Ele voltou. De forma explosiva.
Apenas dois dias depois de ser solto da carceragem da Polícia Federal de Curitiba, no sul do Brasil, após uma apertada votação de 6 x 5 no Supremo Tribunal Federal, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferiu um inflamado discurso de 45 minutos em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, na periferia de São Paulo e, usando seu inigualável capital político, conclamou os brasileiros a se lançarem a nada menos que uma revolução social.
Quando meus colegas Mauro Lopes, Paulo Moreira Leite e eu entrevistamos Lula na cadeia, ele somava 502 dias prisioneiro em sua cela. Em agosto, era impossível prever que sua soltura aconteceria no 580º dia, em inícios de novembro.
Sua primeira fala à nação após sua saga na prisão – que está longe de ter terminado – não poderia ser solene. Ele, na verdade, prometeu um pronunciamento detalhado para um futuro próximo.
O que ele fez, em seu inconfundível estilo de conversa informal, foi partir imediatamente para a ofensiva, atacando uma longa lista de todos os inimigos possíveis: aqueles que atolaram o Brasil em uma “agenda anti-povo”. Em termos de uma apaixonada fala política totalmente improvisada, esta já é uma peça antológica.
Lula detalhou as “condições terríveis” dos trabalhadores brasileiros de hoje. Ele rasgou em pedaços o programa econômico – basicamente um monstruoso sell-out – do Ministro da Economia Paulo Guedes, um Chicago boy e pinochetista, que está aplicando o mesmo receituário falido de políticas neoliberais extremas, que hoje está sendo denunciado e desmoralizado todos os dias nas ruas do Chile.
Ele analisou em detalhes a forma como a direita brasileira abertamente apostou no neo-fascismo, que é a forma que o neoliberalismo tomou no Brasil de tempos recentes.
Ele arrasou com a imprensa convencional, na forma do ultra-reacionário e até agora todo-poderoso império Rede Globo.
Em um gesto de gênio semiótico, Lula apontou para o helicóptero da Globo que sobrevoava a multidão reunida para seu discurso, implicando que a organização é covarde demais para chegar perto dele no nível do chão.
E, o que é muito importante, ele tocou no cerne da questão Bolsonaro: as milícias.
Não é segredo para os brasileiros informados que o clã Bolsonaro, com suas origens no Veneto, está se portando como uma espécie de cópia-carbono crua, barata e escatológica dos Sopranos, chefiando um sistema fortemente miliciano e apoiado pelos militares brasileiros.
Lula descreveu o presidente de uma das maiores nações do Sul Global como nada menos que um chefe de milícias. Isso vai pegar – no mundo todo.
Acabou-se o “Lulinha paz e amor”, que antes era um de seus lemas favoritos. Chega de conciliação. Bolsonaro agora tem que enfrentar uma oposição real, sólida e feroz, e não pode mais fugir do debate público.
A jornada de Lula na prisão foi uma experiência extraordinariamente libertadora, que transformou um estadista antes abatido em um guerreiro sem medo, que mistura o Tao ao Lobo das Estepes (tal como esboçado no livro de Hermann Hesse).
Ele está livre como nunca foi antes – e ele afirmou isso explicitamente. A questão é como ele conseguirá reunir o trabalho organizacional, o método – e ter tempo suficiente para mudar as péssimas condições da oposição democrática no Brasil.
O Sul Global inteiro está assistindo.
Pelo menos por enquanto, os dados estão lançados, e o jogo é óbvio: é a social-democracia contra o neo-fascismo. Programas socialmente inclusivos, participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas, a luta pela igualdade contra a autocracia, o vínculo entre instituições do estado e as milícias, o racismo e ódio a todas as minorias.
Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, (bom para eles), ofereceram a Lula seu apoio incondicional.
Steve Bannon, ao contrário, está perdendo noites de sono, qualificando Lula como “o maior líder da esquerda globalista” de todo o mundo.
Isso tudo vai muito além do Populismo de Esquerda – que Slavoj Zizek e Chantal Mouffe, entre outros, tentam conceituar. Lula, supondo-se que ele permaneça em liberdade, agora está pronto para ser o catalisador supremo de uma Nova Esquerda Global integrada, progressista e “pró-povo”.
O ‘Evangelistão da Cocaína’
E agora, as partes realmente torpes.
Assisti ao discurso de Lula tarde da noite, em meio a uma tempestade de neve em Nur-Sultan, a capital do Cazaquistão, no coração das estepes, uma terra invadida pelos maiores impérios nômades da história.
A tentação era a de retratar Lula como um intrépido leopardo das neves, vagando pelas estepes devastadas das estéreis terras urbanas.
Mas o importante é que os leopardos da neve são uma espécie ameaçada de extinção.
Depois do discurso, tive conversas sérias com dois interlocutores de primeira linha: o analista Romulus Maya, baseado em Berna, e o antropólogo Piero Leirner, uma autoridade em militares brasileiros. O quadro pintado por eles foi realisticamente lúgubre. Aqui vai um breve resumo.
Quando estive em Brasília no mês de agosto, diversas fontes bem-informadas me confirmaram que a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro foi comprada. Afinal, eles de fato legitimaram todos os absurdos que vêm ocorrendo no Brasil desde 2014.
