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Novas denúncias de pedofilia, devemos parar de ouvir Michael Jackson?

Foto: Divulgação

Lançado recentemente nos EUA, o documentário ‘Leaving Neverland’ (Deixando Neverland, em tradução livre) traz o depoimento de dois homens que dizem ter sofrido abuso sexual por Michael Jackson (1958-2009) quando eram pequenos.

Wade Robson, de 36 anos, e James Safechuck, de 40 anos, deram detalhes chocantes sobre centenas de abusos que teriam sofrido quando tinham entre sete e dez anos.

As denúncias afetaram fortemente a reputação (já problemática) do astro do pop, com estações de rádio parando de tocar suas músicas, ex-fãs publicamente deletando músicas de seus celulares e o aprofundamento da discussão sobre predadores que se escondem por traz do sucesso na indústria do entretenimento.

Em meio às repercussões do documentário do diretor Dan Reed, surgiu novamente a mesma questão levantada em casos anteriores de artistas denunciados por crimes e atos antiéticos: até que ponto é possível separar o autor de sua obra? Afinal, devemos continuar ouvindo Michael Jackson?

‘Um lugar alucinante’

 

O filme, de quatro horas, gira em torno de eventos que segundo as vítimas aconteceram no rancho de Michael Jackson, Neverland – nomeado em referência à Terra do Nunca, local fictício das histórias de Peter Pan.

Era um “lugar surreal” que deixava os meninos e suas famílias “embasbacados”, disse Reed ao podcast da BBC Beyond Today.

As famílias ficavam “completamente alucinadas com o brilhantismo de Jackson, seu status. Ele era esse homem incrivelmente famoso e rico, sabe? Um tipo de superstar que não existe mais”, disse Reed.

Em seu filme, Dan Reed conta a história dos supostos abusos de Wade Robson e James Safechuck por Michael Jackson — Foto: Getty Images via BBC

Em seu filme, Dan Reed conta a história dos supostos abusos de Wade Robson e James Safechuck por Michael Jackson — Foto: Getty Images via BBC.

Os homens deram descrições perturbadoras de abusos e contam como o artista os envolveu em uma manipulação emocional para ter relações sexuais com eles – durante sete anos com Wade e durante quatro com Safechuck.

Robson afirmou à BBC que Jackson fez com que ele acreditasse que ambos se amavam. “É assim que demonstramos nosso amor”, lhe dizia o cantor, segundo Robson.

“E logo depois, ele falava: ‘Se alguém descobrir o que estamos fazendo, você e eu vamos passar o resto de nossas vidas na cadeia e nossas vidas serão destruídas’.”

Michael já havia sofrido denúncias de pedofilia por décadas, mas nunca foi condenado. Em 1994, ele faz um acordo para encerrar um processo na Justiça civil. E um julgamento em 2005 o inocentou das acusações de outro caso de abuso sexual por falta de provas.

Wade tinha 22 anos na época do julgamento, e deu um testemunho importante em sua defesa, dizendo que o cantor havia dormido na mesma cama que ele, mas nunca o havia tocado de forma imprópria.

Wade Robson, de 36 anos, é hoje um professor de dança em Los Angeles — Foto: Getty Images via BBC

Wade Robson, de 36 anos, é hoje um professor de dança em Los Angeles — Foto: Getty Images via BBC

O diretor do filme, Dan Reed, afirmou ao Beyond Today que, em 2005, Wade ainda não tinha conseguido lidar com a experiência que passou e, por razões pessoais, não queria “se sentir responsável” por mandar um homem que ele ainda amava para a cadeia.

Feitiço desfeito

 

“Só quando Wade teve seu próprio filho, cinco anos depois, que ele repentinamente percebeu que as coisas que Michael fazia com ele quando era criança eram repulsivas”, disse o diretor.

“Foi o início de um despertar.”

Leaving Neverland teve sua estreia no festival de cinema de Sundance, nos EUA, e foi um dos filmes mais esperados. Wade e Safechuck foram aplaudidos de pé ao entrar no cinema depois de uma sessão para um evento com o diretor e o público.

No Brasil, o filme vai ao ar no canal a cabo HBO em duas partes: a primeira no sábado, 16 de março, e a segunda no dia seguinte, a partir de quando também ficará disponível na plataforma de streaming do canal, a HBO Go.

Sobre o filme, o jornal americano The New York Times disse: “Michael Jackson lança um feitiço. ‘Leaving Neverland’ o desfaz.”.

A família e os herdeiros do cantor disseram que as acusações são uma “tentativa patética de conseguir dinheiro fácil com o nome de Michael Jackson” e entraram com um processo contra os produtores da HBO.

