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Comentário sobre o filme – O paradoxo de Oppenheimer – dirigido por Christopher Nolan

Oppenheimer

No início de Oppenheimer, o físico Niels Bohr fala sobre a dualidade quântica da onda-partícula como um paradoxo. Um quantum não é onda ou partícula, mas onda E partícula. Uma das virtudes do último filme de Christopher Nolan é precisamente assumir esteticamente o paradoxo sem tentar resolvê-lo.

Os filmes de Christopher Nolan sempre exibiram paradoxos científicos, sobretudo temporais. Christopher Nolan é, de fato, o cineasta dos paradoxos, embora muitas vezes esta figura lógica resvale para a ambiguidade moral em seus filmes.

Exemplo mais óbvio disso é visto na série Batman. Em O Cavaleiro das Trevas, o procurador Duas Caras era ao mesmo tempo o personagem que combatia a corrupção e era um ser corrupto (como um famoso juiz brasileiro). Bane, de Batman Rises, era ao mesmo tempo um criminoso e um revolucionário.

Ainda em The Dark Knight, Nolan introduz um conhecido dilema moral na trama do filme que ocupa o lugar do paradoxo. O Curinga coloca para Batman um desafio moral: duas bombas irão explodir simultaneamente e Batman, que sabe disso, precisa decidir qual das bombas ele é capaz de desativar.

Ele precisa escolher entre perder sua amada ou permitir que centenas de pessoas morram. Esta cena da trilogia ressoa mais tarde em Oppenheimer, quandoum conjunto de homens brancos do deep state americano decide em qual cidade japonesa será jogada a bomba atômica. O presidente americano retira Kyoto da lista por causa de seu valor histórico…

Nos outros filmes, o paradoxo se transforma frequentemente em loops temporais. É o caso de Tenet, o filme anterior. Mas neste filme, o paradoxo tem a forma de um palíndromo. O paradoxo existe, mas lido de trás para a frente ou vice-versa, permanece o mesmo.

É o sentido próprio da tenacidade do Protagonista, que em meio à confusão narrativa e à guerra temporal, deve se manter o mesmo, íntegro em seus objetivos, fiel a seu amigo Neil e ao seu amor platônico por Kat, ambos brancos. Em outras palavras, em Tenet o paradoxo apenas esconde o sentido da permanência ou a identidade do ser.

Em Oppenheimer, estamos diante de um paradoxo que não pode ser “deparadoxizado”. Os arcos temporais comuns na obra de Christopher Nolan se tornam pontos de descontinuidade quântica entre passado e futuro.

O filme flui como uma onda entre os tempos, mas é pontuado por momentos tensos que se relacionam entre si projetando uma narrativa misteriosa como num filme de detetive, mas essa narrativa é ilusionista, pois ela nunca se resolve.

Como na Interpretação de Copenhague da física quântica, há um princípio de indeterminação ou de incerteza sobre a trama.

No início do filme, Julius Oppenheimer (vivido por Cillian Murphy) está lendo The Waste Land, do autor conservador T. S. Elliot, mas também se deslumbra com os quadros cubistas do comunista Picasso: Julius é um cientista de direita ou de esquerda?

Esta pergunta corre todo o filme. Ao final da narrativa fica a sensação de que ele é de direita E de esquerda. Esta oscilação de duplo vínculo continuará em outras questões abordadas durante o filme: Julius Oppenheimer é comunista E imperialista, racionalista E místico, ético E imoral, fiel E adúltero, decidido E reticente, gênio E estúpido. E, sobretudo, herói E monstro.

De fato, sobre a figura histórica do físico Oppenheimer permanecem até os dias de hoje as controvérsias e a incapacidade de dar a elas um veredito final. O filme gira em torno das “audiências de segurança” (security hearings) de 1954, onde se julgou por uma comissão de Estado sua participação no vazamento de informações para a URSS construir sua bomba atômica.

Nessas audiências, Oppenheimer chegou a ser acusado de ser um “espião soviético”. No entanto, nunca se teve uma conclusão definitiva sobre a extensão de sua participação nesse vazamento, desde uma efetiva colaboração com os comunistas, sua omissão ou simplesmente pela “vista grossa”.

