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Brasil Homófobo: Assassinatos de pessoas trans aumentaram 41% em 2020

Em 2020, 175 mulheres trans foram assassinadas no Brasil. O número representa um aumento de 41% em relação ao ano anterior, quando 124 pessoas trans foram mortas.

O dado é apresentado no dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), lançado nesta sexta-feira (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans.

O índice do ano passado está 43,5% acima da média de assassinatos em números absolutos desde 2008, quando o monitoramento foi iniciado. Houve um aumento de 201% dos crimes nesse período.

Diferente dos outros anos, em 2020 todos os assassinatos foram contra travestis e mulheres trans, não tendo sido encontradas evidências sobre o assassinato de homens trans/transmasculinos.

Os meses com o maior número de assassinatos foram janeiro, fevereiro, maio, junho, agosto e dezembro. Ou seja, houve aumento significativo das mortes mesmo durante a pandemia do novo coronavírus, quando a população trans se encontrou em maior situação de vulnerabilidade socioeconômica.


Fonte: Dossiê Antra 2020

Em números absolutos, São Paulo foi o estado que registrou a maioria das mortes, com 29 assassinatos, um aumento de 38% dos casos em relação ao ano anterior. Esta é a segunda alta consecutiva no estado, já que em 2019 houve aumento de 50% em relação a 2018.

São Paulo é seguido pelo Ceará, com 22 casos, um aumento de 100% em um ano. O estado nordestino chamou a atenção da mídia pelos recorrentes casos entre julho e agosto, período em que ocorreram nove assassinatos.

A Bahia aparece em terceiro, com 19 assassinatos. Os três estados aparecem entre os primeiros na lista desde 2017.

Já Minas Gerais e Rio de Janeiro ocupam, respectivamente, a quarta e quinta posição no relatório.

Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e uma das autoras do dossiê, afirma que a violência contra a população trans está intimamente ligada à falta de direitos básicos como educação e saúde, assim como a exclusão familiar e ausência completa de políticas públicas.

Foram as diversas formas de violências e o descaso estrutural do Estado que, segundo ela, impossibilitaram as mulheres trans de realizar o isolamento social durante a proliferação do coronavírus, deixando-as mais expostas à contaminação e à violência durante a maior crise sanitária da história.

“Estamos falando de uma população onde a maioria vive em situação de vulnerabilidade e realmente precisou, durante a pandemia, continuar na rua e tendo que se prostituir. Onde elas eram muito mais expostas, visto que tinha menos policiamento, menos pessoas na rua, um cenário que favorece a impunidade”, diz Bruna.

A Antra identificou que 72% dos assassinatos foram justamente de travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo. Segundo a organização aponta, 90% desta população está a prostituição, enquanto somente 6% está no mercado formal e 4% na informalidade.

Mulher trans e militar da marinha, Benevides afirma ainda que os crimes são caracterizados por requintes de crueldade, pelo uso excessivo da força e vandalização dos corpos. Para ela, os assassinatos são impulsionados pelo discurso de ódio reverberado em todo o Brasil.

“Observamos um aumento desproporcional [dos casos] no mesmo momento em que a política governamental, principalmente o governo federal, admite publicamente, inclusive na esfera internacional, uma agenda e postura anti-trans e anti-gênero“, aponta Benevides.

Segundo ela, ao se posicionar contra o debate da diversidade de gênero, o governo torna a população trans em uma inimiga. “Quando isso entra na mente do cidadão comum, estimula esse ódio que se reverbera em um assassinato. O discurso não mata, mas direciona o alvo da violência”, critica a ativista.

Além dos casos de morte violenta, Benevides ressalta que esse discurso também “leva ao suicídio, ao adoecimento por questões de saúde mental”.

“São vários assassinatos: o simbólico, quando as pessoas não têm a identidade de gênero ou nome social respeitados, quando as pessoas trans não são contratadas ou não transitam nos ambientes sociais, e por fim, o assassinato para aniquilar a existência”, aponta.

De acordo com a organização Transgender Europe, em 2020, o Brasil também se manteve em primeiro lugar entre as nações que mais assassinam pessoas trans em todo o mundo pelo 13º ano consecutivo.

Quando e onde?

Somente entre março e abril, enquanto a covid-19 começava a se alastrar pelo país, 66 assassinatos já haviam sido registrados.

A tendência de crescimento se manteve e, no quarto bimestre, entre julho e agosto, o número de óbitos do ano inteiro de 2019 já havia sido superado com o registro de 132 mortes.

Os casos continuaram acontecendo até que, nos últimos dois meses do ano houve um aumento de 149 para 175 assassinatos.

