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Tecendo a manhã

Inspiração

“Quem caminha sozinho pode até chegar mais rápido, mas aquele que vai acompanhado, com certeza vai mais longe”.

A frase, atribuída à escritora Clarice Lispector, é uma síntese da inspiração de hoje. Será que existe alguém no mundo que conquistou tudo sozinho, sozinho mesmo?

Impossível, já que nossa existência se baseia nas relações sociais. Se você se gaba dizendo que não depende ninguém, não esqueça que, quando bebê, alguém o alimentou e trocou suas fraldas. Isso já é o suficiente, não?

Bom, vamos ao poema de João Cabral de Melo Neto:

Tecendo a manhã

 Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Apesar de não ter rima, o poema tem estrutura e organização.

E provoca uma sinestesia – o próprio tecer. Com ritmo, cada verso se emenda no outro, armando, assim, a manhã. Resumindo em uma palavra só, vejo esse poema no sentido da cooperação.

E o galo?

A ave é símbolo do nascer do sol e, no poema, o cantar dos galos – ou o grito, mais precisamente – é o que desperta, tece o raiar do dia. E, assim, vira um toldo que se eleva e contemplamos do alto: a luz balão.

Entretendendo – é comum escritores usarem neologismos, trazendo novos significados ou reinventando-os. No termo em destaque, o autor pareceu unir duas palavras: entreter e entender.

A junção delas reforça a ideia de trama, além do significado de cada uma que também pode remeter à ideia de cooperação.

É importante lembrar que uma produção literária pode – e deve – ter várias interpretações para o leitor, já que se trata de uma obra de arte. Sendo assim, você tem outra forma de ver o poema? Compartilhe suas ideias!

Sobre o autor* – João Cabral de Melo Neto (1920) foi um autor modernista, da geração de 45, apresentando características surrealistas em suas poesias, que eram marcadas pelo rigor formal e pela estruturação fixa.

Nascido em Recife, Pernambuco, o contato com a literatura de cordel marcou os primeiros contatos de Cabral com as letras.

Ainda menino, o escritor lia as histórias para os funcionários do engenho do seu pai. Já no Rio de Janeiro, frequentou encontros literários e conheceu importantes autores nacionais. Lembrado pelo talento para escrever, o autor também foi diplomata, tendo morado em vários países.

Marisol de Andrade

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