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O BURRO, A LINGUAGEM E A REALIDADE

“Jornal é que nem burro”, costuma dizer meu sagaz avô, “o que bota em cima ele carrega”. Lembrei da frase ao contemplar a seguinte declaração do vice-presidente da República, Hamilton Mourão:

Quem alinha discurso é bandido. Homens de honra, como Augusto Heleno, Braga Netto e Ramos, falam a verdade e cumprem a missão.

Mourão está se referindo aos depoimentos contraditórios dos generais/ministros no processo que apura as acusações de Sergio Moro a Jair Bolsonaro.

Não é incrível?

Depoimentos inverídicos sobre o mesmo fato agora são, segundo o vice-presidente, sinal de honestidade!

“Quem alinha discurso é bandido” e, consequentemente, quem relata os mesmos fatos de maneira contraditória é íntegro, correto, fala a verdade…

O jornal está em extinção, o que não retira a validade do chiste do meu avô – basta uma pequena atualização tecnológica.

O Twitter (rede social onde Mourão postou a declaração), o Facebook, os portais de notícias, os blogs, todas as plataformas são como burros; o que colocar em cima, carregam. (Menos mal que ainda há burros com critérios éticos, jornalísticos e lógicos mínimos.)

Ainda que chocante, esta distorção sistemática da língua portuguesa é cada vez mais comum na vida pública brasileira.

O próprio Moro, por exemplo, é aclamado por um setor importante da sociedade como baluarte da moral e da lei.

O slogan que adotou no Ministério da Justiça (e agora para si próprio) é um primário “Faça a coisa certa sempre”.

Fora do mundo paralelo dos burros moristas – que, como já sabemos, carregam qualquer coisa que lhes coloquem em cima – é fácil constatar que, apesar das abundantes palavras laudatórias, Moro é um rematado delinquente.

O número de vezes em que atropelou a lei com evidentes fins políticos e pessoais é prodigioso.

Chamá-lo de criminoso, contudo, pode não pegar bem em determinados círculos; “herói” ou “exemplo” são termos mais utilizados para designar o ex-juiz e ex-ministro, em uma espetacular inversão linguística das coisas.

Jair Bolsonaro, então, é hours concours no quesito distorção da língua pátria.

Nos seus apopléticos discursos ele é o presidente mais democrático, honesto e respeitador da Constituição de nossa história.

De sua boca ouvimos que a pandemia iria matar “umas 800 pessoas”, que era uma “gripezinha” e, mais recentemente, que ela “já está indo embora”.

Sua prática é exatamente oposta ao que diz: Bolsonaro é autoritário, está envolvido em maracutaias muito mal explicadas, não respeita sequer as orientações do seu próprio ministério da saúde, quanto mais as ordens da Constituição.

Quanto à pandemia, o Brasil caminha para ser o epicentro mundial, beirando as mil mortes oficiais diárias – o número real é, certamente, muito maior.

Entretanto, como não se tem notícia de burro questionando a carga que deve carregar, o presidente segue, impávido, mentindo como se não houvesse amanhã.

Um de seus cretinos slogans é, desde as eleições de 2018, o “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Um escárnio de proporções continentais e um sacrilégio idem.

Em um artigo de 2018, Marcio Sotelo Felippe fez uma interessante consideração sobre os golpes de Estado de novo tipo:

A vigência e o texto da Constituição não se alteram, mas sua matéria é esvaziada por meio de interpretações anômalas, bizarras, e assim instaura-se um estado de anomia constitucional em que tudo é permitido porque desconsidera-se até mesmo o quadro lógico mínimo estabelecido pela linguagem normativa.

Se é possível desconsiderar o “quadro lógico mínimo estabelecido pela linguagem normativa” sem consequências, tudo é permitido.

É o que estamos presenciando: cada agente político cria sua própria versão da realidade, como se tudo fosse uma questão de opinião, e a importância dos fatos vai minguando, minguando, até desaparecer.

Quem quer saber dos fatos? As versões de pessoas ilibadas como Bolsonaro, Mourão ou Moro sobre as coisas bastam. Se entrarem em conflito, cada cidadão pode escolher a sua versão e bola pra frente. Segue o jogo.

Esse bizarro estado de coisas, todavia, não parece ser sustentável.

Mesmo quando a linguagem é usada com precisão e beleza, ela não pode ser confundida com a realidade, pois trata-se apenas de um indicador, uma placa que aponta para algo real. Quando é usada para confundir e maquiar o que é real, então, a linguagem se torna frágil como a masculinidade do bolsonarista médio.

A realidade é uma força de grandeza distinta. Seu inexorável destino é passar por cima dos que se arvoram a impor aos demais suas visões de mundo convenientemente distorcidas. A realidade cedo ou tarde se impõe.

O genocídio, os mortos sem necessidade, a barbárie, o autoritarismo e a bandidagem não permanecerão escondidos sob mentiras grotescas e “raciocínios” pueris para sempre.

Pedro Breier é graduado em direito pela UFRGS

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