Os efeitos desestabilizadores das agitações espasmódicas da malfadada “primavera (de sangue) árabe” ofereceram aos abutres do liberal-imperialismo a ocasião de acertar as contas com os governos da região que se recusavam a lhes prestar vassalagem
1.
As eleições de junho 2024 para renovação do Parlamento europeu trouxeram literalmente mais do mesmo: larga maioria para a direita, com forte presença da extrema direita fascistóide. O “Partido Popular Europeu” chefiado pela feroz Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, saiu fortalecido. No que depender dela e de seus sócios, prosseguirá a escalada belicista da OTAN em apoio ao sinistro Zelenski.
Este tem passado a maior parte do tempo arrecadando bilhões de dólares e de euros de seus protetores para manter seu país na miserável função de cabeça de ponte da máquina bélica estadunidense e de seus satélites europeus na fronteira da Federação Russa.
É sempre importante lembrar que o “casus belli” da guerra em curso na Ucrânia remonta a 22 de fevereiro de 2014, quando um golpe de Estado, estimulado e apoiado pelo governo estadunidense, depôs o presidente Victor Yanukovych porque ele era contrário a quebrar o estatuto de neutralidade de seu país para fazê-lo aderir à União Europeia (UE) e consequentemente à máquina de guerra comandada pelo Pentágono.
A junta cripto fascista que assumiu o poder logo desfechou uma vaga de perseguições contra russos em geral e comunistas em especial, revogando a lei que reconhecia o russo como língua oficial em regiões onde ele predominava. De Barack Obama, dos líderes da União Europeia e da direita em geral, vieram aplausos aos golpistas.
Das populações de língua russa das regiões de Lugansk e de Donetsk a resposta foi outra: proclamaram a independência dispostas a defendê-la de armas na mão.
As fontes minimamente objetivas (muito raras no “Ocidente”) reconhecem que Vladimir Putin empenhou-se em evitar uma escalada no confronto, solicitando publicamente aos dirigentes das duas já proclamadas repúblicas populares que postergassem o referendum para ratificar a independência, de modo a permitir negociações com o governo instalado em Kiev.
Em setembro de 2014, uma discussão trilateral com a participação da Ucrânia e da União Europeia em Minsk (Belarus) estabeleceu um protocolo de cessar-fogo na região do Donbas (Lugansk e Donetsk).
O êxito foi pequeno; um novo encontro, em fevereiro de 2015, dito Minsk II, reduziu a intensidade do confronto bélico (retirada de armamento pesado da linha de frente, troca de prisioneiros etc.), mas sem chegar a um acordo durável. As negociações foram constantemente atropeladas pelo batalhão (depois regimento) Azov, formação militar ucraniana de ideologia nazista, que manteve sob terror as populações autonomistas do Donbas.
Era essa a situação quando Volodymyr Zelensky assumiu a presidência da Ucrânia em maio de 2019. Aventureiro desenvolto, provocador contumaz, açulado pelos serviços de inteligência da OTAN, ele manobrou para envenenar ainda mais as relações com a Rússia, que tinha fundadas razões para considerar sua integridade ameaçada pelo cerco dos mísseis da OTAN.
Terá subestimado a determinação de Vladimir Putin de defender os russos do Donbas ou tinha instruções e autorização de Washington para provocá-lo até o limite? O fato é que, em 24 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin passou dos avisos aos atos, desfechando a ofensiva que chamou “operação militar especial”.
2.
Já então vinha prosperando no senso comum “ocidental” uma forte russofobia, artificialmente inseminada pelos “donos da notícia” (grandes jornais, TVs e demais trustes da comunicação social etc.).
Acusavam Vladimir Putin de ser um governante “autoritário”, “esquecendo-se” de que o regime político vigente na Rússia foi estabelecido por Boris Ieltsin, o chefe da contrarrevolução capitalista de 1991, que os círculos dirigentes do “Ocidente”, eufóricos com o que supunham ser o vitorioso “fim da História” e a consagração do “pensamento único” neoliberal, apoiaram.