Esses absurdos foram parte de um retumbante golpe de guerra híbrida, supercomplexo e em câmera lenta que, disfarçado de uma investigação de corrupção, levou ao desmonte de campeões da indústria nacional como a Petrobrás; ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff com base em acusações espúrias; à prisão de Lula, obra do juiz-júri-executor Sérgio Moro, atual ministro da justiça de Bolsonaro e agora totalmente desmascarado pelas revelações do The Intercept.
Os militares brasileiros caíram em cima do STF. Lembrem-se que a libertação de Lula aconteceu depois de uma vitória apertadíssima de 6 x 5. Legalmente, seria impossível mantê-lo na cadeia: o STF se deu ao trabalho de, de fato, ler a Constituição brasileira.
Mas não há nenhuma mudança estrutural no horizonte.
O projeto continua sendo a venda do Brasil, acoplada a uma mal-disfarçada ditadura militar.
O Brasil permanece como uma reles colônia dos Estados Unidos. Lula, portanto, saiu da prisão, basicamente, porque o sistema o permitiu.
Os militares acobertam a abismal incompetência de Bolsonaro porque ele não consegue ir ao banheiro sem a permissão do General Heleno, chefe do GSI, a versão brasileira do Conselho de Segurança Nacional.
No sábado, um Bolsonaro apavorado pediu socorro aos militares de alta-patente após a soltura de Lula. E, sintomaticamente, chamou Lula de um “canalha” que estava “momentaneamente” solto.
É esse “momentaneamente” que entrega o jogo.
A confusa situação jurídica de Lula está longe de uma solução. Em um cenário de curto-prazo extremo, mas perfeitamente plausível, Lula de fato poderia ser mandado de volta para a cadeia, mas desta vez isolado, em um presídio federal de segurança máxima, ou até mesmo em um quartel militar. Afinal, ele já foi comandante-em-chefe das forças armadas.
O principal foco da defesa de Lula agora é a desqualificação de Moro. Qualquer pessoa que possua um cérebro e tenha lido as revelações do The Intercept pode ver com clareza a corrupção de Moro. Se isso vier a acontecer – e esse “se” é problemático – as atuais condenações de Lula serão declaradas nulas. Mas há outros processos, oito no total. Isso é o território da lawfare total.
O trunfo dos militares é o “terrorismo” – associado a Lula e ao Partido dos Trabalhadores. Se Lula, no cenário extremo, for mandado de volta a uma prisão federal, que pode ser em Brasília, onde, e não por acidente, se localiza toda a liderança do PCC, o “Primeiro Comando da Capital” – a maior organização criminosa do Brasil.
Maya e Leirner demonstraram de que forma o PCC está aliado aos militares e ao Deep State dos Estados Unidos, por intermédio de seu agente Sérgio Moro, não para estabelecer uma Pax Brasilica, mas sim o que eles descreveram como o “Evangelistão da Cocaína” – até mesmo com falsas bandeiras a serem atribuídas ao comando de Lula.
Leirner estudou exaustivamente a forma com que os generais, por mais de uma década, em seu website, vêm tentando associar o PCC ao Partido dos Trabalhadores. E essa associação se estende às FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), ao Hezbollah e aos bolivianos. Sim, tudo isso vem direto do manual A Voz do Dono.
Lula, Putin e Xi
A aposta dos militares em uma estratégia de caos, aumentada pela imensa base social de Lula, indignada com sua volta à prisão, somada ao estouro da bolha financeira que tornará as classes médias ainda mais pobres, o palco estaria montado para o supremo coquetel tóxico: “comoção” social, aliada ao “terrorismo” associado ao “crime organizado”.
Isso é tudo o que os militares precisam para desencadear uma ampla operação de restauração da “ordem”, e finalmente forçar o Congresso a aprovar a versão brasileira da Lei Patriota (cinco projetos de lei diferentes já estão tramitando no Congresso).
Isso não é uma teoria da conspiração, e apenas dá uma ideia de o quão incendiário está o Brasil neste momento. E a mídia tradicional ocidental não fará o menor esforço para explicar para um público global essa conspiração torpe e intrincada.
Leirner vai ao cerne da questão quando diz que o atual sistema não tem motivo para recuar porque seu lado está ganhando. Eles não têm medo de o Brasil vir a se transformar em um Chile. Mesmo que isso aconteça, eles já têm um culpado: Lula.
A imprensa convencional brasileira já está soltando balões de ensaio – culpar Lula pela subida do dólar e pelo aumento da inflação.
Lula e a esquerda brasileira deveriam investir em uma ofensiva de amplo espectro.
A Nona Cúpula dos BRICS acontece no Brasil esta semana. Um contra-golpe de mestre seria organizar um encontro não-oficial, extremamente discreto e cercado de forte segurança entre Lula, Putin e Xi Jinping, em uma embaixada em Brasília, por exemplo.
Putin e Xi são os principais aliados de Lula na arena global. Eles, literalmente, estão esperando por Lula, como diplomatas me confirmaram vez após vez.
Se Lula optar por seguir uma agenda restrita de meramente reorganizar a esquerda brasileira, latino-americana ou mesmo do Sul Global, o sistema militar atualmente vigente novamente o engolirá inteiro.
A esquerda está infiltrada – por toda a parte. Agora é guerra total. Supondo-se que Lula permaneça livre, ele certamente não poderá se candidatar novamente à presidência em 2022.
Mas isso não é um problema. Ele tem que ser extremamente ousado – e ele será. Melhor não se meter com o lobo das estepes.
Asia Times