Dizem no teatro que há uma espécie de princípio de Tchekhov — quando uma arma é exibida no início da peça é bem provável que venha a ser usada no final.
No Grande Espetáculo da Política Brasileira o bombista de Brasília foi a arma de Tchekhov.
Com um suplemento dramático — o seu corpo foi a sua arma. Quando o vemos ali, estendido e sem vida na Praça dos Três Poderes, uma coisa parece segura — novas cenas se seguirão.
Nada a fazer, senão o silêncio. O bombista suicida foi sempre um mistério e uma frustração para a sociedade civilizada — talvez porque o ato, violento e definitivo, escapa à justiça humana.
Jacqueline Rose, num belo texto sobre o tema, escreve que “todos os suicídios matam outras pessoas”, na medida em que todos somos afetados pelo significado político da morte autoprovocada.
Mas este mundo é barulhento e veloz: as redes exigem explicações urgentes, simples, curtas e… estúpidas.
Nada de reflexão. Pronto, aqui está o motivo: é um louco, é um doente, é alguém que despreza a vida. Um monstro. Maldigamo-lo e passemos adiante.
E, no entanto, julgo que não é preciso ser especialmente sensível para reconhecer que ali há algo mais do que nos querem fazer crer.
Não, a explicação não é a loucura (pelo menos, não é só a loucura), ou uma qualquer patologia. Ali há, no fundamental, ódio e desespero.
Ali há, como é obvio, motivação política. Aquele homem acreditava sinceramente que o seu país está ilegitimamente tomado por comunistas que conspiram diariamente para pôr em causa as autênticas e nobres tradições do povo brasileiro.
Ele estava completamente convencido que sabia identificar quem era o autêntico povo brasileiro — as chamadas “pessoas de bem”. E sabia que eram os outros, os que não são do bem, o Governo, o Presidente, o Supremo Tribunal Federal, a esquerda.
Esses são um “não povo” — uma elite corrupta, plutocrática e cosmopolita que ameaça a pureza original do povo brasileiro.
Para aquele homem as eleições foram um embuste e o poder delas resultante é degenerado, devendo ser combatido se necessário pela violência.
Se necessário com o sacrifício da própria vida. Ali, naquele suicídio bombista, há um manifesto político que apela à ação messiânica, que todos conhecemos e que todos vimos nascer e crescer.
Começou com as infâmias da Lava Jato, com a prisão do adversário político, com a ameaça de banimentos políticos, com a invasão do dia 8 de janeiro e com a ideia de que as únicas eleições legítimas são aquelas que nós ganhamos — todas as outras, as que perdemos, não passaram de uma fraude.
De forma simples: o bombista suicida é filho da violência política.
Usar a existência como arma contra os outros é o horror absoluto. Ainda por cima por maus motivos, que coisa horrível.
Seja como for, o desespero que leva à deliberação de morrer no ato impede a reação social e torna inútil a justiça penal.
Essa impotência gera frustração social e mais violência, não menos. Assim sendo, o suicídio não é o fim, mas o princípio — a violência, se não for explicada e compreendida, gerará mais violência.
A verdade, digamo-lo com coragem, é que o ato teve na sua origem reivindicações políticas muito concretas e negar isso ao suicida seria matá-lo segunda vez.
Para mim, uma morte basta. Para o Brasil, espero que esta morte seja motivo de recolhimento, de silêncio e de contrição — o bombista suicida, depois de anos e anos de uma vida política cheia de palavras de agressão e de brutalidade, limitou-se a passar à ação.
De novo o texto de Jacqueline Rose: “a história do suicídio raramente é singular”. Ponto final: espero que o Brasil se olhe ao espelho.
José Sócrates