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Na literatura, as mulheres andam menos românticas que os homens

Vânia Medeiros /Editoria de Arte/Folhapress

Uma jovem, Margot, flerta com um rapaz, Robert, e segue-se uma troca de mensagens de celular; pouco tempo depois, quase que numa sucessão de acasos, vão para a cama; a experiência, do ponto de vista dela (o único a que temos acesso), é horrível, e, nos dias que se seguem, a garota responde com um silêncio humilhante ao interesse subsequente dele, para quem a noite teria sido boa.

Essa é a síntese do conto Cat Person (literalmente, “pessoa gato”), de Kristen Roupenian, que, publicado em novembro na revista “The New Yorker”, transformou a autora, até então desconhecida, numa celebridade instantânea.

O conto chamou a atenção basicamente pela discussão de comportamento, como se a literatura, tal qual uma fábula da Bíblia, servisse para ilustrar uma lição de moral, e não para criar uma hipótese de existência que arrisque dar alguns eixos de referência de modo que o leitor, por conta própria, interprete o caos da realidade.

A jovem sentiu, já no primeiro beijo, que o sexo seria ruim, mas foi em frente mesmo assim. Por quê? Isso é com o leitor.

O interesse extraordinário que o conto despertou está neste instante ético crucial que se passou na cabeça da Margot.

E, quem sabe, também no fato de que sexo ruim seja muito mais frequente do que se pensa; Cat Person tocou numa ferida, para uma cultura que imagina que o conforto emocional automático é o mínimo que podemos exigir da vida.

O conto é simples e exato. Com uma fidelidade psicologicamente fotográfica, acompanhamos a viagem mental de Margot num perfeito registro do clássico realismo de língua inglesa, em que um narrador, sob um fundo inescapavelmente puritano, esforça-se por não mentir, quando, de fato, ele não sabe bem o que está acontecendo.

Há sempre uma fina película hostil na relação entre as pessoas, eventualmente intransponível, e isso não se deve à luta de classes, à falta de religião ou à maldade dos vilões.

Esta película sutil, que se recusa a se “autopoetizar”, é ouro na ficção contemporânea.

A cultura brasileira, envolta no imaginário dos afetos e dos abraços que nos marcam e justificam, talvez resista à frieza saxônica, que entretanto é cada vez mais forte num mundo de remarcação agressiva de todas as fronteiras, em que a solidão nossa de cada dia só parece se mitigar no refúgio da tribo.

Por acaso, li em sequência três livros brasileiros de ficção, escritos por mulheres jovens, que fraturam a nossa tendência à autopoetização formal ou temática.

O primeiro é radical: “Assim na Terra como Embaixo da Terra”, de Ana Paula Maia (Record), cria um mundo alegórico –numa colônia penal vagamente brasileira habitada por sociopatas, todos homens, seguimos um thriler violento, em sintaxe simples e direta.

É alegoria, mas não deixa nenhuma chave interpretativa ao leitor que seja satisfatória, e o realismo gráfico do livro parece um álibi que nos escapa. O texto é bruto da primeira à última frase, e é provavelmente por isso que nos fascina.

Em “Acre”, de Lucrecia Zappi (Todavia), entramos no mundo do realismo impressionista. A narração assume o ponto de vista de um homem apaixonado e ciumento.

Num clássico triângulo amoroso, a figura da mulher emerge difusa e sutil deste duplo espelho.

Sabemos dela o que nos diz o narrador, que é um homem, criado por uma mulher, a autora. É um cruel retrato literário do ciúme.

E em “O Clube dos Jardineiros de Fumaça”, de Carol Bensimon (Companhia das Letras), numa arquitetura romanesca de fôlego, acompanhamos uma reconstituição da ascensão prática e simbólica dos ideais da liberação da maconha na Califórnia, seguindo a onda do imaginário hippie dos anos 1960.

Em torno da figura do brasileiro Arthur, o eixo narrativo, o romance é quase um documentário ficcional de um tempo, mas desprovido de “pathos” afetivo ou glamour residual, o que surpreende.

Duas intuições: primeiro, que a versão fanática do “lugar de fala”, felizmente, não contaminou a literatura; mulheres assumindo homens e homens assumindo mulheres mantêm viva a ideia milenar de que, apesar das contingências da História, prosseguimos intercambiáveis.

A segunda é que, na literatura de hoje, as mulheres em geral andam menos românticas, e mais objetivas, centradas e nítidas que os homens.”

Cristovão Tozzi

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