É sabido que Oppenheimer não só incluiu no projeto Manhattan cientistas que eram assumidamente comunistas, ou simpatizantes, inclusive aquele que foi o acusado central desses vazamentos, o físico Klaus Fuchs, bem como estava ele mesmo cercado de outros militantes comunistas (ou de esquerda, mas na época mccarthista fazia pouca diferença entre ser comunista ou ser de esquerda), como seu melhor amigo Maurice Chevalier (que efetivamente lhe fez uma proposta para transmitir informações para a URSS), seu irmão, sua mulher, e mesmo sua amante, a militante comunista Jean Tatlock.

Sobre esta última, o filme de Christopher Nolan tem o mérito de recuperar sua memória e com isso redime parte deste filme por seu conhecido androcentrismo, pois seus filmes anteriores são todos fixados na perspectiva masculina na qual as mulheres têm participação periférica ou subordinada. Isso volta a se repetir desafortunadamente em Oppenheimer.

Por outro lado, a esquecida Jean Tatlock tem um papel relevante na trama, ainda que coadjuvante e, como em outras situações, ambíguo.

O filme não deixa claro se Jean (que era psiquiatra e militante bissexual) em seu relacionamento afetivo e carregado sexualmente com Julius, estava realmente interessada em obter informações secretas ou se a relação era de fato amorosa e desinteressada (como o próprio Oppenheimer alegou em sua defesa).

O filme chega mesmo a considerar a hipótese conspiratória de que o suicídio de Tatlock tenha sido um homicídio provocado pela CIA ou pelo FBI.

No entanto, o primeiro paradoxo do filme está na oscilação entre as vias técnicas da fissão e da fusão nuclear. De um lado, a bomba atômica é realizada através de um processo de fissão nuclear, enquanto a bomba de Hidrogênio é possibilitada pelo processo de fusão.

No início do projeto não havia uma indicação certa por qual caminho técnico seguir. É nessa questão que surge a rixa, ao ponto da rivalidade, entre Oppenheimer e Edward Teller, este último considerado o “pai” da Bomba H (muitas vezes mais poderosa do que a bomba A).

Mas essa alternativa ganha logo conotações políticas. De um lado, a colaboração conjunta entre os aliados contra os nazistas está desde o início contaminada pela desconfiança para com os soviéticos.

Se a fusão simboliza esse acordo, a fissão aqui é a metáfora da luta de classes que subterraneamente toma conta do projeto. O projeto de fusão foi colocado completamente dentro da narrativa da corrida armamentista pós-guerra.

Uma das maiores virtudes da escolha narrativa de Christopher Nolan é justamente descrever como o projeto Manhattan começa dentro do combate contra os nazistas, mas na verdade já está inteiramente inserido na trama da Guerra Fria.

Oppenheimer usou sua ascendência judaica e a perseguição nazista aos judeus para justificar sua participação no projeto. É possível admitir que se ele não tivesse criado a bomba atômica, outro faria em seu lugar, talvez um cientista nazista.

Mas este argumento o justifica? Ou colocando de outro modo: este argumento o redime historicamente? Para o filme de Christopher Nolan esta é uma questão “indecidível”. No entanto, a sua opção estética foi centrar a narrativa nas audiências de segurança, já no contexto mccarthista do pós-guerra, no epicentro da Guerra Fria.

Isso significa que, ao contrário do que pensava realmente Oppenheimer (ou de seu discurso de justificativa), a verdadeira disputa não era contra os nazistas e sim contra os soviéticos, supostos aliados de guerra.

Christopher Nolan frequentemente usa o filtro P&B para as cenas da audiência e sobretudo para filmar o grande “vilão” da história, o também judeu Lewis Strauss (vivido por Robert Downey Jr.), que se tornou Presidente da AEC, Comissão de Energia Atômica.

Christopher Nolan aceita a versão de que foi uma desavença pessoal a causa de Strauss ter arquitetado (ou manejado) o processo contra Oppenheimer. Mas Strauss, um republicano conservador, era anti-comunista e foram as conhecidas relações de Oppenheimer com comunistas o argumento principal das audiências.

