Tempo - Tutiempo.net

Livro ‘Relações Obscenas’ é lançado.

Foto: Divulgação

Lobo em pele de cordeiro

A expressão lobo em pele de cordeiro decorre de uma passagem bíblica do Novo Testamento, em Mateus, 7:16, onde, em uma das versões traduzidas para a língua portuguesa, consta “Cuidado com os falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores”. Ao longo dos séculos o texto bíblico, espelhado pela expressão coloquialmente reconhecida, ganhou ainda mais notoriedade, em razão de incontáveis fábulas e contos dos mais variados autores, de inúmeras nacionalidades.

Qual, porém, a relação que se pode guardar entre a passagem bíblica, as fábulas, possivelmente nela assentadas, e o atual cenário político brasileiro? Infelizmente, há muito a relacionar.

A operação Lava Jato surgiu com massivo respaldo da mídia hegemônica – possivelmente porque referidos meios de comunicação possuíam clareza acerca dos reais propósitos da operação – reproduzindo um diuturno discurso de ostensivo combate à corrupção e de lançamento do país em uma nova eraSignificativa parcela da população brasileira, influenciada pelo bombardeio midiático, vislumbrou naqueles episódios, que ganhavam espaço em horário nobre de telejornais, alcançando status de verdadeiras telenovelas, a sinalização do surgimento de novos tempos.

Além disso, muitos dos articuladores do movimento sempre indicaram ou justificaram ações e medidas, espelhando-se em textos e passagens bíblicas visando claramente busca de referenciais de afinidade e de identidade com a população.

Como toda produção de conteúdo duvidoso, sempre foi notória a imperfeição e a desqualificação de seus protagonistas; contudo, não menos visível sempre se mostrou a tentativa de ofuscar a pobreza técnica e argumentativa e a deprimente atuação de um risível elenco, por intermédio de uma rebuscada produção. Os efeitos especiais atribuídos pela mídia hegemônica inseriram a população dentro de uma cidade cinematográfica, onde todos os dias ocorriam prisões abusivas, cumprimento de mandados de busca e apreensão com acompanhamento da imprensa e de todo o aparato policial, dotado de força excessiva e desproporcional.

Um roteiro de tamanha complexidade não poderia ser construído sem a concorrente criação das figuras dos heróis-protagonistas cujos aficionados depositariam suas esperanças no concreto propósito de eliminação da corrupção, elemento central da fábula. O contexto ideal para que as figuras do ex-juiz a serviço do capital estrangeiro e do beato procurador, como protagonistas do enredo previamente criado, emergissem como sinônimos do necessário e competente combate à corrupção.

A operação Lava Jato, desde a sua instauração, possuiu inegável bandeira alçada, como se hasteada estivesse nas casas de cada cidadão, sendo repetidamente tremulada. O ufanismo, reverberado pela mídia e conduzindo pelos articuladores da operação, dominou razoável parcela da sociedade, sobretudo os segmentos mais suscetíveis à influência midiática e desprovidos de maior racionalidade.

Corolário disso, estabeleceu-se uma real sensação na população de que o ex-juiz se tratava do eleito – como o próprio, dotado de uma arrogância quase psicopática, reiteradamente admitiu em incontáveis oportunidades – para limpar a sociedade brasileira dos seculares danos causados pela sistêmica corrupção – entretanto, corrupção tratada pelos instrumentadores da operação como um problema pontual, direcionando as medidas e as ações a um determinado grupo político.

No curso deste roteiro algumas ações se encontravam orquestradas, passando pelo golpe parlamentar (golpe de classe) que retirou do poder a presidenta eleita Dilma Rousseff – lembrando que naquela ocasião, de acordo com pesquisas realizadas, mais da metade da população acreditava que o processo de impedimento ocorria em razão da Operação Lava Jato –, bem como pela desintegração da indústria de construção naval e civil brasileira, viabilizando a substituição de serviços prestados, sobretudo na malha petroleira, por empresas estrangeiras ou de capital majoritariamente estrangeiro.

A ação devastadora da soberania nacional desde o início das movimentações da Operação Lava Jato e após a reeleição de Dilma Rousseff sempre foi denunciada, com racionalidade e responsabilidade, por segmentos presentes na mídia não hegemônica e por um sem-número de juristas. Entretanto, a posição da população brasileira neste roteiro era de figuração dentro do elenco construído e não mais de mera espectadora.

Com papel atuante na obra construída pela Operação Lava Jato, a população brasileira alijou-se da capacidade de compreensão dos reais motivos da operação e da verdadeira ação de seus agentes protagonistas, atribuindo ao ex-juiz a serviço do capital estrangeiro e ao procurador beato o rótulo de verdadeiros salvadores da pátria. A ação da população foi conduzida por uma mídia hegemônica, oportunista, reacionária e irresponsável, que se valeu de apontado discurso, elegendo-os da mesma maneira.

Durante um significativo período, tanto a Operação Lava Jato quanto seus principais articuladores gozaram de elevado prestígio, ao ponto de colherem frutos como a eleição presidencial de uma pessoa dotada de baixíssima capacidade cognitiva, absoluto despreparo e de comportamento social desequilibrado, apontando claros problemas comportamentais. Contudo, eleito como resultado de uma limpeza necessária introduzida pelos bastiões da moralidade.

