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Considerações sobre o livro recém-lançado de Eugênio Bucci/por Fernando Haddad

A Superindústria do Imaginário tem que ser lido por várias razões. Você talvez não vá concordar com todas as ideias, não porque elas sejam ruins, mas porque são muitas.

Você vai encontrar citações do Adam Smith, do Lacan e do Richard Dawkins num livro sobre imagem e capitalismo, e todas muito bem apropriadas, muito bem colocadas para reforçar ao argumento, que é um só, que vai de ponta a ponta.

As discordâncias, enfim, podem aparecer ao longo das páginas, mas eu acho difícil alguém discordar totalmente da tese central do livro. Muito dificilmente alguém vai dizer que o autor não tem um ponto definitivo para entender o que está acontecendo nas sociedades contemporâneas, sobretudo depois do advento das big techs.

É bom lembrar que a tese original que acabaria dando origem ao livro que está sendo lançado hoje foi defendida pelo Eugênio em 2002, no doutorado. O mundo era outro. As coisas mudaram muito de lá para cá, mas, já no texto original, do doutorado, ele apontava para um movimento disruptivo, para algo que estava acontecendo, que era grande, e que o tempo só veio confirmar.

A tese foi aprovada com louvor e distinção vinte anos atrás, e hoje essas ideias chegam para nós como um atestado de que a ciência sabe fazer projeções e críticas. Este livro é uma prova de que vale a pena estudar, explorar, até para prevenir os problemas que a sociedade vai enfrentar ou está enfrentando.

Sobre o conceito de superindústria
Eu gostaria de pontuar três aspectos que parecem muito significativos. O primeiro é a adoção do conceito de superindústria – que o Eugênio deixa claro que ele usa a partir de textos meus, como no livro Em defesa do socialismo, publicado pela Vozes em 1998, por ocasião dos 150 anos do Manifesto Comunista. Não estou fazendo propaganda ou autopropaganda, mas é porque é importante registrar esse dado.

No finalzinho do século XX, vigia no mundo a ideia de um capitalismo pós-industrial. Na verdade, não era isso o que estava acontecendo. Já naquele tempo não havia nada de pós-indústria, mas o contrário. Acontece que as pessoas tendem a ver essa questão só pelo lado da matriz tradicional da cabeça dos economistas, o que é legítimo.

Um economista olha para a realidade brasileira e diz: “O Brasil está se desindustrializando”. E está mesmo. O mesmo economista olha para a China e diz: “A China está se industrializando”. E está.

Mas o conceito que o Eugênio pega, e que é fruto de nossa interlocução, é outro. Ele trabalha com o conceito de que a indústria é o padrão de produção do que quer que seja. Esse é o ponto.

Não importa o que você esteja produzindo – o que quer que seja, tem um padrão industrial. Pode ser o corte de cabelo: o padrão do corte de cabelo dos salões que se profissionalizaram é industrial. Pode ser um fast food. O padrão de consumo também é industrial. Pode ser comida japonesa, pode ser turismo.

Os grandes parques temáticos giram em torno do conceito de indústria, tanto que se fala normalmente indústria do turismo ou em indústria do entretenimento.

Esse é o padrão de produção e de consumo da contemporaneidade. Uma parte da religião se transformou em padrão industrial, deixou de operar nos marcos do capitalismo tradicional e foi consumida pelos parâmetros da indústria, inclusive do ponto de vista da eficiência: há metas a serem cumpridas, metas de recolhimento de dízimo, de compra de tempo de televisão.

A religião também é uma grande indústria.

O Eugênio transporta esse conceito para o campo do Imaginário. É uma ousadia, mas é o que ele procura demonstrar com grande credibilidade, pois ele conhece essa indústria por dentro, como profissional, e por fora, como cientista social.

Ele conhece os dois lados do balcão, e talvez seja um dos poucos jornalistas do Brasil e do mundo com a experiência profissional e a capacidade crítica que ele tem. Eu não saberia nomear muitas pessoas que teriam condições de contribuir com o debate de maneira tão qualificada como o Eugênio.

Eu acompanho a imprensa nacional e internacional. São pouquíssimos os nomes que teriam condições de escrever assim. O texto de A superindústria do imaginário avança de uma maneira muito leve e ao mesmo tempo sem aquela cerimônia academicista que às vezes atrapalha a formulação do argumento.

O autor não se deixa deter por nenhum tipo de regra que possa encapsulá-lo numa escola, não está preocupado em se filiar a uma escola de pensamento, embora ele esteja naturalmente associado à tradição crítica – isso inevitavelmente.

Ele mobiliza saberes de várias disciplinas, levando água para o moinho do seu entendimento sobre um fenômeno extremamente complexo e que ele tenta decifrar com muita competência.

Superindústria, desejo e gozo
Hoje, o agronegócio é uma superindústria, organizado de uma forma diferente daquela que foi inicialmente concebida. O agronegócio é superindustrial sob todos os pontos de vista, seja por sua extrema mecanização, que atravessa o território de forma predatória sem prestar a mínima atenção à questão ambiental, consumindo a terra da maneira como ela sabe consumir.