Eles também se mostraram extremamente compreensivos quando Boris Ieltsin, em 21 de setembro de 1993, violou a Constituição para fechar o Legislativo, que se opunha ao desenfreado saqueio da economia soviética por quadrilhas de “oligarcas” com as quais ele estava mancomunado.
O Soviet Supremo reagiu ao golpe de Boris Ieltsin declarando-o impedido de exercer a presidência e convocando o vice-presidente Alexander Rutskoi, um militar que recebera o título de herói da União Soviética na guerra do Afeganistão, para assumir o cargo. Alexander Rutskoi estava decidido a dar um basta à “privataria” e às demais reformas neoliberais de Ieltsin e de seu bando.
Na grave crise política que se instaurou, uma grande mobilização popular, de que participaram os comunistas, tomou as ruas de Moscou em apoio ao Soviet. Durante dez dias, os manifestantes enfrentaram os partidários de Ieltsin e as forças policiais.
O Exército, após alguma hesitação, cercou a sede do Soviet, que foi bombardeada e incendiada. Alexander Rutskoi e os líderes da resistência que sobreviveram foram presos. Segundo o jornal liberal Nezavisimaya Gazeta, morreram no edifício do Soviet cerca de 1.500 resistentes, cujos corpos foram retirados por passagens secretas.
A burguesia ocidental respirou, aliviada.
Vitorioso, Boris Ieltsin ab-rogou a Constituição russa de 1978, que ele já tinha violado, e fez aprovar uma outra pelo referendum de 12 de dezembro de 1993, que ampliou, à sua conveniência, os poderes do Executivo.
Prosseguiu acelerada a rapina do imenso patrimônio industrial do Estado Soviético, adquirido por preços ínfimos pelos “oligarcas” do regime, à frente dos quais a família e os fâmulos do presidente.
Ao chamá-lo de “ladrão entre os ladrões”, Domenico Losurdo apenas mencionou um fato público e notório. Parte considerável das fortunas oriundas desse imenso saqueio foi consagrada à compra de mansões suntuosas na Côte d’Azur, de castelos na Alemanha, de iates na Espanha, ao lado de negociatas milionárias na Suíça.
Os meios bem-pensantes do “Ocidente” trataram com melíflua condescendência esses novos milionários “globalizados”. Tanto mais que a decadência econômica e social da Rússia submetida à máfia de Ieltsin refletia-se na impotência de sua política externa.
Foram tímidos os protestos do Kremlin contra a grande trapaça dos presidentes Reagan e Bush pai, que esperaram a dissolução da aliança militar do Pacto de Varsóvia para anunciar que, contrariamente ao que tinham prometido ao fracassado Mikhail Gorbachev, a OTAN não seria dissolvida.
Ao contrário, mais ativa e mortífera do que nunca, ela promoveu ao longo dos anos 1990 sucessivas agressões bélicas que, como bem mostrou Losurdo, anunciavam outras que as seguiriam no início do novo milênio.[1]
Assistir passivamente, em março de 1999, à tempestade de mísseis desencadeada pela OTAN contra a Sérvia, último bastião da Iugoslávia socialista, foi para a Rússia desmoralizada uma humilhação suplementar. Duas heranças culturais comuns, que remontam à Alta Idade Média, aproximam os dois povos: a escrita cirílica e a religião ortodoxa.
Muito provavelmente, essa humilhação suscitou um reflexo patriótico nos comandos militares e nos círculos próximos ao poder, que pressionaram Boris Ieltsin a preparar sua sucessão.
Em agosto de 1999, ele convidou Vladimir Putin, que construíra sólida reputação de firmeza e habilidade em sua carreira no aparelho de Estado, para assumir a presidência do governo (cargo equivalente a primeiro-ministro em um regime presidencialista).
Os fatos não tardaram a mostrar que Vladimir Putin tinha vindo para ficar. Desgastado e afogado no alcoolismo, Boris Ieltsin aceitou abandonar seu cargo desde que fosse garantida impunidade para a imensa roubalheira que ele patrocinara.
Em 31 de dezembro de 1999, ele renunciou em favor de Vladimir Putin à presidência da Federação Russa. Em seu primeiro decreto, o novo presidente garantiu a seu predecessor e aos membros de sua família total imunidade judicial.
3.
