Xingar o ex-capitão por meio de dezenas de qualificações morais, avaliações de desempenho ou diagnósticos psiquiátricos faz bem ao nosso fígado e muito mal à análise do cenário e à definição das melhores táticas
Por Julian Rodrigue
Manejar categorias psicológicas/psiquiátricas para caracterizar Bolsonaro e seu governo além de reforçar estigmas e discriminação contra pessoas com sofrimento mental não ajuda em nada na compreensão da conjuntura. Tenho insistido nesse tema.
Mas há outro viés preponderante nas adjetivações que o campo progressista direciona ao ex-capitão e sua família: trata-se de um conjunto de qualificações relacionadas à sua cultura, inteligência, capacidade cognitiva, competência, postura. São críticas éticas e estéticas.
Por que isso não ajuda em nada – aliás, só atrapalha – o entendimento da conjuntura e, consequentemente, a organização das ações da esquerda?
Primeiramente, há uma subestimação evidente e reiterada da força do bolsonarismo, de sua base social – do carisma e do talento comunicativo do ex-capitão. De seu tirocínio, resiliência e capacidade de liderar um movimento, aglutinar setores – tudo com assessoria e apoio estadunidense.
E com construção orgânica. Olavo de Carvalho é uma chave fundamental para entender o bolsonarismo, quase sempre por nós ridicularizada.
Em segundo lugar, qualificar o atual governo como inepto é utilizar parâmetros equivocados de julgamento. Não se avalia um governo de ultra-direita e disruptivo da mesma maneira que se trava o debate com a direita tradicional, com os neoliberais.
Foi rompido o pacto democrático de 1988. Houve um golpe em 2016. Neoliberais se aliaram com os neofascistas. Bolsonaro é fruto dessa ruptura, em um cenário mundial de crise do capitalismo e ascensão de projetos neofascistas.
Em terceiro lugar, toda vez que denunciamos o atual governo sem denunciar seu caráter autoritário e ultra-liberal estamos despolitizando a própria luta política. Levando o debate para um campo idealista, moralista.
E, ao mesmo tempo, propagamos certo auto-engano. Subestimamos o adversário. Se Bolsonaro fosse burro, não seria presidente. Se só fizesse bobagem, não teria tal sustentação popular e liderança comunicacional.
O quarto tópico: é preciso entender o neofascismo. O que parece ilógico, não o é. Há uma racionalidade, um projeto. Há teoria, aparato, intuição, objetivos.
Ao demitir Moro, por exemplo, Bolsonaro sangra um pouco, perde alguns pontos. Mas avança no controle do Estado (depura , corta na carne, mas se fortalece no médio prazo).
O fascismo se constrói, historicamente por meio uma base mobilizada, radicalizada. Morreram 5 mil. E daí?
O fascismo cultua a morte, celeborça ra a ffísica, é eugenista. Há uma estrutura de comunicação gigantesca que mobiliza a base bolsonarista.
Aliás, as últimas pesquisas mostram um fortalecimento da liderança presidencial em segmentos mais pobres, no Nordeste (efeito dos R$600?).
Se superarmos o senso comum e o fígado, podemos melhorar (politizando) as formas de carimbar negativamente o governo.
Por exemplo: que tal focarmo-nos na crítica ao projeto político?
Aos interesses de classe que Bolsonaro defende?
A explicar sua necropolítica?
A subordinação aos EUA?
Os arreganhos ditatoriais?
Vamos lá.
Que tal substituir bronco, tosco, paranóico, incapaz, louco, imbecil, por palavras que remetam à política, ao projeto, às opções ideológicas de Bolsonaro?
Tipo: autoritário, aprendiz de ditador, capacho dos EUA, anti-pobres, miliciano, defensor de bandido, corrupto, elitista, a serviço dos ricos, entreguista, reacionário, neofascista, machista, racista, transfóbico, homofóbico, irracionalista, sexista, neoliberal, ultra-conservador, e por aí vai.
Não é preciosismo. Sem bons diagnósticos não adotamos boas táticas. Patologizar a política, subestimar Bolsonaro ou acreditar que “o governo está para cair” só vai atrasar a reorganização do campo popular, das esquerdas, do PT.
“Não se afobe que não, que nada é pra já” (Chico).
Sem estudar, descrever, analisar e caracterizar profundamente o bolsonarismo, a nós só restarão o senso comum e a repetição de ações passadas, como se nada tivesse mudado.
Xingar direitinho Bolsonaro pode ser um primeiro passo para compreender o tamanho do problema e começar a preparar nossa reorganização e fortalecimento.
Mais política, mais racionalidade.
Mais estudo e formação.
Reorganização da comunicação, de alto a baixo, e giro às bases, aos territórios.
Tentar falar com o povo de novo, e não nos afundarmos na epidemia de lives que ninguém vê.
A vida é dura – a guerra, longa. Preparemo-nos.
Julian Rodrigues