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Comentário sobre o livro do poeta Armando Freitas Filho

POETA ARMANDO FREITAS FILHO

Há quem pense a tradição de poesia como um páreo no qual a descendência está sempre em atraso; outros preferem buscar nela modelos para uma austera exigência de valor criativo, supostamente em desuso.

Numa época em que o futuro é sentido como bloqueio, é compreensível que a poesia seja sempre medida em relação a dados que já foram lançados.

É difícil ler a poesia de Armando Freitas Filho sem se colocar essa questão. Afinal, o livro Lar, requisita a tradição e a qualifica – não sem ironia – como mármore perfeito, contra o qual se debate a imperfeição ou a dissonância estéril do presente.

O livro decepciona a corrida de cavalos e a comparação qualitativa. Isso porque a decepção é sua matéria, sua formulação, sua arte.

A obsessão pelo passado manqué, pelo verso manqué, o drama da dificuldade de dar forma, é aquilo que desacredita a forma e ao mesmo tempo a constitui, instruindo o leitor na experiência de suas regras.

Lar, pede para ser lido sob o signo da desarmonia, da solidão sem lar.

Se o livro é, explicitamente, um livro de memória, um livro da experiência que se expõe como autobiográfica, o autobiográfico em si mesmo é uma falsa questão.

Embora os poemas, mais diretamente os da primeira parte, não deixem de organizar um percurso cronológico, do universo familiar ao escolar, a própria miséria dos “fatos” sugere que está em jogo não a mera narrativa biográfica, mas a experiência ao mesmo tempo situada e deslocada de um sujeito.

A relação com os pais, com a religião, com o sexo, mas também a metalinguagem e a negociação com a idéia de finitude, são ocasiões em que se expõe o ruído da memória e a sujeira da intimidade.

O que interessa nos fatos biográficos não está tanto nos conteúdos do passado quanto no “gemido da madeira” que detém antigos papéis. Se há confissão, aqui, é antes de mais nada uma confissão do corpo.

A falta de interioridade possível, que sugere a vírgula atrelada à palavra “lar”, no título, aponta para um tema já conhecido da poética de Armando: a dramatização da superfície do corpo (de sentidos como o cheiro, o gosto, o tato, explorados à exaustão), ou melhor, o “esfregar” dos corpos, que os retira da imanência e os coloca em relação, ou em atrito.

É preciso levar isso em conta, a propósito da proximidade que Armando toma de Drummond ou Cabral, mas também da crítica que dirige a eles: ao primeiro, pelo seu simbolismo, sua suposição de interioridade, ainda que dissonante; ao segundo, pela “limpeza” da situação poética.

Não há oposição ao tipo de solução que os totens modernistas realizaram, mas à exigência da solução, ela mesma; “matando o pai no segredo / do corpo”, a poesia reafirma sua singularidade, mas não a relança tal como foi prevista.

O “segredo do corpo” não é aqui exatamente o espaço (alusivo, irônico, ou pós-moderno) onde se realiza um sacrifício higiênico, mas tem função quase adverbial, de um por-meio-de-que que contém seu próprio embaraço, seu dano, seu sinistro.

Uma paráfrase honesta de Lar, nos conduziria a algo como uma poética da decepção, não apenas porque o corpo nunca está além de seu segredo, mas porque o esfregar dos corpos também não é rejubilativo.

O corpo range, mais do que se arrepia. O corpo nos ensina a ler a decepção como uma função do verso, que tropeça, que transborda, que se derrama conjuminado com a dramática iminência da prosa; que negocia com o aleatório do corte, prescrevendo um discurso sobre o verso como interrupção.

Interromper é ampliar o sentido de uma palavra, de uma locução, perdida no fluxo da prosa do mundo. Se essa ampliação pode parecer a alguns leitores desprovida de razão e de efeito, e exatamente por isso, ela não deixa de ser um retrato fidedigno da decepção histórica que caracteriza sua época.

A arte da desolação, tal como a pratica Armando, tem coerência e perspectiva. Ela nos ensina como deve ser lida, mas precisa de tempo para mostrar seus requisitos.

A tal ponto que acaba se envolvendo com um certo didatismo, que não se separa nunca do ato de ensinar, e que na poesia de Armando fervilha na insistência com relação à fraqueza da repetição, à compulsão de escrita que não se fecha, à reiteração de fracasso do “repetente”, do ajuste de contas com seus fantasmas.

Aprender a ler é aprender a lidar com a decepção reiterada, a reescrita, a correção, o adiamento de si contido na gravação de voz – é o que parece nos dizer a cada página o livro Lar, (“reescrevo, corrijo, fazendo / pressão com o lápis rombudo / para marcar minha dissidência”).

Ao longo dos textos, o extravio, a ferrugem, o descompasso, o inacabamento, o corroído, o empilhado, toda a lógica do dano contida no canhoto (“sinistro”) que se esfrega contra o gauche drummondiano, são índices de uma poética que se comenta, que expande sua metalinguagem.

O drama se dilata, assumindo o risco de remeter “sem parar”, compulsivamente, a seu próprio inacabamento, a seu situado “castigo”. O poema ensina o sinistro de modo tão abundante que faz dele seu próprio flagelo.

Mas o que parece haver de excessivo na poesia de Armando não deixa de ser a resposta para aquilo que se requisita dela, da poesia de modo geral: uma coerência, uma atitude, uma função – sempre contrariadas ou decepcionadas pela voracidade da própria exigência que as solicita.

A épica de nosso tempo é tantas vezes a da decepção, do descompasso entre aquilo que se procura na poesia e aquilo que ela oferece, mesmo que não saibamos exatamente o quê.

A “culpa” expressa pelo poema não deixa de ter paralelo com esta outra, que é a de prolongar tal constrangimento, por não sabermos ou não querermos reconhecê-lo.

O que a poética da decepção em Lar, acaba sugerindo é uma responsabilidade compartilhada diante do sinistro: a de exigir o direito da forma e de concedê-lo, por exemplo, à poesia.

*Marcos Siscar é professor de literatura na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade

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