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7 prisioneiros

Existe chaga mais dolorosa, iniquidade mais cruel que a escravidão?

Com seu realismo brutal, um filme como 7 prisioneiros, em cartaz na Netflix, mostra que essa ferida não cicatrizou, não é reminiscência de um passado remoto, mas continua viva e aberta, infeccionando não apenas quem a sofre diretamente mas toda a sociedade que a tolera, quando não a incentiva.

Segundo longa-metragem de ficção de Alexandre Moratto (diretor do ótimo Sócrates, de 2018), o filme narra o drama de um grupo de rapazes pobres do interior que vão a São Paulo em busca de uma vida melhor e acabam prisioneiros do dono de um ferro-velho que os obriga a trabalhar de graça e morar num dormitório fétido não muito diferente de uma senzala.

Dito assim, pode dar a ideia de uma obra sensacionalista e maniqueísta, com vilões e vítimas bem demarcados e, de preferência, uma catarse edificante no final. Mas não é bem essa a realidade construída pelo filme.

Há, desde logo, dois personagens centrais: o jovem negro Mateus (o ótimo Christian Malheiros), que deixa o pequeno sítio da família para trabalhar na metrópole, e Luca (Rodrigo Santoro), o dono do ferro-velho onde Mateus e seus companheiros vão trabalhar.

A argúcia narrativa do filme consiste em contrapor incialmente os dois e, aos poucos, aproximá-los, quase como se a história toda fosse o processo de transformação de Mateus em Luca, ou de oprimido em opressor. Mas não vamos nos adiantar.

Desde a primeira cena, tudo é narrado do ponto de vista de Mateus, mas isso não se dá de forma ostensiva, por meio de uma câmera predominantemente subjetiva ou recorrendo à muleta da narração em off, tão comum em nosso cinema social-didático.

Ele simplesmente está presente em todas as cenas, mesmo que às vezes a certa distância, vendo, ouvindo ou intuindo tudo o que se passa. O filme é, em certo sentido, seu “romance de formação”, ou antes de deformação.

Vistas retrospectivamente, as primeiras imagens são significativas. Com martelo, pregos e tábuas, Mateus constrói uma cerca ou parede no sítio da família.

A câmera está “do lado de cá” da cerca, e nós vemos o rapaz e o sítio no espaço que ainda resta, e que vai diminuindo ao longo da cena.

De certo modo, somos nós, espectadores, que ficamos presos. E Mateus é quem prende. Essa inversão de perspectiva ganhará todo sentido no decorrer da narrativa.

A escravidão, parece nos dizer o filme, não é fruto da perversidade de alguns indivíduos, mas de todo um sistema de deformações: sociais, políticas, econômicas e, claro, morais.

Em outras palavras, a perversidade existe, mas ela é produzida em série. O negócio lucrativo de Luca conta com a ajuda de policiais corruptos, fiscalização leniente, cumplicidade de comerciantes e clientes.

Mais que isso: faz parte de uma rede mais ampla de exploração do trabalho escravo, de que um dos chefões é um político simpático em busca da reeleição, um pai de família preocupado com “o país que vai deixar para os filhos”.

Assim como o político é um pai dedicado, Luca é um filho exemplar, que comprou uma padaria para a mãe administrar, deixando de padecer sob a exploração de outros. O terrível é isso: os monstros são humanos, demasiado humanos.

É nessa situação, em que os espaços de manobra vão diminuindo como a paisagem vista nas primeiras imagens da cerca, que se move o jovem Mateus.

É ele o grande personagem moral, aquele que se vê em todos os momentos diante de dilemas éticos e que, no limite, ao realizar a mais sórdida das ações, justifica-se dizendo: “Se eu não fizer, outro vai fazer”.

O filme apresenta com sutileza esses momentos, essas encruzilhadas da conduta, sem excessiva ênfase, apenas mediante a duração um pouco maior de um plano, ou uma hesitação no olhar do ator.

É, em suma, um realismo substantivo, sem didatismo e sem discurso militante, que move 7 prisioneiros. Sua eficácia dramática e política está em seu caráter enxuto, em sua dinâmica implacável.

É um dos filmes mais violentos dos últimos tempos. Não tanto pela violência física, que se resume a um par de coronhadas e dois ou três socos, mas pela brutalidade psicológica, espiritual e moral que ele dá a ver.

Em tempo: Alexandre Moratto, filho de mãe brasileira e pai norte-americano, estudou cinema nos EUA e foi assistente de Ramin Bahrani, diretor de O tigre branco. Consta que foi Bahrani que o aconselhou a voltar ao Brasil e fazer filmes inseridos na realidade social do país.

Sócrates e 7 prisioneiros (produzido por Bahrani) são frutos desse sábio conselho.

 

José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

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