Tenha ou não lido O príncipe, Vladimir Putin aplicou com maestria as regras da lógica do poder para soerguer o Estado russo. Exerceu um maquiavelismo de grande estilo, arrancando a Rússia da degradação material e moral a que a arrastara a contrarrevolução neoliberal.
Convencido de que os sucessivos massacres balísticos promovidos pelo império estadunidense e seus sócios menores europeus no Iraque e no Afeganistão, além de bombardeios menores em outros pontos da periferia, faziam parte de uma estratégia de recolonização do planeta, ele levou adiante a iniciativa diplomática, esboçada durante a presidência de Ieltsin, de construir uma aliança estratégica com a China e três grandes Estados da Ásia Central.
Na lógica dessa aliança estava implícita a decisão de fixar um limite às agressões da OTAN.
Os efeitos desestabilizadores das agitações espasmódicas da malfadada “primavera (de sangue) árabe” ofereceram aos abutres do liberal-imperialismo a ocasião de acertar as contas com os governos da região que se recusavam a lhes prestar vassalagem.
De março a outubro de 2011 eles atacaram a Líbia por meio de bombardeios maciços que só terminaram com a derrubada do governo anti-imperialista e o assassinato, com método atroz, de seu dirigente histórico, Mouammar Kadhafi.
No mesmo mês de março de 2011 desencadearam-se na Síria protestos da oposição liberal e religiosa contra o regime laico do presidente Bachar Al Assad, cuja política externa, articulada na aliança com a Rússia, o Irã e o movimento Hezbollah, vanguarda da luta contra o sionismo, chocava-se com os interesses do neocolonialismo ocidental e dos Estados petroleiros da Arábia, seus parceiros.
Esses interesses contrariados apoiaram e financiaram vagas sucessivas de rebeldes, muitos deles mercenários, e de fanáticos, que semearam o terror no país, numa interminável sequência de destruições.
Atacadas em várias frentes, as forças do governo perderam o controle de boa parte do país durante os primeiros quatro anos de uma guerra civil encarniçada, em que intervieram múltiplas formações militares com objetivos nem sempre convergentes.
O “Exército sírio livre” recebia armas e apoio da OTAN, da Turquia e dos sheiks petroleiros.
Movimentos fundamentalistas radicais, em choque com as forças estadunidenses que ocupavam o Iraque, notadamente o chamado “Estado Islâmico”, bem como a Frente Nusra, ligada a al-Qaeda, pretendiam estabelecer um califado sunita, abrangendo boa parte do território sírio.
O governo turco reforçou esse tétrico pandemônio invadindo o norte da Síria para golpear as populações curdas em luta pela autonomia.
A situação só começou a reverter em setembro de 2015, quando o governo russo, atendendo ao apelo do presidente Bachar Al Assad, interveio diretamente no confronto, com maciço apoio aéreo e participação nos combates terrestres.
Mais três anos de guerra foram necessários para recuperar o essencial dos territórios ocupados pelos “rebeldes” do “Exército sírio livre” e pelas diversas facções de fanáticos terroristas. A retomada de Alepo, em dezembro de 2016, confirmou o avanço da contraofensiva do governo.
No leste da Síria, as operações contra os combatentes do “Estado Islâmico” estenderam-se até o final de 2017. Mas a vitória do regime presidido por Bachar Al Assad estava assegurada. Pela primeira vez fracassava uma grande operação de recolonização promovida ou apoiada pela OTAN.
Desde então Vladimir Putin tornou-se alvo preferencial do ódio do “Ocidente” liberal-imperialista, que se apressou em completar o cerco da Rússia através da Ucrânia. Mais além dos interesses nacionais do Estado russo, está em jogo nesse cerco a perspectiva histórica de um mundo multipolar.
*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular). [https://amzn.to/3snSrKg].
Nota
[1] ver os artigos “Panamá, Iraque, Iugoslávia: os Estados Unidos e as guerras coloniais do século XXI”, publicado em 1999 em Crítica Marxista nº. 9 e “Belgrado como Stalingrado: o imperialismo estadunidense e o desmembramento da Iugoslávia”, em Novos Rumos, nº. 31, 1999.