O cenário ganhou nova roupagem quando, no começo do mês de junho de 2019, o site The Intercept iniciou um processo de divulgação de mensagens de texto e de áudios trocadas entre procuradores da República, neles incluído o beato e o ex-juiz a serviço do capital estrangeiro. Mencionado conteúdo, apresentado ao veículo por pessoa anônima, responsável pela obtenção dos dados, seguramente impôs ao enredo até então facilmente dominado por uma narrativa única – aquela apresentada pelos articuladores – uma acentuada alteração de direcionamento.

A natureza das informações apresentadas revelou uma série de negociações rasteiras, rasas, baixas, imorais e ilegais entre o ex-juiz a serviço do capital estrangeiro e o beato procurador.

Ao longo de todo o procedimento de condução da operação Lava Jato, exatamente em razão dos abusos procedimentais e das violações a direitos e a garantias fundamentais, especialmente quanto à defesa do ex-presidente Lula, o ex-juiz sempre foi questionado acerca da postura condutiva, de ausência de imparcialidade. Ocorre que, em reiteradas oportunidades, especialmente utilizando-se de entrevistas coletivas e de palestras, ocasiões em que exercia o apogeu de sua imoral vaidade, jamais admitiu qualquer prática ilegal ou que impusesse violação aos direitos de defesa ou que remetesse à postura parcial, a despeito do que oferecia a realidade.

A abertura das mensagens de conteúdo promíscuo autorizou a materialização de uma narrativa há tempos empregada por todos aqueles que insistiam na defesa do Estado Democrático de Direito, e que compreendiam os reais interesses e objetivos da Operação Lava Jato.

Nesse rumo, não se pode naturalizar que um magistrado promova de maneira privada e direta (não oficial) o alerta a um dos advogados do processo que um prazo importante para determinada parte se encontra prestes a vencer; que sugira a simulação de um procedimento para a busca de uma testemunha; que eleja qual o melhor procurador para a prática de um ato processual (audiência). O acesso ao conteúdo das mensagens revela a maneira como ex-juiz, a serviço do capital estrangeiro, sempre possuiu participação ativa na condução e nas decisões dos termos da acusação, especialmente, em se tratando dos crimes imputados ao ex-presidente Lula.

A pretexto de combater a corrupção, o ex-juiz e o procurador beato, assim como outros procuradores, não menos obscurantistas, praticaram vários atos ilegais e crimes no curso do processo que envolveu a condenação do ex-presidente Lula. Valeram-se de suas posições funcionais para exercer o mais raso e inescrupuloso nível de advocacia e de entrega de prestação jurisdicional.

Aos grupos que sempre denunciaram as ilegalidades, abusos, excessos e mesmo as práticas criminosas do ex-juiz a serviço do capital estrangeiro, as revelações do The Intercept nada mais são do que a materialização, pois assentada em provas, de uma narrativa que vem sendo construída, a partir de uma mirada crítica, há muito tempo. Contudo, não se pode olvidar a surpresa que toma conta de razoável parcela da sociedade ao se deparar com a demonstração das barbáries e da comprovação da condução criminosa de lavra do ex-juiz a serviço do capital estrangeiro.

Indubitável que todo o aparato instrumentado por inúmeros mecanismos não possuía como único propósito a condenação do ex-presidente Lula, mas, sobretudo, implantar um projeto de sociedade que jamais seria pela própria (sociedade) admitido. Significa dizer, que o cenário eleitoral, sem que se promovessem o mau uso das instituições e a deturpação de seus respectivos papeis constitucionais e legais, jamais autorizaria o ingresso da agenda política hoje apresentada.

Permitiu-se por intermédio do subterfúgio de combater a corrupção que o ex-juiz, lesa-pátria, promovesse a aniquilação da indústria naval brasileira e a entrega do pré-sal quase que integralmente ao capital internacional, como anteriormente referido. Tudo isso praticado de maneira estrategicamente articulada, levando parcela significativa da sociedade a crer que o lobo se tratava apenas de mais uma ovelha com dotes hercúleos.

As relações obscenas entre os membros da operação Lava Jato e o ex-juiz a serviço do capital estrangeiro, lobo, com vestes de ovelha ao menos para parcela da sociedade, revelam o nível obscuro que as algumas instituições assumiram ocupar, em nome de um golpe de classe aplicado contra trabalhadores e a população em condição de fragilidade e de vulnerabilidade.

A ruptura democrática, praticada por um sem-número de conspirações e de inúmeros conspiradores, alçou ao poder os piores e mais nefastos lobos em todas as esferas governamentais, dispostos à prática de quaisquer atos em nome da sociedade, mas que, na verdade, visam a atender seus pessoais interesses, ao capital internacional e ao sistema financeiro que vêm patrocinando a desintegração social e a eliminação da estrada que trilhava o rumo à construção de um Estado de bem-estar social.

Por fim, e não menos grave, denota-se que diante de todas as revelações divulgadas pela imprensa, resultantes na exposição das rasas e sujas táticas arquitetadas pelos protagonistas no processo de condenação do ex-presidente Lula e da desconstrução social, os envolvidos jamais prestaram qualquer esclarecimento à sociedade. Mesmo Judas, após imputado, apresentou, ao menos, remorso.

[1] Advogado trabalhista e sindical.

Nuredin Ahmad Allan [1]

OUTRAS NOTÍCIAS