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Hermenêutica para desinformados

Só um cara-de-pau como o presunto presidente do Brasil se mete a analisar textos da literatura bíblica com uma facilidade gloriosa. Plena de banalidade.

E quando o faz, (a partir do cercadinho do Alvorada) se dirige à sua tropa civil com vistas a produzir discriminação de pessoas, ataques à condição do nosso povo e garantia de fidelidade da “cosa mostra” que o serve e lhe dá ouvidos.

A última interpretação bíblica do recém “convertido” à causa ambiental (Perdoa Senhor!) foi sobre o chamado milagre da multiplicação de pães e peixes, ocorrida na região do lago Tiberíades e próxima à Páscoa/Pessach judaica. Trata-se, por exemplo, do capítulo 6 do Evangelho de João.

Seu discurso sobre o capítulo foi tão banal que Macedo, Waldomiro, Malafaia e toda a pastorada que os acompanha e com eles arrecada bilhões de reais deveriam chamar o presidente e dizer:

“Ô irmão Jair, por favor não faça mais análise da Bíblia porque a gente pode perder parte da irmandade. Afinal, todo mundo sabe que nós estamos fechados com Vossa Excelência e o nosso pacto fica meio chamuscado com sua conversa sobre a Bíblia. Talquei?”.

Certamente não o farão, pois não são homens de fé cristã e sim de arrecadação, de imposição de sua fábrica de discursos sobre a falsa prosperidade, de incompetência teológica, cuja aproximação ao poderoso exige privilégios e corte de impostos de igrejas abonadas com o dinheiro dos Pobres da Terra.

A única atenuante do Jair é que ele disse: “…se não me engano” ao iniciar sua “interpretação” político-religiosa.

Ora, novamente se enganou, como se engana todos os dias por desconhecer o Brasil, sua gente, suas necessidades, sua pobreza e sua morte ocasionadas por seu descaso, sua malvadez e sua brutal incompetência.

De qualquer modo, a “hermenêutica” do Jair Bolsonaro foi feita, se espalhou e só por mais este sacrilégio a figura não deveria receber qualquer afeto ou respeito dos verdadeiros crentes evangélicos do país e menos ainda votos, quer nele, quer em toda a sua tropa.

Jair se meteu a analisar um capítulo central da missão de Jesus no espaço aramaico e no mundo, presente nos quatro evangelhos, isto é, a premissa que introduz no campo da fé a Eucaristia e a missão terrena de Jesus.

E a sinistra figura comparou tais fenômenos com as políticas distributivas dos governos do PT, tanto para diminuí-las e desvalorizá-las como para demonstrar seu horror pelos pobres e necessitados.

Impossível não imaginar, na sequência de suas frases sempre malfeitas, que a distribuição milagrosa de pães e peixes transfere um caráter messiânico ao Partido dos Trabalhadores e seus dirigentes no governo. Com certeza eles e elas nem de longe desejam tal pecha.

Em nenhuma instância de sua “gramática” textual, Jair pensou e disse que o detalhe da multidão era valor de argumento, mas não de finalidade, até porque Jesus encara a multidão e faz críticas à sua conduta, o que provoca sua diminuição quantitativa e problematiza suas leituras da fé e da comunidade. Jair não discutiu se os governos do PT confrontaram os brasileiros (no sentido freireano) que precisaram de políticas distributivas em razão de uma história de humilhação, escravização, colonialismo e negação da vida.

Mais: ele sequer suspeitou que todo governo digno deve encarar seu povo, discutir os problemas com ele, fazer críticas quando necessário, mas manter a generosidade e o respeito que todas as pessoas merecem.

E mais: chamá-lo a pensar, a formular, a criar, a melhorar sua capacidade crítica. Uma hermenêutica digna faria associações mais complexas e completas, inclusive da ordem da política, visto que existe política em todas as ações humanas. O Jair só sabe achincalhar. Nada mais aprendeu.

O presidente, que não entende nada de Política, também não foi capaz de perceber que as políticas distributivas nos governos Lula e Dilma foram associadas aos projetos participativos em educação, habitação, emprego, saúde, trabalho (vide as Conferências Nacionais) e que nada disso existe no governo que ele dirige desde 2019.

Um governo que não criou, nem desenvolveu única política social pública, como este colunista destacou em texto anterior publicado na plataforma A Terra é Redonda.

O fenômeno central do capítulo 6 do Evangelho de João, que exibe mais detalhes do que os textos evangélicos similares, é a instituição de valores preparatórios ao último momento do tempo terreno de Jesus, o Cristo.

Ele retoma a memória sobre o Êxodo do Egito, vai ao Monte, como Moisés, revela sua condição eucarística de filho do Deus e se prepara para a traição, a morte e a ressurreição.

O hermeneuta canhestro e incompetente não viu nada disso, pois não tem olhos de ver.

Jair banalizou de tal maneira o texto que viu ali somente o interesse “pessoal” das multidões e que aquele que distribui pães e peixes também é culpado, porque no ato de distribuir enseja a mesquinhez da multidão. No mínimo, está a justificar o seu governo que não oferece nada, pois só ajuda a matar.

Deus meu, o Jair nada entende de multidão, nada entende de milagre, nada entende de eucaristia ou de similaridade de processos históricos que Jesus vivencia.

Suas comparações ofuscam e invisibilizam o texto aramaico e não constroem nada no presente, exceto sua loucura pela eleição e pelo voto de cabresto, ou pelo golpe militar sobre a terra já sofrida com escravizações, ditaduras, injustiças e desmandos.

Será que as escolas militares deste país não oferecem componentes curriculares com algo de história, um pouquinho de sociologia, alguma coisinha de política, de psicologia, de antropologia, reflexões que fazem pensar e fazer comparações ao menos dignas e inteligentes?

Ou então, talvez Jair, o pior presidente da República, também foi o pior aluno da escola militar… Jair não tem as qualidades do pior dos governadores atuais.

A instituição eucarística exige intensa reflexão sobre a fé, pois trabalha com multidões que se movem entre o símbolo do pão e sua vida real. No caso, a hora era sombria, dolorosa e o cálice amargo.

O pão distribuído é urgente e necessário, mas o essencial é a missão e seus espinhos, indispensáveis para a grande mudança da vida. Também para a chegada à Terra Prometida, como se lê nos textos hebraicos.

Pão e Terra, postos ali simbolicamente, coincidem com o que se nega a nossas multidões (a par de educação, saúde, ciência, habitação) a favor da mais mesquinha das politiquices, a bolsonarista. É esse que se “converteu” `a Ecologia? Vai provar, Jair!

Como é possível manter no poder uma figura que desfaz, em sua boca, a beleza de tudo, empobrece a literatura, faz da memória um fetiche, zomba dos fenômenos da fé e sugere o fim da vida indígena e quilombola pela falta de demarcação justa e pelo estímulo aos garimpeiros bárbaros.

Tal disposição sinistra com certeza faz de todo o seu governo e de todos os que, no governo, o aceitam e o servem um nada, um ninguém, a inexistência. Como Ricardo Salles não significa nada, inclusive o churrasco e os comensais da costela.

Brasília também dá sinais do sinistro. Saudades do Niemeyer e do Lúcio Costa. Mais ainda dos candangos. Os símbolos operam na vida. O hermeneuta precisa passar logo, junto com sua trupe.  Brasília merece estadistas.

Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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