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As queimadas e os desmatamentos revelam-se obras reacionários do governo e do capital

BOLSONARO E AS AÇÕES REACIONÁRIAS

Acossado por críticas disseminadas, multilaterais, duras e persistentes – internas e no exterior – sobre o desmatamento e os incêndios havidos no território nacional, concentrados nas coberturas florestais amazônicas, nos cerrados mato-grossenses e no bioma pantaneiro, Bolsonaro migrou sem eira nem beira de uns para outros argumentos.

Lançou fanfarronices a esmo, em que os vilões também mudaram conforme as circunstâncias e as próprias conveniências de ocasião, inclusive relativamente às caras dos auditórios.

Persistindo em suas metas ultradireitistas – por sinal, inamovíveis –, segue tateando em todas e cada uma das picadas justificatórias que se lhe apresentam como promissoras. De fato, experimenta os ensaios esdrúxulos de “colar” versões inverossímeis, à espera pragmática de algum sucesso político para eludir a sua responsabilidade inconfessável.

Frequentemente, professa o negacionismo puro e simples, coerente com a sua concepção de mundo irracionalista, o seu menosprezo ao conhecimento científico e o seu estranhamento em face da objetividade.

Quem se interessar pelo esfarelamento político – discursos desorganizados, fragmentados, centrífugos, desmemoriados e alheios às realidades ou atividades cotidianas –, basta lembrar suas declarações no dia 11/8/2020, quando participava da II Cúpula Presidencial no Pacto de Letícia pela Amazônia, que falam por si.

Mediante uma videoconferência, teve a cachimônia de afirmar: “não há nenhum foco de incêndio, nem um quarto de hectare desmatado” – só para constar, refere-se a uma superfície correspondente a dois campos de futsal. Como se não bastasse, arrematou sem ao menos corar: “é mentira essa história de que a Amazônia arde em fogo”.

Em outras passagens do pronunciamento, paradoxalmente, baixou a bola que chutara para o alto: procurou minimizar os fatos e fingir receptividade aos apelos de uma parcela do latifúndio capitalizado e de seus fregueses mundiais.

No mesmo discurso a mandatários de países amazônicos, reconheceu, desmentindo-se descaradamente, a devastação, mas defendeu – com base nos dados parciais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que atacara publicamente no ano passado por divulgar informações consideradas incômodas – o balanço inverossímil de sua redução.

Em outra frase, desceu novamente o tom e a voz, talvez prestando contas para setores próximos – interlocutores na sociedade política e na sociedade civil –, que manifestavam descontentamento: “Nosso empenho é grande, é enorme no combate aos focos de incêndio e ao desmatamento.”

Em certa ocasião caiu no determinismo climático mais rasteiro, apegando-se à constatação de que ao sul da linha equatorial, onde quase totalmente se localiza o País, a estação mais seca transcorre de julho a setembro, estendendo-se no máximo até outubro. Em 23/8/2020, falando por cadeia radio-televisiva, o chefe protofascista leu suas “colas” geográficas:

“Estamos numa estação tradicionalmente quente, seca e de ventos fortes, em que todos os anos, infelizmente, ocorrem queimadas na região amazônica. Nos anos mais chuvosos, as queimadas são menos intensas. Em anos mais quentes, como neste (sic.) 2019, elas ocorrem com maior frequência.”

Obviamente, a combustão seminatural – pois o ser humano interfere na objetividade física e química, transformando-a com forte ou fraca densidade – também ocorre, mas secundariamente, como determinação acessória.

Demônios e armadilhas

Não poderiam faltar os ataques aos inimigos e bois de piranha, tangíveis ou fictícios, multiplicando-se fake news com finalidades políticas. Sobre os preservacionistas, preferiu conspirar:

“Então, pode estar havendo, sim, pode, não estou afirmando, ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o Governo do Brasil.” (23/8/2020)

Sobre os juízos externos, tentou apossar-se dos anseios nacionais: “Sabemos o quanto somos criticados, de maneira injusta, por muitos países do mundo. […] Essa região é muito rica […].

Afinal, o Brasil é uma potência no agronegócio.” (11/8/2020) Sobre as gentes locais, posou de autoridade gentil: “o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência em áreas já desmatadas”. (22/9/2020)

A julgar pelas realizações mais recentes, os “cães-tinhosos” que pontificam na demonologia bolsonariana seriam os culpados por inventarem ou provocarem, só em agosto, 29.308 incêndios ilegais nas vegetações.

O montante representa o maior número da última década, principalmente aglomerados no Pará e no Amazonas, sendo 48% somente nas zonas relacionadas com a Rodovia BR-163.

