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O vírus, o parasita e o corpo político

Ao invés de buscar a conquista do centro em um cenário de distribuição normal das preferências ideológicas, políticos direitistas começaram a radicalizar o discurso com a finalidade de aglutinar um número de aderentes maior do que os que optaram pela não radicalização, desinflando assim o centro.

Podemos dizer que em um cenário binário de escolha, como é em grande medida a eleição nos EUA ou o segundo turno no Brasil, ainda vence quem capturar o eleitor mediano. Porém, esse eleitor mediano não mais representa uma posição ideológica majoritária. Tal posição agora é a da corcova vencedora, localizada bem à direita do espectro.

Bolsonaro claramente optou por tal estratégia de modo radical e venceu o pleito de 2018, para grande surpresa dos analistas de plantão, entre os quais eu me incluo, preciso confessar.

A razão do meu ceticismo era sua falta quase completa dos instrumentos de campanha que historicamente garantiram sucesso eleitoral na Nova República: forte estrutura partidária, derivada de ampla coligação ou de partido grande, tempo de Horário Eleitoral e tratamento benevolente da mídia – esta última vantagem auferida somente por candidatos de centro-direita e de direita.

Mas Bolsonaro quebrou o paradigma e venceu por meio não ortodoxos, apostando, ao mesmo tempo na estratégia de polarização.

Em janeiro de 2019 começou seu mandato e muitos analistas apostaram que, a despeito de sua retórica agressiva, o novo governante iria se adaptar ao modus operandi do presidencialismo de coalizão. Preciso confessar que, com algum ceticismo, também aderi a essa leitura.

Mas Bolsonaro novamente quebrou o paradigma, agora se recusando a compor uma maioria parlamentar a fim adquirir instrumentos mais ou menos estáveis de governo – e assim passar pelo Congresso os projetos de lei necessários para o bom funcionamento do executivo.

Foram inúmeras as vezes em que ele parecia estar se dobrando a um acordo de partilha de poder administrativo com o Congresso, só para no final reafirmar sua independência em relação à representação parlamentar, partidos e forças políticas. Não bastasse isso, o clã Bolsonaro conseguiu dinamitar seu próprio partido, o PSL, deixando o próprio presidente sem partido.

Por mais incrível que possa parecer a um observador de fora, toda a aberração política do bolsonarismo estava já bastante normalizada após um ano de presidência. Os presidentes das casas legislativas pareciam confortáveis no papel de mediadores entre a aparente loucura do executivo e os diversos interesses sociais que representam, particularmente os do grande capital, que no Brasil tem forte componente agrário.

Muitos políticos conservadores começaram a posar de defensores do povo perante as ações demófobas do executivo, o que eleitoralmente para eles era bastante promissor. Já os partidos de esquerda e associações da sociedade civil ligadas aos setores populares foram completamente escanteados no debate público, incapazes de romper o boicote da imprensa ou de constituir canais de comunicação direta com a população.

Enquanto isso, essa mesma imprensa surfava na abundância de absurdidades noticiáveis produzida pelo presidente, seus ministros e familiares, aproveitando para afirmar com veemência o papel de cão de guarda do interesse público, o qual constantemente se arroga. Por fim, os setores populares continuavam a perder direitos e serviços públicos, além de sofrer as duras consequências da crise econômica gerida com o mais estrito fervor neoliberal pelo ministro Paulo Guedes.

Bolsonaro e sua trupe pareciam bem adaptados à prática de se comunicar com seu público cativo por meio das redes sociais, ao passo que o governo de fato era conduzido aos trancos e barrancos de acordo com uma partição macabra de poder.

A economia ficou nas mãos de neoliberais dogmáticos liderados por Paulo Guedes, áreas fundamentais como a educação, cultura e política externa foram para as mãos de celerados seguidores de Olavo de Carvalho, a justiça e a segurança sob a batuta do anjo caído do moralismo lavajateiro, Sergio Moro, e os setores ligados às políticas sociais e direitos de minorias entregues a pastores evangélicos.

