se a família cumprir as metas de produção e não incorrer em crimes de desvio de finalidade ou de uso de substâncias químicas proibidas, os agrotóxicos. O principal produto agrícola da cidade é a maçã, mas também se cultiva hortaliças e frutas para consumo interno.

Um país e um povo sempre em transformação 

As mudanças recentes na condução das políticas econômicas e sociais chinesas são fruto da cultura de transformação na busca pela harmonia. Isto ocorre porque a cultura chinesa presa a mutação e o conhecimento, princípio básico do taoísmo e do confucionismo, tão pilares para a organização desta sociedade quanto o cristianismo e a filosofia grega são para o Ocidente. Plurale foi até às montanhas Wudang, em Hubei, para conhecer o berço do taoísmo, doutrina filosófica que norteia o pensamento chinês.

Embasada no conceito de complementaridade, proposto no século VI a.C. pelo filósofo Lao Tsé em sua obra Tao Te Ching (o Livro do Caminho e da Virtude), ela vê toda a existência dividida em dois conceitos-chave, interdependentes e complementares: o yin, que é a sombra, o frio, o feminino; e o yang, que é a luz, o calor, o masculino. Constituindo todas as coisas existentes, inclusive as pessoas e o meio ambiente, os dois conceitos formam um fluxo atemporal de prevalência, em que predomina ora um ora outro, fazendo de todo o ser eterna transformação.

Há milhares de anos os monges taoístas, guardiães da raiz do pensamento chinês, mantêm estudos sobre o infinito devir e a busca pela integração do ser humano ao mundo em transformação. A trajetória até esse objetivo, a perfeita integração ao universo, é o chamado “Caminho”, ou “Tao”, conceito que compreende a abnegação da própria existência para perfeita integração ao mundo em constante mutação, e assim compreensão do verdadeiro redirecionamento da vida. A essa abnegação os taoístas dão o nome de “vazio”, ou “não pensar”. A aplicação prática mais conhecida do Tao está nas artes marciais, sendo os movimentos rápidos do Kung Fu o uso do Tao na luta corpo a corpo.

A síntese de tudo isso é que, do alto das montanhas de Wudang, nasce o espírito da sociedade chinesa, que em cinco mil anos de história transformou-se no curso do tempo, sobrevivendo a invasões, guerras e ciclos de pobreza, mas sempre se redirecionando no caminho do desenvolvimento econômico e social. Daí advém a base filosófica para aplicação dos valores de um povo à solução de seus problemas sociais e ambientais.

O conjunto de ideias que norteia o cumprimento com os atuais desafios para o meio ambiente e a qualidade de vida no país, paulatinamente superados, dão o tom do que propõe a China como governança global, nos próximos anos. Assunto do qual Plurale tratará, direto da China, em sua próxima edição.

Hélio Rocha

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