A pandemia de Covid-19 pegou um Brasil de calças curtas. Embora o SUS sempre tenha sido subfinanciado, 2016 sinalizou um rompimento político nítido com a manutenção dos sistemas de proteção social, iniciando o desmantelamento das políticas de previdência, assistência social e saúde.
A Emenda Constitucional nº 95/2016, que instituiu um teto de investimentos públicos em saúde e educação, assinalou o movimento e retirou do sistema único de saúde cerca de 22,5 bilhões de reais, quantia que certamente faz falta nesse momento.
Faz falta para um sistema integrado de vigilância em saúde frente à nossa realidade de subnotificações, o que nos impede de dimensionar o tamanho da crise, inclusive no que tange à duração das medidas de isolamento social.
Faz falta para investimentos em ciência e tecnologia, bolsas de pesquisa e gente qualificada, o que hoje nos torna dependentes de importações de insumos estratégicos para a saúde.
Restou-nos entrar na fila da compra internacional, num momento de variação cambial e na concorrência com países como França e EUA pela obtenção desses insumos.
Faz falta aos laboratórios públicos, ainda que alguns de excelência tenham estrutura suficiente para coordenar estudos clínicos no país e assim, acumular conhecimento para produção local, o que nos dá alguma chance de desenvolver e produzir os medicamentos para enfrentamento da pandemia.
Faz falta para o número de leitos que temos, insuficiente para fazer frente à pandemia, bem como faz falta para a força de trabalho em saúde.
O SUS entra no combate à pandemia como uma daquelas relíquias desgastadas de família, mas que, felizmente, ainda funcionam e provam diariamente o seu valor.
A comparação com o setor privado é bem ilustrativa.
Enquanto o SUS, aos trancos e barrancos, vem conseguindo produzir informação sobre o alcance da pandemia, ainda que fragmentada, coordenar esforços nos Estados avaliando e expandindo a capacidade da rede de CTI e UTI, e cogita centralizar aquisições de insumos essenciais a fim de evitar concorrência entre entes federados (tudo a depender do novo Ministro), o setor privado não tem conseguido se coordenar nem oferecer respostas suficientes à crise sanitária.
90% dos recursos que movimentam os estabelecimentos de saúde privados vem de pagamentos por meio de planos de saúde, segundo informações da ANAHP, e os planos não tomaram posição alguma até dia 17 de abril, 51 dias após o primeiro caso brasileiro anunciado.
E após esse silêncio, propuseram como medida concreta ao enfrentamento da pandemia a postergação de reajustes de mensalidades por três meses, para serem recompostos a partir de outubro.
A medida é de uma tacanhez de espírito que chega a arrepiar. Além de não ter obrigatoriedade alguma, silencia sobre o problema dos inadimplentes e não garante suficiência de rede para atender as pessoas.
Já a nível governamental, as medidas anunciadas pela agência reguladora, a ANS, são tímidas.
A flexibilização do uso dos fundos garantidores, criados com dinheiro dos consumidores para enfrentar as despesas com saúde em caso de quebra das operadoras, e o aumento dos prazos de atendimento são demandas antigas do setor.
Esta última tem, inclusive, gerado uma economia considerável para os planos, sem qualquer contrapartida que faça frente ao tsunami de inadimplência que a crise econômica provocará nesse mercado, extremamente sensível ao emprego formal.
Já a liberação parcial dos fundos, ainda que vinculada à necessidade de tolerar inadimplência, se limita no tempo e no escopo.
O prazo de tolerância vai até 30 de junho, e a medida se aplica a pouco mais de 30% do mercado (planos individuais, que já contam com essa tolerância prevista em lei, planos coletivos de adesão e planos coletivos até 30 consumidores).
A maioria do mercado, composta por planos coletivos empresariais acima de 30 consumidores, fica de fora da obrigação.
O período de tolerância ao inadimplemento mostra os limites de visão estratégica do regulador. Sem testes suficientes para sabermos com precisão em que momento da curva de infectados estamos, é no mínimo otimista presumir que a pandemia ficará para trás até junho, sem falar na duração das consequências econômicas para emprego e renda depois.
O caso parece ser muito mais de empresários do setor que souberam aproveitar a crise sanitária para aprovar uma agenda antiga do que propriamente uma resposta a ela.
Mas se temos algumas medidas, ainda que tímidas, a nível econômico, encontramos um silêncio sepulcral sobre a capacidade e expansão da rede, sobre a orientação do cuidado e o seguimento de protocolos comuns de enfrentamento.
A obediência aos protocolos do Ministério da Saúde, embora estimulada, não tem fiscalização pelo regulador.
A consequência: planos de saúde anunciando seguirem protocolos de tratamento com base em medicamentos sem evidência de eficácia consolidada e estudos clínicos duvidosos[vii].
Reconheçamos, não podemos dizer que planos de saúde estão sendo os verdadeiros protagonistas desse enfrentamento.
Não possuem estatura e mesmo vontade de desempenhar esse papel, naturalmente pelo fardo que ele representa a nível econômico e de saúde pública, de modo que quem de fato está garantindo um patamar mínimo de resposta à pandemia, junto às medidas de isolamento social, é o SUS.
A verdade é que os sistemas de saúde, especialmente os de acesso universal, permanecem sendo a forma mais eficaz que as sociedades contemporâneas encontraram de garantir a saúde de suas populações.
A diferença de resposta de países como Alemanha ou Coréia do Sul, de um lado, e Estados Unidos de outro é exemplo disso.
A suficiência de rede garantiu à Alemanha alta capacidade de resposta, enquanto na Coreia do Sul a testagem massiva e vigilância permitiram bons resultados na contenção do vírus.
Já nos Estados Unidos, barreiras de acesso aos serviços, como o alto preço dos testes (e coberturas parciais ou não coberturas pelos seguros privados) implicaram no subdimensionamento da pandemia, e, no caso dramático de Nova Iorque, levaram à necessidade de o Estado tomar para si a responsabilidade financeira pelas testagens, algo antes impensável para um sistema como o americano[ix].
O que a crise sanitária do novo coronavírus possibilitou, ao penoso custo de perdas humanas insubstituíveis, e à revelia de um projeto em curso no governo brasileiro que serve, no limite, à morte e à objetificação de pessoas, foi mostrar o valor que sistemas de proteção social tem na manutenção da vida e da coesão social, e, no caso dos sistemas de saúde, como eles ainda são a melhor resposta possível frente ao que ameaça a humanidade.
Não há voucher de saúde que enfrente pandemias.
Pandemias são naturalmente imprevisíveis e sistemas de saúde inteiros não podem ser construídos da noite para o dia para responder a elas de imediato.
Eles requerem tempo, mão de obra qualificada, inteligência científica e financiamento adequado para responderem à altura.
Há quem diga que são ineficientes e desperdiçam muito, em comparação com seus similares privados.
Não é o que dizem os números brasileiros, que mostram que 60% dos recursos totais investidos em saúde são privados, mas se destinam a atender apenas um quarto da população.
A saúde pública atende três quartos da população (mais os tratamentos caros e transplantes que os planos de saúde do ¼ não querem atender), faz vigilância sanitária e epidemiológica e regula qualidade de medicamentos e produtos de saúde com 40% dos recursos[x].
Não há plano que dê conta disso. Esperamos que essa noção sobreviva para os tempos que virão.
*Ana Carolina Navarrete é advogada e militante do direito à saúde, pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário e coordenadora do programa de saúde do Idec.