Você não detém o avanço disso. Podemos ter daqui a cinco anos uma Amazonia com soja e gado. Isso é absolutamente possível.

Da mesma forma, chamar um telemarketing de “serviço” é não ter ido lá conferir como as coisas são. O padrão é industrial, o tempo de fala, as palavras usadas, e agora a automação de voz, basta ver que muitas respostas são dadas por robôs. Como é que você vai chamar isso de serviço?

Eu e o Eugênio concordamos em dizer é que não dá para chamar essa sociedade de pós-industrial, porque essa indústria engolfou tudo, inclusive aquilo que parecia ser sua reserva de tempo livre. Você está navegando no seu celular e está sujeito a uma série de provocações, o tempo inteiro.

É aquela coisa que não sou eu que me navega, quem me navega é a superindústria. Não é você que está navegando, é a superindústria que está navegando você.

Se já era verdade que o capitalismo industrial produzia necessidades, se isso já era marca do capitalismo industrial, agora não é mais disso que se trata, porque não são necessidades que estão sendo criadas. A lógica do consumo se transformou numa lógica de produção de desejo.

O Eugênio vai então recorrer ao Lacan para usar o termo valor de gozo, pois não é do valor de uso que estamos falando mais. Assim, vai captando conceitos para nos mostrar que ele tem um ponto.

O consumo no domínio privado
O segundo aspecto que eu gostaria de mencionar é a questão do consumo na intimidade, na vida privada. Eu falava da indústria, mas isso impacta também o consumo.

Se é verdade que a Revolução Industrial fez do sujeito um objeto, de forma que nós todos somos objetos desde a Revolução Industrial, apêndices de uma engenhoca que a gente não domina, e o Eugênio percebe é que, na Revolução Superindustrial, se é que a gente poderia até utilizar esse termo, tudo está engolfado por esse sistema, inclusive o que parece ser a nossa vida privada, onde nós, supostamente, estamos livres para tomarmos as decisões que quisermos.

O livro mostra que você está engolfado, inclusive quando está achando que está escolhendo livremente as coisas que são atraentes para o seu prazer, para o seu entretenimento privado.

Esse momento de retiro individual é o momento que mais interessa ao capital contemporâneo, quando ele alcança você indefeso. Você não está na fábrica, você não está no local de trabalho e, mesmo assim, está completamente subsumido a uma lógica industrial que você também não domina, nem mesmo na esfera privada.

Esfera pública
O terceiro aspecto é o da esfera pública. A esfera pública está tomada, porque as coisas estão se fundindo de uma maneira que você já não consegue saber qual é o seu papel na sociedade.

Os papéis de produtor, de consumidor e de cidadão não existem mais como da maneira que a gente imaginava, estão interrelacionados de uma forma absurda, o que rebate na política.

A esfera pública está de toda maneira contida nesse padrão superindustrial que domina as relações – inclusive as relações comunicacionais. Esse novo espetáculo, para usar o Guy Debord, é angustiante.

Quando fala de esfera pública, o Eugênio tem na cabeça Habermas dos anos 1960, que se perdeu com o tempo. O Habermas foi mudando de assunto e seus livros da maturidade têm outra pegada, completamente diferentes da abordagem desse novo livro do Eugênio.

Por isso, aliás, eu falo que ele se filia à Teoria Crítica. É um ensaísmo crítico, fruto dessa tradição, que dialoga com o jovem Habermas, com o Guy Debord, com os teóricos da comunicação moderna.

A atualização da tradição crítica
O livro do Eugênio promove uma reflexão sobre as mediações necessárias para entender quais são as formas novas de captura do desejo, dos instintos, das inclinações das pessoas, que acham que estão livres para fazer as coisas.

Ele atualiza esse debate para muito além do espetáculo, do meio e da mensagem, da esfera pública subsumida aos meios de comunicação, e dá um passo além do que ele próprio escreveu há quinze ou vinte atrás.

Se você pegar os primeiros livros do Eugênio, eles não vão tão longe quanto a tese de doutorado já ia e não foram tão longe como este livro agora vai.

É um livro que interessa às ciências sociais de uma maneira geral, porque coloca na sala um assunto que às vezes não é trabalhado; ficam os tecnólogos de um lado, falando como funciona a internet hoje – e temos grandes livros sobre isso – e ficam os cientistas políticos trabalhando com as velhas ferramentas, mas não se estabelece a conversa entre as disciplinas.

O Eugênio traz a necessária interdisciplinaridade para pensar fenômenos complexos que ainda escapam à nossa compreensão, justamente por serem novos e complexos.

Às vezes a gente ainda não tem ferramenta para pensar tudo isso, e este livro vem nos oferecer uma grande contribuição.

*Fernando Haddad é professor de ciência política na USP. Foi Ministro da Educação e prefeito de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Trabalho e linguagem: para a renovação do socialismo (Azougue).

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