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Até a presunção de inocência de Capitu…já era, diz Mário Rosa

Capitu traiu ou não traiu

O nome da mais recente operação da Polícia Federal, “Capitu”, teve inspirações literárias.

Refere-se à personagem mais enigmática e ao mais insolúvel mistério da obra de Machado de Assis:

afinal, Capitu traiu seu ciumento marido Bentinho com o melhor amigo dele, Escobar?

Pelo nome dado à operação, a mais nova Capitu da República seria o empresário Joesley Batista. E, enfim, as investigações teriam elucidado dois mistérios simultaneamente, um no âmbito criminal e outro, literário.

Sim, segundo a Polícia Federal, Capitu traiu Bentinho. Caso encerrado!

E, por extensão, Joesley foi capitulado como uma “Capitu”, dai porque foi pedida e aceita sua prisão.

Motivo?

Ele teria “traído” a confiança do Judiciário ao “omitir” outros crimes em sua delação ao Supremo Tribunal Federal. Sendo assim, o sugestivo nome dado à operação.

Quem sou eu para discutir literatura no âmbito criminal, mas um exame mais atento aos detalhes da delação da J&F –feito junto aos documentos oficiais, pelo respeitável site especializado Consultor Jurídico– reabre definitivamente a eterna polêmica:

Capitu pode ser inocente! E por extensão sua versão pós-moderna, Joesley, pode estar sendo visto com olhos de Bentinho.

Na essência, o empresário da J&F foi alvejado por um efeito bumerangue.

Foi preso por conta das próprias revelações que fez em sua delação premiada e, ainda por cima, acusado de tê-las omitido.

Ou seja, esse enredo não apenas inocentaria Capitu, mas promoveria post mortem uma revolução na literatura machadiana: descobrir-se-ia agora que Capitu passou a fazer parte do realismo fantástico.

Outros podem imaginar também que, se forem confirmadas as premissas de que Joesley foi preso justamente pelas revelações que fez e ainda por cima acusado de tê-las omitido (?), dai a operação não terá tido apenas um nome.

Terá sido um ato falho.

Sim, porque a se confirmar essa terrível circunstância, aí Capitu confirmaria as piores suspeitas de Bentinho. Sim,

ele teria razão!

Mas, no caso, teria cabido ao Estado Brasileiro o papel de Capitu, pois teria traído a confiança de um colaborador judicial, usando contra ele o veneno que ele entregou para purificar-se e não para ser envenenado por aqueles em quem confiou.

Tempos incríveis os nossos: criminalizaram até Dom Casmurro!

Depois de mais de um século de dúvidas literárias, até mesmo a presunção de inocência de Capitu…já era!

Épocas são feitas de símbolos e, no futuro, quem sabe, Capitu batizar uma operação policial poderá dizer muito sobre nossos dias. Afinal, Capitu é e sempre foi o símbolo máximo da duvida na literatura: traiu ou não traiu?

Ao batizar com seu nome uma acusação, das duas uma: ou a acusação se assume duvidosa (o que certamente não foi a intenção) ou se revela com o viés pre-condenatório (o que certamente não foi a intenção também na escolha de Capitu).

Nem vou falar de Joesley, mas sobre Capitu posso dar meu testemunho: em mais de um século de ferrenhas discussões, não surgiu nenhuma prova nova até hoje que acima de qualquer dúvida razoável evidenciasse seu adultério com Escobar.

Capitu merece esta reparação! A escolha de seu nome foi um incidente literário.

Literatura e operações policiais à parte, o fato é que o Brasil tem um encontro marcado com as delações premiadas.

Há de todos os tipos, de todos os gostos, para todos os fins. Do mesmo modo que o fim da inflação não começou com um tiro certeiro –foram necessários vários planos de estabilização fracassados até que o país fosse capaz de criar o plano Real– o fim da corrupção talvez seja um experimento que não tenha balas de prata.

E as delações premiadas são instrumentos recentes de nosso arsenal de combate ao crime. Natural que a calibragem institucional dessa poderosa máquina ainda não esteja suficientemente dominada.

Nem para fazer a triagem devida entre aquilo que não é delação mas simples “declaração premiada”, nem para garantir que o que foi negociado com delatores é um contrato que não pode ser descumprido pelo Estado ao sabor dos humores momentâneos, sob risco de desestimular o uso desse instrumento no futuro por potenciais delatores descrentes do Estado, assim como Bentinho de Capitu.

A delação premiada é uma construção da democracia.

E da política, é bom lembrar.

Foi o Congresso Brasileiro, como bem ressaltou o presidente do STF, Dias Toffoli, em seu discurso em homenagem aos 30 anos da Constituição, que incorporou essa inovação ao aparato jurisdicional do país.

É importante relembrar esse aspecto, sobretudo neste momento de ressaca contra tudo e contra todos, especialmente contra a política.

Boa parte do odor que respiramos em nosso tempo só é possível porque democracias abrem bueiros e não os blindam, como no autoritarismo. O Brasil não pode se transformar num Dom Casmurro.

Se isso acontecer, como no livro de Machado, só haverá incertezas, um mundo habitado pelos delírios de Bentinhos, pelas suspeitas contra Capitu, aquela que tinha “olhos de ressaca”.

Mario Rosa

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