Mas a normalização deste quadro bizarro foi atingida em cheio pelo vírus. Sua lógica é simples, ele é extremamente contagioso e mata. Quanto mais contágio, mais mortes. A solução é uma só, o isolamento. Até que se prove diferentemente, essa é a única tática que apresentou resultados até agora.

Bolsonaro poderia ter aceitado os fatos e tentado liderar a mobilização contra o vírus, particularmente a partir do momento que está se formando um consenso mundial em torno da tática do isolamento, consenso esse que já angariou importantes maiorias no plano doméstico: governadores, associações e entidades de classe, opinião pública, mídia, etc. Mesmo entre o público que ainda apoia o presidente, os adeptos do isolamento já são franca maioria.

Mas não. Mais uma vez o ex-capitão optou pela polarização, agora defendendo contra essas maiorias que as pessoas voltem a trabalhar para preservar a economia, e que os cultos continuem a acontecer, pois “os pastores saberão manter as pessoas seguras”, e outras batatadas deste quilate.

Primeiro tentou financiar uma campanha do Governo Federal contra o isolamento, que foi barrada na justiça, e agora partiu para fazer aparições surpresa em localidades do Distrito Federal, nas quais pontifica contra o isolamento, promovendo aglomeração de curiosos e possibilitando photo ops para alimentar suas redes sociais.

A quantidade de bobagens e notícias falsas disseminadas por ele e seus correligionários é enorme, de curas milagrosas à falsa percepção de que se trata de uma “gripinha”, chegando até a sugerir que o isolamento é uma tática de enfrentamento de moleque e não de homem de verdade.

Por fim, sua cruzada contra o isolamento o faz bater de frente com o seu próprio ministro da saúde, que parece fazer um esforço para racionalizar as medidas de combate ao vírus. Todos os dias circulam boatos da demissão de Mandetta, que se desdobra entre a responsabilidade de comandar esforços em meio à maior crise já vivida pelo país no último século e a tarefa impossível de não pisar nos calos de seu chefe.

A despeito de todo esse infortúnio, há uma lição profunda a ser sacada acerca da natureza da figura do presidente e de sua relação com a política.

Bolsonaro trabalha com uma concepção schmittiana de política, definindo o tempo todo amigos e inimigos, e pregando de maneira virulenta a eliminação dos segundos. A politização é o modus operandi dele e de seu grupo.

Os movimentos sociais, adeptos que são de a uma concepção outra de política, que valoriza o diálogo e a negociação, trabalharam décadas para trazer à luz do debate político questões de gênero, de direitos LGBT, de direitos de minorias, com resultados positivos, mas bastante graduais. Bolsonaro conseguiu politizar esses e tantos outros assuntos, de maneira muito mais rápida e eficaz.

Essa estratégia politizadora, bastante apta para produzir efeitos eleitorais, quando aplicada à logica do governo causa danos enormes, pois ao invés de governabilidade e políticas públicas, ela produz a continuação do conflito e a desagregação dessas mesmas políticas.

Ou seja, ela não consegue constituir uma maneira de governar e só pode garantir sua existência como parasita do corpo que habita, no caso o Estado e seu governo. Ora, o bolsonarismo só se sustenta porque as instituições da democracia brasileira teimam em funcionar minimamente, mantendo a vida do corpo político, ainda que enfermo.

A ameaça exógena do vírus colocou esse corpo político sob risco terminal, expondo como nunca o parasitismo da estratégia do presidente. Seja por deficit moral ou intelectual, ele parece ser incapaz de adotar outra postura que não seja a da politização, mesmo a ponto de eleger como inimigo o senso mais comum e disseminado acerca da maneira mais adequada de reagir à pandemia.

O vírus não vai mudar, o parasita já deu mostras de sua incapacidade de mudar, resta, portanto, ao corpo político a escolha entre duas opções: lutar para garantir sua própria preservação ou aceitar a morte.

*João Feres Júnior é professor de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da UERJ. É coordenador do GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (http://gemaa.iesp.uerj.br/) e do LEMEP – Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público

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