Por dia, sobrevieram quase mil focos na região norte e 200 no Pantanal. Tais cifras, de fato ciclópicas, mostram insofismavelmente como é absurdo apontar o dedo para outros, qual meliante que, pego em flagrante, procura tergiversar quando interrogado sobre o delito.

Como toda mentira que pretenda ir além de ingênuos deslizes cotidianos precisa recuperar pelo menos um traço da realidade para ter alguma credibilidade, urge a descodificação da metralhadora presidencial giratória.

O capitão de milícias – trata-se não daquelas tropas legais existentes “no tempo do rei” ou dos novecentos cariocas, em que pela “bondade do major” passou a dar praça o “Sargento” cujas “Memórias” Manoel Antônio de Almeida colocou no título de seu romance irônico, mas destas formações criminais de hoje – tenta justificar suas políticas nos seguintes fatos.

Primeiro, a presença de ONGs que promovem uma espécie de ambientalismo conservador e concebem as populações originárias como nações autônomas e meras identidades particularistas, forasteiras relativamente ao todo nacional-popular.

Na sequência, os interesses imperialistas sobre a vastidão amazônica, em desafio ao direito soberano do Brasil relativamente ao território pátrio; Por fim, a milenar koybara tupi-guarani, que persiste ainda em populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas e caiçaras.

Pretende, pois, oferecendo pílulas de veneno envoltas em finas películas de realidade cuidadosamente selecionada, matar vários coelhos com apenas um lance de bodoque. Trata-se de, simultaneamente, realizar três manobras diversionistas. Blefar sobre a própria responsabilidade pela destruição generalizada e indefensável.

Culpar os sujeitos e alvos dos segmentos e instituições preocupados com as políticas e práticas protetivas. Tentar colocar os seus adversários de toda espécie na sinuca de se unirem aos lúciferes para manter a postura oposicionista ou, ao reverso, rechaçarem-nos e arrefecer o combate à sanha incendiária.

O embarque na provocação significaria cair no alçapão e ceder à fraude. Inversamente, a decifração faz soçobrar o artifício primário e canhestro, baseado na falsificação de uma totalidade pelo realce a uma partícula minúscula da objetividade.

Postura em contradições complexas

Os pioneiros sociais arguem o biofilismo naturalista, que retira do problema ecossistêmico a primazia do ser social – o gesellschaftlichen Seins de Marx –-, inclusive quando se traduz em questão nacional e lutas de classes, em humanidade universal-concreta.

Especialmente, reprovam tal concepção de mundo quando promovida, financiada e propagandeada por grupos monopolista-financeiros e suas instituições associadas ou subordinadas.

Rechaçam, também, com a merecida ênfase, as cobiças ou intervenções de grandes potências sobre os recursos e assuntos internos brasileiros, na forma de governamental submissão à geopolítica trompista, como acontece agora, ou de sansões político-econômicas, tal como verbalizou Biden.

Por fim, recusam quaisquer tipos de queimadas sem permissão – por sinal, ilegais –, mesmo quando executadas pelos “de baixo”.

Tais orientações nem de longe ou por alguns segundos podem conduzir à confusão no combate às políticas do Planalto e de seus acólitos, que promovem ou festejam o fogaréu, assim como procuram embaralhar os dolos e as investigações.

Merece destaque uma passagem no discurso de setembro, durante a protocolar oração de abertura na 75º Assembleia Geral da ONU, em que o atual presidente procurou explorar, espertamente, as “contradições no seio do povo” – para lembrar uma conhecida expressão de Mao Tsetung, usada em 27/2/1957 na Conferência de Estado.

Ao adotar certa pose compreensiva, como de um pai amoroso que reprova o filho e releva seu ato inerente à imaturidade para justificá-lo até as raias do apoio integral, correspondeu à expectativa da horda falangista, que nas redes sociais comemorou e multiplicou as interpretações dos posts palacianos.

A frase que se refere às devastações “no entorno leste da floresta” intencionou, de caso muito bem pensado, culpar os setores pobres da zona rural, representados pelo “caboclo” e pelo “índio”, como já o fizera Guedes ao declarar que “o pior inimigo do meio ambiente é a pobreza” (21/1/2010).

Sabe-se que os camponeses, frequentemente, usam combustões controladas para promover o plantio rotativo e suprir a gleba com cinzas ricas em micronutrientes – potássio, fósforo, cálcio e magnésio, entre outros.

