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Na periferia do desastre

Tecnologia inesquivável

A tecnologia é inesquivável, resta ao desenvolvimento humano torná-la tão orgânica quanto solidária no cuidado e na criação do humano por vir

No início de Periféricos, o romance cyberpunk de William Gibson, o futuro da periferia da Terra é descrito sem pudor:

“Não uma cidade, os curadores haviam insistido, mas uma escultura incremental. De modo mais apropriado, um objeto ritualístico. Cinza, translúcida e levemente amarelada, sua substância recuperava-se em forma de particulados suspensos do alto da coluna de água da Grande Porção de Lixo do Pacífico. Com um peso estimado de 3 milhões de toneladas que não paravam de crescer, boiava com perfeição, era mantido por bexigas segmentadas, cada uma do tamanho de um grande aeroporto do século anterior”.

A razão para o desastre ecológico – seja no livro ou no noticiário – vem da exploração de recursos naturais em função da necessidade na extração de commodities para a produção em massa de dispositivos eletrônicos de todo tipo, ironicamente, periféricos.

O futuro de Gibson não é muito do diferente do presente. Segundo Yuval Harari, a alienação virtual e a gamificação da cultura já estão em curso no uso abusivo de telas e mídias digitais como meios de felicidade e entorpecimento da realidade dura e crua que brilha à luz do Sul.

Não é preciso ir tão longe e citar o caso dos hikikomori no Japão – jovens que decidem abdicar de uma vida social e viver em seus quartos com acompanhantes geradas por inteligência artificial. Em um certo sentido, todos nós habitantes do Antropoceno já vivemos apartados do mundo.

A pandemia, o isolamento, o confinamento e o sufocamento das bolhas de ar respiráveis são apenas os sinais mais graves de que a saúde da natureza não vai bem, fenômenos como o desmatamento e a extinção das espécies já estavam aí há séculos, o grito e o protesto de ambientalistas há décadas e não há como dizer que não fomos avisados.

Agora, em função do colapso dos sistemas de saúde, a economia e a assistência à saúde são subitamente invocadas como complementares. “A economia não pode parar” repetem todos os fascistas ao redor do mundo. Resta saber, em que mundo eles viviam até hoje quando o mesmo trabalho subvalorizado por eles defendido custava ao planeta e às pessoas sem assistência um projeto de vida com dignidade?

A razão para ter iniciado esse texto com um trecho da literatura cyberpunk é clara, em todos os romances desse gênero a democratização da tecnologia convive com a desigualdade absoluta. Lembre-se de Blade Runner com seus arranhas céus cheios de luzes e as suas ruas cheias de lixo.

Não só a desigualdade econômica se intensifica, mas também a social e evolucionária. Ou melhor, aqueles que podem pagar terão o melhor corpo e a melhor mente que o mercado pode oferecer, aliás já é assim.

E não só isso, o homem cede lugar ao ciborgue. Implanta a máquina em si mesmo e usa do androide (o todo máquina) para o seu bel prazer. O androide é mais um dispositivo de controle programado para obedecer sem hesitar.

Portanto, é tão abjeto quanto curioso quando um líder político roga à cidadania o gesto cívico de morrer pelo seu país e o seu discurso é repetido por uma série de bots.

Ficção científica e realidade se confundem. Será que já somos androides cuja codificação é feita diariamente por dispositivos tecnopolíticos rastreando e implementando nossos algoritmos de preferências existenciais?

Será que já estamos a serviço desses ciborgues que tem o privilégio de ter a máquina política e estrutural do humano ao seu controle?

Será que essa tão falada guerra contra o vírus, não esconde uma guerra ulterior demarcada entre as fronteiras de classe e os limites da assimilação da técnica no humano?

Yuval Harari também disse que o futuro reserva o surgimento de uma nova classe: a dos inúteis. Apesar do reconhecimento que deve ser reservado ao intelectual, devo alertar que a ingenuidade desse diagnóstico destoa do restante de sua obra crítica.