Mas desde que o filme foi lançado no mundo todo, estações de rádio no Canadá, na Austrália, na Irlanda e na Holanda anunciaram que não iriam mais trocar as músicas do artista.

A BBC precisou esclarecer publicamente que “não faz banimento de artistas”, depois que foi noticiado que as rádios da BBC tinham retirados as canções de Jackson de suas playlists.

Michael Jackson em foto de junho de 2005 — Foto: Timothy A. CLARY/AFP

Michael Jackson em foto de junho de 2005 — Foto: Timothy A. CLARY/AFP

É possível ‘cancelar’ Michael Jackson?

 

Scott Bryan, um dos apresentadores do podcast da BBC Must Watch, foi um dos jornalistas que estavam na estreia do filme no Reino Unido. Ele disse que, depois do filme, apagou todas as músicas de Michael Jackson que tinha em seu telefone.

Bryan diz que, tendo crescido nos anos 1980, “era difícil não ser fã de Michael Jackson”, mas que recentemente ouvir ao cantor tem feito ele se sentir desconfortável.

“Depois de alguns dias eu estava com meu laptop em um café, trabalhando, e por coincidência começou a tocar Michael Jackson”, conta ele. “Eu tive de colocar o fone de ouvido e começar a escutar outra música, porque simplesmente não consegui me concentrar.”

Lucy Jones, colunista do jornal britânico Independent, diz que uma “uma onda de mudança progressista” contra predadores sexuais tornou difícil ignorar as acusações contra Jackson.

“Relatos de abusos parecem muito diferentes depois da campanha #MeToo, contra abusos sexuais em Hollywood, e revelações de pedofilia em instituições como a Igreja Católica. Nossos olhos foram abertos e tenho mais consciência”, escreveu Jones.

Separação do artista e da obra?

 

No entanto, há muitos que acreditam que é impossível e até indesejável simplesmente banir o cantor ou fingir que seu trabalho nunca existiu – e não só os fãs irredutíveis que ainda acreditam na sua inocência.

Catherine Strong, da Universidade RMIT, da Austrália, compara o banimento do trabalho do artista com colocar “um pequeno band-aid sobre uma enorme ferida aberta.”

Em um texto no site The Conversation, ela defende que a sociedade lide com o problema de frente. A ideia não é separar o artista da obra, mas discutir o problema ao invés de simplesmente deixar as obras de lado.

“O abuso sexual na indústria da música é um problema sistêmico, contínuo, que não vai ser resolvido apenas apagando o legado musical”, diz ela.

Até porque separar o autor de sua obra é uma tarefa complicada quando sua vida está entrelaçada com seu trabalho. Videoclipes de músicas como “Smooth Criminal” e “Black or White” abrem com imagens de crianças. A música “Scream”, de 1995, é sobre o “sofrimento” de Jackson com o processo civil por abuso sexual que ele sofreu em 1993, na qual ele se coloca como uma vítima de uma acusação injusta.

Para Wesley Morris, crítico do jornal New York Times, o problema no caso de Jackson é o desejo que surge das denúncias de se obter algum tipo de justiça.

“Em outros casos do #MeToo, sempre houve um caminho muito claro a ser seguido. Alguém tem que ser demitido, alguém tem que ir pra cadeia, e isso tem acontecido. Alguém consegue ‘justiça'”, diz ele no podcast The Daily. “Mas isso não pode acontecer aqui. Michael Jackson está morto. O que poderia mudar?”

“Isso é uma tragédia. Não é uma saída satisfatória. Não acho que o jeito certo de lidar com isso é cobrindo os ouvidos quando você ouve uma música do Michael Jackson”, diz ele.

Para Catherine Strong, é possível manter Jackson no rádio. “Mas nunca tocá-lo sem lembrar aos ouvintes das coisas das quais ele é acusado. Façamos o mesmo com outros artistas acusados e culpados de crimes”, diz ela.

O diretor do filme, Dan Reed, disse à BBC que os tempos mudaram e que agora estamos menos dispostos a fechar os olhos para problemas do tipo.

“Agora, há um sentimento de que quando alguém diz que sofreu um abuso sexual – quer seja uma mulher, uma criança ou um homem – a primeira reação não deve ser ignorar a pessoas, mas ouvir o que ela tem a dizer”, disse Reed.

Mas o diretor não defende “reações viscerais” contra o cantor.

“Todo mundo com quem eu conversei que assistiu ao filme disse algo como ‘Não acho que consigo ouvir mais as música de Michael Jackson’. Mas eu não acredito em banir músicas ou em queimar livros. Há uma espécie de reação visceral agora, mas eu acho que precisamos crescer e ser capazes de ouvir a sua música – e ao mesmo tempo perceber que ele era um predador pedófilo.”

BBC

 

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