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A economia dos bicos está indo atrás do seu emprego

Alguns anos atrás, Adalberto Martín começou a ver mudanças preocupantes no trabalho. Como membro veterano da equipe de serviço de quarto do Hotel W Marriott em São Francisco, ele era expert em entregar, cuidadosamente, bandejas de comida e bebidas aos famintos hóspedes.

Mas o número de pedidos caiu drasticamente. O que uma vez já foram 50 taças de suco de laranja toda manhã, caíram para 10, e a renda de gorjeta de Martin caiu de acordo. No almoço, parecia que ele fazia mais entregas de pratos e talheres do que de comida.

O serviço de quarto, como imaginamos nos filmes, com toalhas de mesa brancas e campânulas pratas, há tempos está em decaída, mesmo nos hotéis mais chiques. Mas o Sr. Martín atribui sua perda à proliferação de aplicativos de entrega de comida como Uber Eats, DoorDash e Postmates, sucessores de serviços online de entrega como o Seamless.

Agora ele imagina se ficará sem emprego totalmente e o quão rápido. “Ficamos sempre preocupados quando vemos os hotéis próximos encerrando o serviço de quarto”, disse o Sr. Martín. “É só uma questão de tempo.”

Seus colegas de trabalho no W e funcionários de outros hotéis reportaram tendências similares: os porteiros e carregadores que chamavam os táxis para os hóspedes, e recebiam gorjetas, agora presenciam filas de Uber e Lyfts na frente das portas do lobby, enquanto o trabalho dos gerentes é resumido a um aparelho de iPad.

Alguns hotéis oferecem tablets carregados com aplicativos de entrega de comida, e dão vouchers aos hóspedes para corridas de Uber e Lyfts.

No microcosmo do hotel, a economia dos aplicativos expandiu escolhas para alguns e reduziu opções para outros (os trabalhadores).

Essa hospitalidade atual representa uma forma sútil de deslocamento tecnológico, cedido pela economia dos bicos. Não são robôs entrando no lugar dos humanos no chão da fábrica, ao invés disso, são contratantes independentes baseados nos celulares, desdenhando das carreiras de empregados fixos e, em alguns casos, sindicalizados.

No início da economia dos bicos, as pessoas temiam perdas de emprego do seguinte tipo: um motorista de Uber entra, um taxista sai. E os taxistas realmente perderam seu sustento. Ainda assim, muitos trabalhadores de aplicativo atuam somente meio período, dirigindo para complementar seu salário no emprego tradicional.

As empresas dos aplicativos, por sua parte, negam que até os trabalhadores integrais são empregados de fato, perpetuando a fantasia de que os trabalhadores de bicos são empreendedores individuais. É um modelo de negócios que reduz tudo a uma série de transações por meio de aplicativos, e chama de trabalho, deixando o que sobra do bem-estar social para preencher o resto.

Aaron Benanav, historiador da Universidade de Chicago pesquisador do trabalho, explica que esse processo de “ignorar habilidade” e a classificação errada desses trabalhadores está acontecendo no mundo todo.

A economia dos bicos “está sendo usada para substituir trabalhadores habilidosos pelo menos habilidosos ou para continuar o processo de ‘emprego mascarado’ que está acontecendo no mundo todo, no qual você traz contratantes independentes para substituir os empregadores”, ele disse. “Tem um aplicativo pra isso” significa que há trabalho menos confiável e estável para os empregados tradicionais.

Até onde essa forma de bico se espalhou? É difícil dizer. Em 2017, o Bureau de Estatística do Trabalho dos EUA coletou dados adicionais sobre “trabalhadores de contingência” pela primeira vez desde 2005. Descobriu que somente de 1.3% a 3.8% da força de trabalho está envolvida em empregos independentes como os bicos, apesar de pesquisas menores terem descoberto que 35% dos estadunidenses fazem algum tipo de “trabalho freelance”.

O que está claro é que a economia dos aplicativos embaçou mais ainda a linha entre o empregado e o subempregado, e o desempregado ou o que está fora do mercado de trabalho. E não é apenas uma questão de números: as pessoas temem os bicos de aplicativo, pois ameaçam o conceito de chefe e funcionário, governador e governado.

As corporações querem dissolver as barreiras entre o emprego tradicional e a contratação independente. Enquanto o Sr. Martín via seu trabalho ir por água abaixo, seu empregador, Marriott, e seu competidor Hilton se voltaram para o Vale do Silício.

Em 2017 e 2018, de acordo com o Projeto de Lei Nacional de Emprego, as duas gigantes hoteleiras se uniram aos seus inimigos Airbnb e à coalizão TechNet (incluindo Amazon, Apple, Facebook, Microsoft, Uber, Lyft, TaskRabbit e outras muitas empresas de “inovação”) para pressionar a favor de uma lei federal, a Lei “New Gig” (Novo Bico), que iria, entre outras coisas, efetivamente converter qualquer pessoa que encontre trabalho por meio de uma “plataforma” em um contratante independente.

