O Direito Público afirma-se, historicamente, como um projeto de contenção do poder. No lugar de autoridades incontrastáveis foi se impondo, em meio a avanços e retrocessos, um exercício condicionado e limitado do poder. Engana-se, porém, quem pensa que tal processo histórico tenha alcançado o seu fim.
Na luminosa expressão do Prof. García De Enterría, “a luta contra as imunidades do poder” é um fenômeno inconcluso e periodicamente revivificado por novos desafios sociais.
A ascensão do populismo de extrema direita no Brasil e em várias partes do mundo, ao pretender instalar, no oximoro de Nadia Urbinatti, uma “representação direta” por meio da comunicação permanente e sem intermediários entre o “líder” e o “verdadeiro povo”, sobretudo no ambiente das redes sociais, coloca em evidência uma atividade administrativa que, embora de invulgar importância, continua completamente à margem das regras e princípios do Direito Administrativo brasileiro, qual seja: a atividade informativa da Administração Pública.
Nesse contexto, diversos agentes públicos e até o Chefe do Poder Executivo Federal se valem de ferramentas como o Twitter para anunciar nomeações, desfazer rumores, registrar o avanço de obras e políticas públicas, mas também para falsear dados científicos ou históricos, insultar adversários políticos, investir contra minorias, promover o ódio, entre outras “finalidades”.
Será que todas essas informações são irrelevantes para o Direito?
Uma mensagem do Presidente da República nas redes sociais tem o mesmo significado jurídico que uma mensagem produzida pela aclamada figura do “tiozão do churrasco”?
Lamentavelmente, para muitos a resposta é positiva.
O Presidente pode se sentir o “tiozão do churrasco” e, de modo irresponsável, dizer o que lhe convém, sem se submeter aos princípios da Administração Pública quando está se “divertindo” no Twitter.
Assim entendeu, por exemplo, o Ministério Público Federal no Mandado de Segurança nº 36.666/DF, nos seguintes termos: “Apesar de a conta pessoal do Presidente da República veicular informações de interesse social, as publicações efetuadas na rede social não geram direitos ou obrigações para a Administração Pública, tampouco podem ser enquadradas como atos administrativos”.
O curioso é que as declarações “particulares” do Presidente da República abalam a economia nacional, afetam as relações internacionais e geram profunda comoção social por força de seu frequente caráter performático.
O que motivaria consequências tão significativas? Seria apenas o número expressivo de seguidores ou seria o fato de que toda e qualquer pessoa interpreta aquela mensagem como uma declaração do Chefe de Poder Executivo?
Ora, a resposta é constrangedoramente óbvia: as aludidas declarações são reconhecidas socialmente como “declarações estatais”e não como meros arroubos ou devaneios do mais alto mandatário do país.
O princípio da boa-fé – que deve presidir a relação entre Administração Pública e os cidadãos – desautoriza entendimento diverso.
Em outras palavras: todas as informações que os agentes públicos prestam ao público – no ambiente físico ou virtual – constituem “atos administrativos declaratórios”e, nessa medida, estão sujeitos aos princípios que regem a atividade informativa da Administração Pública, entre os quais avultam a veracidade e a impessoalidade.
Aliás, a justiça estadunidense proclamou explicitamente a natureza pública da conta do Twitter administrada pelo Presidente Donald Trump: “Ele usa a conta para anunciar “assuntos relacionados a negócios oficiais do Governo”, incluindo modificações relevantes na Casa Branca e no quadro de funcionários de alto escalão, bem como mudanças nas principais políticas públicas nacionais (…).
Ele utiliza a Conta para se aproximar de líderes estrangeiros e anunciar decisões e iniciativas de política externa. Por fim, ele usa as funções “curtir”, “retweetar”, “responder” e outras funcionalidades da Conta para compreender e avaliar a reação do público ao que ele diz e faz.
Em suma, desde que assumiu o cargo, o Presidente usou consistentemente a conta como uma importante ferramenta de governança e de alcance executivo. Por esses motivos, concluímos que os fatores que apontam para a natureza pública, não privada da conta e de seus recursos interativos são sobrepujantes” .
Democracias que desprezam a importância da informação abrem caminho para a sua própria destruição. Urge, pois, romper a cegueira doutrinária e jurisprudencial em torno da atividade informativa da Administração, de sorte a ensejar o controle e a responsabilização dos agentes públicos que a desempenham.
Rafael Valim é acadêmico visitante no Institute of European and Comparative Law da Universidade de Oxford