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Imagem externa do Brasil é irrecuperável com Bolsonaro

Alan Santos/ PR Imagem externa do Brasil é irrecuperável com Bolsonaro

A viagem do presidente Jair Bolsonaro à Rússia é mais vitrine do que substância, e a esta altura do campeonato a imagem externa do Brasil é irrecuperável sem uma mudança de governo.

Em poucas palavras, essa é a visão de Hussein Kalout, pesquisador na universidade de Harvard, conselheiro internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e editor-chefe da revista que o influente think tank lança hoje, de publicação trimestral e acesso gratuito.

Na opinião de Kalout, o mundo “está aguardando o governo Bolsonaro terminar para retomar uma agenda de grande porte com o Brasil”.

Qual a leitura que o senhor faz da viagem do presidente Bolsonaro à Rússia?

O governo Bolsonaro se caracteriza pela ausência da diplomacia presidencial. O mandato tem sido caracterizado pelo isolamento do Brasil nas relações internacionais.

O isolamento foi uma opção. O Brasil passou a se contrapor ao diálogo coletivo, a atacar o sistema multilateral, a defender diretrizes que contrariam o senso comum, por exemplo, na questão do meio ambiente.

Os números provam que existe desmatamento crescente, que houve um desmantelamento dos aparatos de fiscalização, e tudo isso, obviamente, coloca o Brasil numa situação de isolamento.

Eu diria que o Brasil se colocou contra o mundo. Essa missão à Rússia não obedece a uma orquestração estratégica, ela busca mostrar que Bolsonaro pode ser recebido pelo presidente de uma grande potência.

A substituição do chanceler era fundamental, era necessária para a sobrevivência do Itamaraty como instituição de Estado. Houve uma mudança no ambiente do Itamaraty, mas não da política externa.

França é menos estridente, mas, no final, a política externa é a mesma, porque o presidente não mudou. A instituição deixou de ser exposta e ridicularizada, mas a substância é a mesma.

Visitar Putin será, basicamente, uma vitrine?

A conjuntura é satisfatória para ambos (Bolsonaro e Putin). O presidente russo mostra que recebe líderes estrangeiros e que não está isolado, que dialoga com países relevantes no sistema internacional para além das potências europeias, e Bolsonaro mostra que é capaz de exercer diplomacia presidencial.

O convite foi feito em 2019 e a aceitação veio em um momento em que o presidente (brasileiro) precisa mostrar que é capaz de ser recebido por alguém do peso de Putin.

Objetivamente, a agenda está muito aquém do que pressupõe uma relação da estatura de Brasil e Rússia. Em essência, Bolsonaro está indo para expandir o mercado de exportação de carne, em troca de insumos que possam servir para a produção agrícola.

Mas não há mais do que isso. É mais vitrine do que substância. Serve a ambos para alimentar a narrativa de que podem desenvolver uma relação de cooperação independente do eixo euroamericano.

O presidente argentino, Alberto Fernández, visitou recentemente Putin.

Sim, mas Fernández, ao contrário de Bolsonaro, não está isolado. A Argentina busca diversificar suas relações e, para a Rússia, as possibilidades de ganho com a Argentina são maiores.

Os Estados Unidos tentaram impedir a viagem de Bolsonaro.

A visita pode ter impacto negativo na relação do governo brasileiro com os EUA e os países europeus?

A pressão americana é oriunda de uma preocupação que se vincula a uma possível legitimidade que o Brasil poderia aferir à intenção russa de invadir a Ucrânia.

A estratégia americana está voltada para uma diretriz em que um maior isolamento da Rússia, uma maior pressão, tendem a evitar a invasão da Ucrânia.

Não vejo possível um cancelamento da viagem do presidente Bolsonaro, porque essa decisão deixaria o Brasil numa situação delicada.

Isso demonstraria que o Brasil não é soberano o suficiente para fazer o que foi determinado pelo Palácio do Planalto. Por outro lado, um eventual cancelamento não reavivaria a relação do Brasil com os EUA, nem com os europeus.

Todos estão aguardando o governo Bolsonaro terminar para retomar uma agenda de grande porte com o Brasil.

As viagens do ex-presidente Lula foram um sinal claríssimo de que existe desejo de dialogar com o Brasil, mas não com Bolsonaro.

O senhor percebe uma grande expectativa de mudança de governo no Brasil…

Tanto os europeus, como os asiáticos, americanos, todos acreditam que o potencial de convergência seria muito maior com um novo governo brasileiro de perfil mais democrático, mais preocupado com o tema das mudanças climáticas.

A reeleição de Bolsonaro é vista como uma continuidade do imobilismo do Brasil. O que se vê de fora é um governo enfraquecido e impopular.

Podemos esperar mais viagens do presidente Bolsonaro na tentativa de recuperar a imagem externa do Brasil?

A imagem do Brasil é irrecuperável com este governo. Não dá para corrigir os rumos no último ano, não é viável.

Apresentamos propostas na cúpula de Glasgow e o que vimos depois foi mais desmatamento. Qualquer governo terá mais credibilidade do que o atual.

A viagem à Rússia não recuperará a imagem do Brasil, nem modificará percepção de líderes internacionais. Das dez maiores potências do mundo, nossa relação está danificada com oito, incluindo EUA, França, Alemanha e China.

Como o senhor observa o Brasil na região?

O Brasil sempre foi um elemento estabilizador na região. Um governo com mais credibilidade, mais equilibrado em suas abordagens, tende a alterar a região dando mais estabilidade.

Começando pela Venezuela, ainda que não se concorde com as práticas do governo Maduro, que se reconheça o déficit democrático, a coerção ou o uso da violência não são fios condutores da nossa doutrina diplomática, nem de nossos interesses estratégicos na América do Sul.

Bolsonaro teve atritos com vários governos, até mesmo governos de direita se distanciaram. Estamos à deriva e imobilizados na América do Sul. Se não se consegue liderar no plano regional, perde-se força gravitacional no mundo.

Nossa maior preocupação histórica na América do Sul sempre foi evitar a formação de coalizões antibrasileiras e o Bolsonaro permitiu isso.

O Cebri está lançando uma revista sobre relações internacionais num ano eleitoral no Brasil. Qual é a contribuição que se busca fazer?

A revista não nasce em razão do ano eleitoral, nem da existência de uma política externa errática em relação ao interesse nacional.

Ela busca oferecer à comunidade de relações internacionais um veículo para que se faça um debate qualificado sobre os interesses estratégicos do Brasil no mundo.

Estamos num momento de encruzilhada. No ano de nosso bicentenário, estamos no fundo do poço em matéria de relações internacionais.

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