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Branville e uma mente doentia em evidências

Banville e uma mente doentia em evidência (Foto: Reprodução)

Há livros que são bem escritos mas não são fáceis de serem lidos. É o caso de “O livro das evidências”, de John Banville, lançado no Brasil este ano, com o selo Biblioteca Azul da Editora O Globo, que na realidade foi escrito em 1989, quando concorreu ao Man Booker Prize. Por que não é fácil de ser lido? Porque nele Banville descreve a mente doentia de um criminoso, um homem apartado do mundo, despersonalizado, amoral, que se sentia desumano, descolado de sua identidade. Enfim, alguém próximo da psicopatia, com o qual obviamente não simpatizamos em nada.

O estilo de Banville se sobressai, tecendo toda a trama, um longo depoimento fornecido a um invisível juiz ou Meritíssimo, por ser o estilo de quem tem a habilidade de contar uma história, por mais desagradável que essa história o seja. Pois a sensação que temos é que Banville sentou em sua máquina de escrever e pensou: “Vou descrever a mente de um assassino. Um assassino comum, que comete o assassinato por acaso, sem premeditação alguma.

O protagonista de “O livro das evidências”, o irlandês Frederick Charles S. John Vanderveld Montgomery, ou simplesmente Freddie, até chegar ao ponto no livro que sua vida vai virar de cabeça para baixo, viveu uma existência inócua de bon vivant espertalhão, que sobrevivia às custas de uma pequena herança do pai. Ele não se amava e não amava ninguém que o circundava, nem mesmo a mulher, o filho, a mãe, o pai e os amigos. Era um ser no mundo que não estava no mundo. Enclausurado em si mesmo, que ria de todos os conhecidos acidamente e até mesmo de sua própria pessoa.

Em momento algum, em seu longo, minucioso depoimento fornecido ao inexistente Meritíssimo, enquanto se encontrava na prisão, Freddie Montgomery demonstra algum sentimento de carinho ou de solidariedade pelos outros. Mas não podemos dizer que simplesmente se tratava de um louco.

Já que sua loucura tinha certa racionalidade. Era capaz de longas descrições, descrevendo o entorno das várias situações em que se meteu prazerosamente. Criando personagens. Dando-lhes nomes. Sua mente funcionava como a de um pintor naturalista que descrevia as roupas destas personagens, seus tiques, maneiras de ser. Assim como as paisagens, o céu, as mudanças de tempo, o mar, as cidades, os transeuntes que encontrava em seu caminho, os frequentadores de bar.

Mas sempre se sentindo de fora, inoportuno, despropositado, mal dentro do corpo avantajado, de homenzarrão de olhos esverdeados que poderia ser considerado bonito pelas mulheres. Ou seja, sempre admitindo ter um sentimento de não pertencimento, de não ser humano. Os humanos eram os outros.

À procura de uma identidade

Meio que por acaso, Freddie vai cometer um crime. E ao contrário de Raskolnikov, não sentirá pesar ou culpa. Remorso moral. Tendo se envolvido com criminosos, na ilha do Mediterrâneo onde se encontrava com a mulher Daphne e o filho Van, ele se vê obrigado a voltar para a terra natal, a Irlanda, a fim de visitar a mãe na fazenda onde ela morava, Coolgrange, para pedir a outra parte da herança que lhe era devida.

Sabia que a mãe e o pai tinham quadros valiosos. Só que a mãe tinha vendido as valiosas telas para poder se dedicar a uma criação de pôneis. Ou seja, a mãe o decepciona totalmente. Além disso, havia adotado uma menina de cabelos avermelhados, Joanne, que a ajudava a criar os pôneis.

Ele, que estava fora há 15 anos, sem dar sinal de vida, fora substituído.

Desnorteado, vai visitar um grande colecionador de quadros que morava numa imensa mansão chamada Whitewater. Conhecia o dono e sua filha, Anna Behrens, que fora amiga de Daphne na faculdade, na Califórnia

. Lá, vai se deparar com um quadro flamengo que cobiçará. Achando que os Behrens haviam ficado com os quadros da mãe, tendo pagado um preço ínfimo, resolve roubar o quadro almejado, e aí seus problemas, que já eram muitos, se agudizam, porque, ao roubar o quadro, matará a marteladas a criada da casa, Josie Bell, sem saber bem o porquê. Freddie faz tudo de forma tão tresloucada, como se estivesse vivendo um imenso pesadelo, que jogará o quadro fora e deixará o carro que comprara para fazer o roubo com o corpo da criada mortalmente ferida no meio de uma estrada.

Se tudo já estava muito confuso, mais confuso ficará, com ele se embebedando sem parar e passando a ficar à espera do momento em que será preso. O momento crucial no qual deveria encontrar-se consigo mesmo. Quando iria finalmente adquirir um pouso, uma razão de ser, um lugar para ficar.

Na prisão, acreditava, seria bem tratado e deixaria de ser o ninguém que fora ao longo da vida inteira. É claro que as coisas não vão se dar bem assim. Todos os pensamentos de Freddie são os de uma pessoa que não pensava muito bem há anos. Tanto que ele achava que tinha um monstro a morar dentro dele.

Era uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. De vez em quando saltava de dentro dele um gordo maligno que chamava de Bunter, outro personagem literário, criado pelo escritor Charles Hamilton.

Trata-se de uma história sórdida, que ao final nos faz ficar com um gosto de fel na boca. Um desconforto. E que, como se pode esperar, acaba muito mal para o estilhaçado Freddie.

A mãe deixaria a herança para a menina de cabelos vermelhos que trabalhava na estrebaria, Joanne. A mulher, ao visitá-lo na prisão, o informará que o filho tem uma síndrome que o deixará incapaz para sempre.

E ele será condenado à perpétua, não virando nenhum herói de folhetim criminal, mas pura e simplesmente um assassino cruel e impiedoso odiado pela população de sua cidade natal, “os outros”.

Apesar da malignidade, ou por isso mesmo, o livro é considerado uma obra-prima. Não é fácil descrever a banalidade do mal. E John Banville, autor que ganharia o Man Booker Prize por “O mar”, o conseguiu.

Ao todo, Banville escreveu 17 romances com seu próprio nome, oito romances policiais com o pseudônimo de Benjamin Black, seis peças de teatro e seis roteiros de filme. Em 2011, recebeu o Prêmio Franz Kafka. Kafka, aliás, é um dos autores que mais admira, assim como James Joyce, Samuel Beckett e Henry James.

JB

 

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