De acordo a Antra, a maior concentração das mortes foi no Nordeste, que concentrou 43% dos crimes. A região se mantém nessa posição desde a publicação do primeiro relatório, em 2017.

A região Sudeste aparece em seguida com 34% dos casos. A região Sul está em terceiro com 8%. Tanto a região Norte quanto a Centro-Oeste registraram 7%.


Perfil das vítimas

O marcador racial da transfobia também se evidencia com os dados do relatório: travestis e mulheres trans negras, pretas e pardas correspondem a 78% dos caos. Somente em 3% do total de casos não foi possível identificar a raça das vítimas fatais.

Outro ponto que chama a atenção é a idade das mulheres trans assassinadas, que, a cada ano, tem morrido cada vez mais jovens.

Segundo o Mapa dos Assassinatos 2020, a idade média das vítimas foi de 29,5 anos, o que solidifica o dado que a expectativa de vida de transexuais brasileira é de 35 anos, metade da média nacional.

Considerando os 109 casos em que foi possível identificar a idade das vítimas, 61 (56%) delas tinham entre 15 e 29 anos. Outras 31 (28,4%) possuíam entre 30 e 39 anos, 8 (7,3%) entre 40 e 49 anos e 9 (8,3%) entre 50 e 59 anos.

Do total, 71% dos assassinatos aconteceram em espaços públicos, sendo que 8 vítimas se encontravam em situação de rua.

O dossiê é enfático ao denunciar que a população trans permaneceu desassistida mesmo durante a pandemia. As pesquisas estimam que cerca de 70% das travestis e mulheres transexuais não conseguiram acesso às políticas emergenciais do Estado como o auxílio-emergencial.

Problemas com o nome social, por exemplo, além da própria precarização da vida cotidiana, impediu que muitas se inscrevessem nas plataformas institucionais. Sem ter outra opção, o trabalho nas ruas continuou, expondo ainda mais essa população ao vírus em todas as fases da pandemia.

A publicação da Antra cita também um estudo amostral no Rio de Janeiro, feito em parceria com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos da Religião (Iser) e Instituto Unibanco.

De 150 travestis e mulheres transexuais, 58,6% declarou pertencer ao grupo de risco para a covid.

Não houve também orientações de saúde voltadas específicamente para a realidade da população trans. Ainda que não existam estudos conclusivos, a organização responsável pelo dossiê pontua que o uso de hormônios e silicone industrial são fatores de risco para o coronavírus.

O silicone pode ocasionar processos inflamatórios e a hormonização desassistida o aumento da pressão arterial.

A partir da análise de informações enviadas aos canais da Antra e outros casos divulgados na internet, 16 óbitos de pessoas trans em razão da doença respiratória foram registrados.

Porém, diante da dificuldades das instituições em identificar as pessoas a partir de suas identidades de gênero e não exclusivamente pelo sexo/órgão genital, o dossiê aponta que o número pode ser bem maior.

Vivências desconhecidas

A falta de informação sobre a população trans não se restringe apenas ao momento da pandemia. Bruna Benevides explica que esse é um problema estrutural no Brasil, onde há um verdadeiro apagão de dados quando se trata dos cidadãos LGBTIs e, principalmente, das pessoas trans.

Em 2020, por exemplo, foi a primeira vez que o Anuário Brasileiro de Segurança Pública trouxe dados sobre violência contra  LGBTIs. No entanto, 15 estados e o DF não têm qualquer informação sobre violências motivadas por orientação sexual ou identidade de gênero.

As demais unidades da federação trazem informações dos Sistema de Informações de agravo de Notificação (Sinan), que conta com dados de atendimentos de ocorrências no sistema público de saúde e do Disque 100.


Na opinião de Bruna Benevides, a subnotificação dos casos de violência e o “apagão de dados” sobre a população trans é parte de uma política deliberada.

 “Não saber quantas somos, por exemplo, não termos dado populacional sobre a população LGBTI, mostra que o Estado não se interessa em traçar esse perfil, justamente para não reconhecer quais as especificidades.

Quando a subnotificação se torna uma política, o Estado não tem que investir verba e legislação contra a transfobia”, explica a ativista.

Frente ao que o dossiê define como “política de morte” e manutenção contínua da violência por meio do discurso de ódio, a perspectiva é negativa para a sobrevivência das mulheres trans brasileiras.

Logo nos primeiros dias do ano, Keron Ravach se tornou a mais jovem transexual assassinada no país. A adolescente de 13 anos foi morta a pauladas, pedradas, socos e facadas no município de Camocim, no interior do Ceará.

“Já temos 11 assassinatos em 2021 e sete tentativas de assassinato. São 18 ocorrências em 29 dias. É muito preocupante”, lamenta Benevides.

Reportagem de Lu Sodré, na íntegra.

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