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Beethoven, por Wagner

O texto emblemático do compositor Richard Wagner, Beethoven, foi redigido em 1870 em comemoração ao centenário do compositor homônimo, como uma homenagem grandiosa. O próprio Wagner fala no opúsculo como uma reação contra a falta de “oportunidade digna de tal celebração” (Prefácio, p. 5).

Carregado de pesada erudição, talvez o texto não passasse à história sem a repercussão que lhe deu a leitura de um jovem filólogo chamado Friedrich Nietzsche, então com 26 anos. Isso explica duplamente a importância do texto para os seus leitores atuais, sobretudo porque em 2020 o mundo musical comemora os 250 anos de nascimento de Beethoven. Eis um momento interessante para revisitarmos o texto.

Para os estudantes de música trata-se de uma leitura imprescindível, que elucida traços determinantes de um momento fundamental da história da música. Já para os estudantes de filosofia, deve ser lido como o duplo de uma obra que é, hoje, um dos livros mais importantes da história da estética, O nascimento da tragédia, escrito um ano depois do livro de Wagner e dele de várias maneiras devedor [1].

Se o texto de Wagner procura elucidar desdobramentos alemães acerca das discussões sobre a tragédia, isso se dá, sobretudo, em sua relação com Nietzsche e Schopenhauer. A influência dos escritos de Wagner sobre o primeiro livro de Nietzsche é hoje um lugar comum da recepção. Vejamos em que termos Wagner elaborou sua homenagem.

O texto coincide com o fim da guerra franco-prussiana. Unificada, a Alemanha iniciava a passos largos a busca por uma identidade então impalpável. Imaginando que seu texto pudesse ser “discursado”, Wagner indica sua dupla intenção: “(…) oferecer à reflexão das pessoas verdadeiramente cultas uma contribuição sobre a filosofia da música; de um lado, é assim que o presente trabalho deve ser considerado, de outro, a suposição de que tivesse realmente sido proferido, como discurso, diante de um auditório alemão, em um certo dia do ano tão singular e significativo, sugere uma viva relação com os graves acontecimentos dessa época” (Prefácio, p. 6).

Se pudéssemos expressar seu pano de fundo, não resta dúvida que a dimensão estética era importante, mas a motivação ia muito além de uma filosofia da música. Wagner manifesta essa autoconsciência política e marca o lugar que gostaria que seu ensaio pudesse ocupar: “(…) teria satisfação de possibilitar ao sentimento alemão, em estado de grande tensão, esse contato mais íntimo com a profundidade do espírito alemão que a penosa vida nacional cotidiana não permite” (Prefácio, p. 6).

O que seria para Wagner “a profundidade do espírito alemão”? Uma pergunta tensa e retroativa, porque hoje ela é inseparável dos acontecimentos subsequentes.

O nacionalismo de Wagner era claramente político, o de Nietzsche pendia para a dimensão cultural; uma diferença sutil, mas determinante. Essa discrepância é basilar para qualquer aproximação que se faça hoje. Algo que salta aos olhos desde o primeiro parágrafo é a condição quase etérea do lugar ocupado pela música e pelos músicos no âmbito da cultura.

Wagner retira esse lugar central da música de suas leituras de Schopenhauer. Se seu texto é dependente, nesse aspecto, da leitura de O mundo como vontade e representação (Unesp), em nada lhe é devedor na apropriação que faz de Beethoven. Ao se referir ao estado intuitivo próprio da criação musical, Wagner arrisca uma analogia: “Somente um estado pode superar o desse artista: o do santo (…). Pois sua arte se relaciona com o conjunto das demais artes, na verdade, como a religião para a igreja” (p. 25-6).

O papel do músico elevado ao estado do mistério, da sagração, quase da imperturbabilidade eclesiástica, mas também – no jogo político – fora de qualquer esquadro crítico. Em um dos momentos mais intrigantes do texto, Wagner descreve duas cenas vividas por ele em Veneza e em Uri. Na primeira, um gondoleiro cujo lamento em forma de canto o conduziu a uma experiência sublime de audição; na outra, nas paisagens alpinas, um grito de um pastor “convidando para a dança de roda”, enquanto Wagner se deixava atravessar por aquela mistura das vozes.

Ao invocar vivências populares como fonte da criação genuína, Wagner apontava para uma origem filosófica do impulso do não-aparente, da música plena. Então ele desloca essa experiência de audição para a sala de concerto, ouvindo uma obra que “verdadeiramente nos comove”, mas que se perde num espetáculo que é “em si o mais dispersivo e o mais insignificante, e que, intensivamente observado, nos desviaria inteiramente da música e nos pareceria até mesmo ridículo” (p. 28). Trata-se aqui da questão do público e da percepção.

Esse desfecho do primeiro grande bloco do texto permite uma digressão sobre o estatuto da obra wagneriana. Ele mesmo preferia a designação “drama musical” para distingui-la da “grande ópera”. Pouco importa debater se o drama wagneriano acabou por tornar-se uma exacerbação dos excessos operísticos da ópera burguesa, mas importa saber que Wagner inventou-se como um segundo ato pós Beethoven. Wagner foi o inventor, o gênio, o revolucionário, o escritor, o filósofo e o único que soube emular a si mesmo, como uma celebridade avant la lettre.

A segunda parte do texto inicia como uma biografia de Beethoven. O ponto principal para Wagner é a demonstração da autonomia do homenageado em relação aos seus antecessores, como Haydn, de quem foi aluno e com quem rompeu, mas também em relação a Mozart.

O texto revela por muitas páginas uma imagem do compositor que pode, no mínimo, ser mais emocional que real. Interessa, na continuidade de nossa leitura, tocar na dimensão ético-estética. Beethoven seria uma analogia viva da virtude e da essência alemã, pois teria retirado da música a função banal de agradar e distrair, reconduzindo-a ao lugar de uma arte que “torna o mundo tão nitidamente claro à consciência quanto a mais profunda filosofia é capaz de esclarecê-lo ao pensador versado em conceitos” (p. 42).

Mas é em meio a essa defesa e de uma vinculação dessa altivez com o que seria verdadeiramente alemão, que Wagner expõe um pré-projeto que seria absorvido pelo jovem Nietzsche: “acolhemos a forma clássica da cultura romana e grega, imitamos sua linguagem e seus versos, soubemos nos apropriar da intuição antiga, mas somente na medida em que expressamos, através delas, nosso próprio espírito” (p. 44).

O texto é mais um esboço autorreferente que uma abordagem rígida das obras de Beethoven, e Wagner não hesita em expor isso quando afirma que “tentar explicar tais obras seria uma tarefa insensata”. Ele dissecaria a forma composicional de seu mestre como poucos, mas preferiu apresentar sua ordem de sucessão, para assim fazer ver com “nitidez cada vez maior a penetração do gênio da música nas formas musicais” (p. 44).

Wagner opera uma analogia nítida entre Beethoven como sustentador de uma moral germânica, enquanto ata uma espécie de linhagem à qual sua obra dá acabamento. Por isso parecem lhe interessar tão pouco os aspectos estruturais e formais, dando relevo a outros quesitos: “Não se pode representar aqui o poder do músico a não ser pela ideia de encantamento” (p. 45).

Todas essas possibilidades de leitura fazem desse texto um emblema da história da Alemanha e também da história da música. Ao leitor, especializado ou não, o texto é de grande interesse, seja como objeto de confronto com outros autores e outras obras, seja como um retrato da transição entre a música ritual e a música tal como nós a conhecemos, isto é, como parte do nosso dia-a-dia cada vez mais rápido e vazio.

Henry Burnett é professor de filosofia da UNIFESP.

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