Não há e não podem haver inúteis em uma sociedade do consumo. O que há é uma mudança paradigmática no sentido de “produção”. Quem mais produz na atualidade são influencers e ativistas digitais, não à toa são os primeiros a serem cooptados pela e para a política.

São eles os programadores da arquitetura social e dos arranjos entre classes. O que hoje pode ser entendido como um mero gesto de procrastinação e deep play como participar de uma comunidade online, deve ser entendido desde logo como um ato político.

Uma comunidade online é um espaço de acolhimento e horda que surge por consequência de um desterro originário, aqueles que ali ingressam procuram no virtual o que não encontraram no real.

Não há nada intrinsecamente prejudicial na leveza trazida pela tecnologia, veja-se aí a possibilidade de se conectar com pessoas e lugares não-originários.

O problema da leveza é desprezar o custo psicopolítico para a efetivação dessas suspensões. O humano desterrado não vê a motosserra cortar a árvore, muitas vezes sequer ouve o choro que vem da esquina.

Não conhece ou tem experiência com o mundo além da sua casa, muitas vezes não conhece nem além do seu quarto com ar-condicionado.

O Homo sapiens luxus está imerso em especulações de trivialidades e afetos objetificados por esquemas de reificação nutridos, em grande parte, seja por movimentos identitários ou até milícias digitais, de diferentes espectros políticos, que tentam coordenar as singularidades em torno de uma causa comum: a infowar.

Por mais natural que seja o fenômeno da associação, quando falamos do animal político, falamos também do reconhecimento de sua origem nativista, o que significa dizer que a violência se dá antes de qualquer identidade, a violência é fruto da preservação de um espaço de poder.

Quando os nossos espaços de poder estão desterritorializados, não é difícil perceber que muitas lutas serão em vão e apenas serviremos de bucha de canhão para uma guerra de lugares.

É essa guerra que estamos vivendo hoje, uma guerra cibernética cujas milícias digitais reverberam discursos de ódio e confusão social generalizada para soldados-androides prontos para marchar até o abismo da “maximização dos recursos naturais”.

Não se trata apenas de hipermilitância ou cultura do cancelamento, a alienação mais radical que está em vista com as redes é a do direito de habitação e coexistência.

Nós, habitantes da periferia da Terra, já sabemos o que é ter nossos nativos transformados em combustível e nossos mananciais em esgoto pelo preço de edificar as aldeias com o mesmo design das metrópoles. Não se trata de cobrar a dívida histórica dos países ricos com os países pobres, não há tempo para isso agora.

Mais urgente é colaborar e usar das redes como meios de cooperação e fortalecimento de sistemas globais de saúde em suas frentes mais essenciais à existência: saúde, segurança e educação.

Como Peter Sloterdijk aponta, é tempo de uma Declaração Geral de Dependência Universal. Não apenas um documento ético-jurídico, mas uma responsabilidade ecográfica (ecológica e humana) com a natalidade e as futuras gerações em toda a sua diversidade de espécies e formas de vida.

Se o século XVIII nos trouxe o Iluminismo e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão gritou pelos direitos à liberdade e à propriedade, se o século XX e a Declaração Universal dos Direitos Humanos contribuiu com a positivação do direito à vida como um complexo formado tanto por direitos individuais quanto por direitos sociais como cultura e lazer, o século XXI deve ir além e assegurar uma Declaração Geral de Dependência Universal onde o abolicionismo deve superar qualquer tentativa de aprisionamento e escravidão midiática sobre o humano.

Igualdade e liberdade só serão direitos universais no século XXI se um ambiente climatizado e condicionado à autoextração do potencial das singularidades humanas for tão abrangente quanto o azul do céu e a natureza for enfim reconhecida como sujeito de direitos.

Até lá, só estaremos dispondo de mais material para outras narrativas do cyberpunk-noir, esse futurismo que reflete sobre a segregação com alegorias de predativismo tecnológico.

Como defende Donna Haraway, a tecnologia é inesquivável, resta ao desenvolvimento humano torná-la tão orgânica quanto solidária no cuidado e na criação do humano por vir.

*Bráulio M. Rodrigues é doutorando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

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