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Direita ou esquerda? Análise de votações indica posição de partidos brasileiros no espectro ideológico

Deputados na votação do impeachment de Dilma Rousseff, em março de 2016 (Foto: JBatista/Camara dos Deputados)

Os brasileiros estão insatisfeitos com os partidos políticos. No fim de junho, o instituto de pesquisas Datafolha divulgou o último levantamento sobre preferência partidária: 59% dos respondentes disseram não preferir ou se sentir representados por nenhum partido em particular.

A profusão de notícias sobre investigações de corrupção, que envolveram as principais lideranças de todos os grandes partidos nacionais, é parte da explicação para o mal-estar entre eleitores e agremiações políticas. Ao expor a disseminação de práticas criminosas entre políticos das mais distintas colorações, as investigações ajudaram a sedimentar a impressão de que não existe qualquer diferença ideológica entre as legendas e que todas as suas ações são orientadas pela fisiológica busca de poder.

Nas redes sociais, essas sensações transbordam para reclamações focadas especialmente nos partidos historicamente identificados com um programa ideológico: o PT, que domina o campo da esquerda, tem sido acusado de abandonar pautas da esquerda em favor de uma agenda voltada aos interesses do empresariado, inflexão que a sigla nega.

Já ao PSDB, de centro-direita, foram dirigidas especulações sobre um aumento de seu “esquerdismo” e até de ligações da legenda com o “socialismo fabiano”, um movimento da esquerda britânica que preconizava o fim do capitalismo.

Meme relacionando o prefeito de São Paulo, João Doria, ao socalismo fabiano
Image captionCerca de 3,6 mil pessoas reagiram a este meme, postado no dia 30 de junho no Facebook (Foto: Corrupção Brasileira Memes / Reprodução)

Para checar se a impressão sobre a falta de consistência ideológica dos partidos guarda relação com o comportamento das legendas na hora de definir os rumos do país, analisou-se os resultados de dez votações recentes e relevantes na Câmara dos Deputados. Os números mostram que, ao contrário do que possa parecer, há, sim, alguma coerência na atuação da maioria das legendas tanto em temas econômicos quanto em assuntos sociais. Partidos com pensamento econômico mais liberal ou mais socialista ou de cunho mais progressista ou mais conservador em relação a costumes tenderam a manter suas posições na maioria dos casos.

A partir das votações na Câmara, é possível construir um gráfico aproximado da tendência ideológica demonstrada por cada um dos partidos no período das votações, entre 2015 e 2017. A maioria das siglas se comportou de forma liberal quanto à economia, e votou de maneira mais conservadora em temas relacionados a costumes (política penal, questões ambientais etc). No compasso político, os partidos ficariam assim:

Gráfico mostrando a disposição dos partidos no espectro ideológico
Image caption14 dos 25 partidos votaram de forma liberal na economia e conservadora nos costumes

Para chegar a este resultado, calculou-se o percentual de votos favoráveis ou contrários a projetos de lei considerados chave, como as mudanças nas regras de exploração do pré-sal, a reforma trabalhista ou a redução da maioridade penal, nas bancadas de cada partido. Quanto mais liberal forem os posicionamentos dos deputados do partido, mais à direita a legenda aparecerá no gráfico. Entre os grandes, o PSDB se destaca nessa posição. Da mesma forma, votações mais conservadoras fizeram as legendas aparecer nos quadrantes superiores. As barras que separam os campos ideológicos representam a média geral da votação.

O gráfico é uma aproximação: se outras votações tivessem sido escolhidas, ou se o período de tempo fosse outro, o resultado seria ligeiramente diferente. No entanto, dificilmente algum dos partidos migraria para outro quadrante ideológico.

Além disso, este tipo de gráfico traz distorções no caso de partidos muito pequenos, com menos de três ou quatro deputados: os votos de poucos parlamentares ganham peso desproporcional. É o caso do PRP, do PEN e do PSL, entre outros. No geral, porém, a literatura de ciência política costuma classificar os partidos brasileiros de forma próxima a esta.

Votações

Quais votações foram consideradas? No eixo econômico, foram levados em conta o Novo Regime Fiscal (a chamada “PEC do Teto de gastos”), a votação da reforma trabalhista (abril de 2017), a que ampliou a terceirização (22 de março), e a liberação de cursos de pós-graduação pagos em universidades públicas. Por fim, analisou-se a votação que desobrigou a Petrobras de participar de todos os projetos de exploração do petróleo da camada pré-sal. Quanto mais acima na tabela abaixo, mais liberal foi o partido nestas votações.

Tabela mostrando a porcentagem de apoio dos partidos na Câmara dos Deputados a medidas liberais na economia
Image captionNas votações analisadas, a maioria dos deputados votou de forma mais liberal na economia

Os partidos acima da linha vermelha foram aqueles cujos deputados adotaram posições mais liberais que a média. Abaixo, estão as siglas com posicionamentos mais estatistas (que defendem mais presença do Estado e mais regulação das atividades econômicas).