São, além dos posseiros, arrendatários e pequenos proprietários ligados aos labores agropecuários de cunho familiar – sem ou com assalariamento complementar e não raro parental –, variadas camadas cujas relações precedem, historicamente, o trabalho parcelário contemporâneo e subsistem na formação econômico-social, vale dizer, nos poros do capitalismo.

A técnica, que se baseia em forças produtivas primevas, é atrasada e perigosa para os recursos naturais. Além de exaurir o terreno, abre margem a eventuais incêndios por acidente, sendo, portanto, reprovável, mesmo que os alastramentos involuntários aconteçam esporádica e pontualmente.

Nas condições atuais, porém, com a carência de capital ou amparo federal, estadual e municipal, segue inerente à reprodução da vida popular campestre nos locais onde inexiste outra opção viável. Não faz sentido, pois, alvejá-la com invectivas morais ou coerção estatal.

Necessário, mesmo, é promover uma reforma agrária com assistência financeira, especializada e organizacional, capaz de abrir caminho para novos processos e formas de valoração material mediante força laboral humana, que transformem a coivara, de uma determinação antediluviana, em capítulo da história.

Capital e técnicas obsoletas

Tal situação é o reverso da conduta perpetrada pelo capital territorializado. Alguns mega proprietários – sejam conglomerados monopolista-financeiros, sejam fazendeiros aburguesados, sejam grileiros –, ávidos por expandirem as suas pastagens ou plantios em novas e grandes áreas ou investimentos, aniquilam riquezas nacionais pré-existentes nas terras estatais, ocupadas por famílias posseiras ou presenças tribais.

Sucede um vultoso, extemporâneo e ilegal processo de acumulação primitiva. Eis o que a propaganda governamental deseja encobrir, pois o incentiva como tópico de programa, discurso de autoridades superiores e prática de apoiadores rurais.

O fogo constitui o meio por excelência de se remover as coberturas verdes, abrindo espaço para especulação fundiária, industrialização agropecuária, contrabando madeireiro e mineração rasa ou subterrânea.

Não há, salvo exceções, combustão natural ou comportamento camponês premeditado. Em declaração à BBC News Brasil, o climatologista Carlos Nobre relata o procedimento padrão:

“A dinâmica principal é sempre assim: corta-se a floresta antes do período seco; espera-se […] secar durante uns dois meses”; depois, toca-se fogo. “E aí abre o espaço para […] plantar grama e fazer a pastagem. […] no começo do ano seguinte, começa a trazer o gado.”

Inexiste, aqui, a exclusiva reprodução de capital pela extração de mais-valia, complementada pela fecundidade intrínseca do solo – seja espontânea, como valor de uso autocriado, seja social, como renda para o proprietário moderno.

Há, sim, a interdição de vastidões públicas e de parcelas condicionadas – Reserva Legal e Área de Preservação Permanente – por sujeitos privados, incorporando-as como seus patrimônios.

Semelhante processo relaciona-se aos contenciosos que dividiram, em 25/9/2020, as representações da burguesia rural.

O setor ligado à Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), alegando “não mais serem convergentes” os “interesses e objetivos” apregoados na Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, bem como a influência de ONGs e as exigências que vão além do Código Florestal vigente, rompeu com a federação-mãe do latifúndio capitalizado.

Por seu turno, a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) lamentou a cisão e declarou em nota: “nossa credibilidade, ação pela sustentabilidade, legalidade e atuação apolítica do Agro nacional, no Brasil e no exterior, é histórica e dispensa comentários”.

Ademais, expressou preocupações com a pauta posta pelo mercado, a exemplo das conversas e ações concernentes à questão ambiental.

A investigação da Polícia Federal – talvez por setores sem controle integral da extrema-direita – reuniu elementos suficientes para indiciar latifundiários no Mato Grosso do Sul, que se organizaram para destruir uma parte considerável do Pantanal.

Fatos similares aconteceram em outros estados, eliminando-se a hipótese de uma tragédia geofísica e metereológica.

Portanto, é delinquência – delito reiterado, mas, em vez do sentido jurídico mais usual, em grande escala – generalizada, consciente, planejada, grupal e finalística, estimulada por declarações, medidas e omissões oficiais.

A postura do chefe protofascista não é o sucesso que lhe teria subido à cabeça ou seu fracasso em deter o desastre, como sugeriram comentaristas.

Revela-se uma obra reacionária, mormente a interdição cúmplice de políticas e órgãos dedicados à fiscalização e defesa do meio-ambiente.

Ronald Rocha é ensaísta, sociólogo e autor de Anatomia de um credo (o capital financeiro e o progressismo da produção).

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