Enquanto isso, a Uber introduziu a Uber Works, uma plataforma de trabalho temporário para possíveis serventes, estoquistas, faxineiros, etc. A meta da Uber com o projeto, que recentemente expandiu de Chicago à Miami, é afunilar os motoristas da Uber e outros subempregados à contratações postadas por agências temporárias.

A Uber Works e a Lei “New Gig” tratam os aplicativos como torniquetes legais. Rode por tudo, e a certeza limitada e os benefícios que vêm em ser um empregado desaparecem. Não há limite intrínseco nessa abordagem: se chefs e gerentes de hotel, porque não dentistas e paralegais?

O setor de serviços, em contraste com o de manufaturas, está só começando a competir com a automação e o deslocamento tecnológico – na forma de robôs, aplicativos e algoritmos. Na hotelaria, “estamos na beira do abismo – alguns já estão substituindo posições: reservas e check-in na mesa”, disse Elizabeth Stringam, professora na escola de hotelaria da Universidade do Estado do Novo México.

“O que faremos com essas pessoas é responsabilidade da indústria.”

Também é responsabilidade dos trabalhadores afetados. Em 2018, o Sr. Martín e quase 8.000 de seus colegas do Marriott entraram em greve, em parte por causa das preocupações tecnológicas.

O sindicato que os representava, o Unite Here, já viu a automação, aplicativos e algoritmos se arrastarem para dentro de hotéis e cassinos ao redor do país. Em meio a isso tudo, D. Taylor, o presidente internacional da Unite Here, me disse que era essencial fazer da tecnologia um “ponto chave em nossas negociações”.

O contrato padrão do sindicato, agora, exige que os empregadores notifiquem com antecedência mudanças tecnológicas que afetariam os empregos dos trabalhadores. Os empregadores devem negociar os termos de tais mudanças e oferecer treinamento no uso dessas tecnologias.

O contrato também oferece “uma transição tranquila” (opções de ruptura e novos treinamentos) para os trabalhadores deslocados pela automação e concede aos carregadores e porteiros aumentos salariais para compensar pelas gorjetas perdidas ao Uber e Lyft.

O modelo de negócios da Uber, que depende da classificação dos motoristas como contratantes independentes, desenhou uma nova análise do que o Sr. Benanav, o historiador, chama de “emprego mascarado”, especialmente na Califórnia. No ano passado, o superior tribunal do Estado decretou uma lei importante para o status do contratante independente, e em primeiro de janeiro, uma nova lei baseada nessa decisão começou a limitar rigorosamente quem pode ser classificado como um contratante independente.

A lei afeta não apenas os motoristas de Uber e Lyft, como também escritores, fotojornalistas, cosmetologistas e caminhoneiros de longo curso.

Nem todo mundo está feliz: as empresas de aplicativo se recusam a admitir a aplicação da lei, e empresas de mídia escolheram abandonar escritores freelancers na Califórnia ao invés de ajustar sua carga de trabalho e convertê-los em empregados.

Em dezembro, três grupos separados – incluindo um liderado pela Uber e Postmates – abriram processos alegando que a lei era inconstitucional, e a Uber, Lyft, DoorDash, Postmates e Instacart gastaram dezenas de milhões de dólares em iniciativas que os isentariam de aplicar a medida. Todavia, representantes eleitos em outros estados estão escrevendo leis similares para combater a classificação incorreta.

Mesmo com todo o azedume no debate da economia dos bicos, os trabalhadores parecem se entender. Quando Dalida Ahmic, então trabalhadora do serviço de quarto no Hotel Battery Wharf em Boston, entrou em greve com o Unite Here em setembro, ela viu muitos entregadores do Uber Eats e Grubhub caminhando para dentro do lobby.

Mesmo esses entregadores sendo uma ameaça ao seu emprego, ela sentiu empatia pela situação deles. “É muito triste que eles tenham que realizar esse trabalho”, disse a Sra. Ahmic, observando a falta de plano de saúde e seus baixos salários.

O Sr. Taylor, do Unite Here, lembrou de um momento de um encontro recente com carregadores. “Estavam conversando sobre os problemas com a Uber e a Lyft”, ele lembrou.

“Eu disse, ‘Todos poderiam pegar seus telefones?

Quem tem Uber ou Lyft no telefone?’

E de repente, eles fizeram, ‘ Oh.’ Então eu disse, ‘Gente, não estamos parando isso. A questão é o que fazemos sobre isso, até que ponto afeta nosso emprego?’”

As conveniências da economia dos aplicativos não podem superar o descaso com os trabalhadores. Mas somente uma luta ampla por tratamento justo e classificação de acordo com a lei pode desmantelar a ideologia do trabalho construída na Uber e em sua gangue: a de que todos os trabalhadores devem ser produtivos e leais como empregados fixos e não esperar nada em troca.

Para muitas pessoas hoje, estabilidade de 40 anos, plano de saúde generoso, educação bancada pelo empregador e pensões são uma memória distante. Isso não significa, no entanto, que querem ficar flutuando por aí, livres de todos menos de seus celulares. O futuro robótico talvez esteja a caminho, mas o que é mais assustador ainda é o presente sendo moldado pelo Vale do Silício.

Publicado originalmente no The New York Times | Tradução de Isabela Palhares

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