A segunda tabela mostra como os partidos se comportaram em votações de projetos considerados conservadores no campo social. Entram aí a redução de reservas ambientais no Pará e em Santa Catarina (maio de 2017), a votação que desfigurou o pacote das “10 medidas contra a corrupção” enviadas pelo MPF; e a redução da maioridade penal para 16 anos, entre outros. Os partidos abaixo da linha vermelha foram aqueles cujos deputados votaram de forma menos conservadora.

Tabela mostrando apoio dos partidos na Câmara dos Deputados a medidas conservadoras
Image captionEm temas sociais, a maioria dos congressistas age de forma conservadora

As votações acima foram escolhidas por terem causado divisão entre os deputados e despertado o interesse da opinião pública. Além disso, trata-se de situações em que houve votação nominal no Plenário, permitindo que o voto de cada deputado fosse contabilizado e registrado.

“Quando você vê todos os partidos somente do ponto de vista da corrupção, algumas divisões que existem acabam apagadas. Perde-se de vista o debate sobre papel do Estado na economia, sobre distribuição de renda, etc”, diz a cientista política e professora da Universidade de Brasília (UnB), Flávia Biroli.

Biroli reitera que o resultado poderia ter sido outro, se o momento considerado para o levantamento fosse diferente. É o caso do PT, que tinha perfil mais liberal na área econômica enquanto estava no poder (de 2003 a 2016). Naquele momento, o PT deu continuidade a um processo de liberalização da economia que já estava em curso nos governos do PSDB (de 1995 a 2002), diz ela.

“Mas existem matizes, no que diz respeito à seguridade social, às relações de trabalho. Se você considerar as votações recentes da reforma trabalhista, da terceirização, isso fica mais claro. Talvez estejamos num momento, no debate público, em que haja interesse em esfumaçar essas diferenças”, diz. “O PSDB tem uma agenda voltada à iniciativa privada, e o PT foi pelo mesmo caminho. Mas no caso do PT há pressão das bases sociais no sentido contrário”, diz ela.

‘Socialismo fabiano?’

Voltando ao meme: seria o PSDB um partido de esquerda? Os dados acima sugerem que o PSDB não está agindo como um partido esquerdista no momento. Os tucanos foram os mais aguerridos na defesa das medidas econômicas liberais propostas pelo governo de Michel Temer. Mais até que o próprio PMDB, partido do presidente.

Reprodução de tuíte de Rachel Sheherazade em que ela sustenta a opinião de que o PSDB é de esquerda
Image captionA comentarista Rachel Sheherazade vê o PSDB como um partido de esquerda (Foto: Reprodução Twitter)

A associação entre o PSDB e a esquerda remonta à fundação da sigla, em junho de 1988. O partido foi criado por dissidentes que romperam com o PMDB, então no poder com José Sarney (1985-1990). Ao enumerar os objetivos da nova sigla, o manifesto de fundação tucano apresenta vários pontos típicos da esquerda: distribuição de renda, erradicação da miséria, reforma agrária, fortalecimento da seguridade social e até auditoria da dívida externa brasileira.

Trata-se de um programa nos moldes da socialdemocracia europeia. Daí inclusive o nome.

Já o socialismo fabiano é uma corrente de pensamento surgida na Inglaterra do século 19, e que via na transformação gradual da sociedade o melhor caminho para chegar ao socialismo. O nome vem da Sociedade Fabiana, um think-tank(centro de estudos) que existe até hoje. “Nós defendemos meios graduais, reformistas e democráticos para o atingimento de finalidades radicais”, diz o site do grupo. Assim, só é possível ligar o PSDB ao socialismo fabiano em sentido figurado.

“Quem me dera [que o PSDB fosse socialista fabiano]. Significaria pelo menos que o partido estaria lendo. Eu conheço pouca gente no PSDB que lê. É o caso de Fernando Henrique Cardoso, de José Serra, e de poucos outros (…). O PSDB nunca teve nenhuma relação com esse movimento”, diz o sociólogo e escritor Sérgio Abranches.

‘É conveniente que todos pareçam iguais’

Há um consenso estabelecido entre os estudiosos da ciência política: é sim possível discernir diferenças na atuação de cada legenda, ainda que seja difícil para o eleitor identificar a tendência ideológica de cada um.

Esta dificuldade se deve ao modo como o sistema político brasileiro funciona e aos próprios políticos, que costumam subestimar o interesse do eleitor em votar conforme um conjunto de ideias. Na hora da eleição, o líder político prioriza o atendimento de interesses materiais e imediatos (uma rua asfaltada, a construção de um posto de saúde) em detrimento de um debate sobre objetivos de longo prazo. É o que diz o cientista político e professor da UnB Carlos Mello Machado.

Machado afirma ainda que o sistema político acentua esse tipo de confusão com a criação de novas legendas a todo momento (hoje, há 35 partidos em funcionamento no país) e com as mudanças de nomes de algumas siglas. É o caso do antigo PTN, que passou a se chamar Podemos, e do Pen, que deve mudar de nome para “Patriotas” ou “Prona”.

“Para alguns líderes políticos, é interessante que haja essa confusão, e que todos pareçam mais ou menos iguais. Passa a ser uma forma de se perpetuar no poder”, analisa Machado.

André Shalders

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