Assim, o filme mostra desde o início a disputa em torno da bomba como o princípio da Guerra Fria e Strauss estava atuando sempre dentro desse cenário.

Se Auschwitz marca o fim da primeira metade do século XX, as explosões em Hiroshima e Nagasaki abrem a segunda metade do século.

Por um lado, estava cada vez mais evidente, com a derrota da Alemanha e o suicídio de Hitler, que a Bomba A não era um motivo de disputa com os alemães e sim um projeto bélico de supremacia imperialista.

Ignorar esse fato seria muita ingenuidade de Oppenheimer, ou seria má-fé. Como alguns mencionaram, foi um enorme ato de vaidade, levar adiante o teste de Trinity[vii] após a derrota alemã, sob a desculpa da resistência japonesa, que em julho de 1945 já se sabia derrotada.

Por isso, a decepção de Oppenheimer quando sabe de não apenas uma, mas de duas cidades japonesas terem sido bombardeadas atomicamente, só pode aparecer como ato de cinismo.

É justamente nesse ponto que surge a segunda grande metáfora do filme, em relação à famosa “reação em cadeia”.

O filme mostra o temor entre os cientistas de que a reação em cadeia dos átomos divididos siga sem limites até a destruição final do mundo. Os cálculos mostravam que, no entanto, a chance dessa catástrofe ocorrer era “próxima de zero” (near zero).

É para confirmar esses cálculos que supostamente Oppenheimer procura Einstein e eles têm a conversa fatídica para o desfecho da história.

A negativa de Einstein em resolver o problema simboliza a diferença de postura entre os dois cientistas. Em outra perspectiva, essa metáfora da reação em cadeia também simboliza o próprio “ponto de não retorno” de Oppenheimer.

Ele logo compreende que a reação em cadeia deixa de ser um conceito científico para se tornar um conceito político. Era a metáfora da corrida armamentista que se abria naquele momento.

Daí segue toda a postura de Oppenheimer contra a construção da Bomba H, e mesmo suas atitudes no sentido de obstaculizar essa pesquisa, o que vai pesar contra ele em seu julgamento.

O que o filme figura nessa passagem é precisamente o surgimento da famigerada estratégia MAD- Mutual AutoDestruction.

É intuído que Oppenheimer compreende que a posse da bomba por um único país lhe dá a supremacia militar que se torna um ponto de insegurança global. As explosões atômicas japonesas são precisamente a demonstração dessa insegurança.

O paradoxo está no fato de que a única maneira de frear essa situação de instabilidade seria assegurar que outras nações também tivessem a bomba, o que geraria um efeito de mútua dissuasão.

Neste caso, o paradoxo se transforma num “duplo vínculo” (double bind), um conceito do famoso antropólogo cibernético Gregory Bateson para falar de um dilema em duas premissas opostas que se implicam mutuamente.

Com MAD, destruir o inimigo significa se autodestruir. Se era possível tecnicamente evitar a reação em cadeia atômica, não o era politicamente, a não ser com outra bomba terrivelmente destruidora.

Como cientista, Oppenheimer sabia que o domínio da tecnologia entre outras nações, especialmente a URSS, era questão de tempo. Fora precisamente por este motivo que ele justificou sua entrada no projeto Manhattan.

Este projeto já estava inserido dentro da estratégia MAD. Neste ponto de vista, e creio que o filme de Nolan compreende isto, Oppenheimer é o criador da estratégia MAD. E é também o que está implícito na resposta que no filme Einstein lhe dá.

E finalmente é o pano de fundo das acusações que o deep state americano dirige contra ele. Oppenheimer, voluntariamente ou não, frustrou os planos de supremacia global americana e deu início à Guerra Fria.

E afinal este é o último grande paradoxo de Oppenheimer. Uma das mais impressionantes descobertas científicas de todos os tempos e uma das construções técnicas de maior envergadura são também aquelas que põem em risco a própria existência da humanidade.

A estratégia MAD é assim o nome perfeito para a fusão/fissão, ou o duplo vínculo, entre razão E loucura, ciência E guerra, energia E destruição. O nome Oppenheimer ficará como aquele marcado por tal paradoxo.

Voltando afinal à Interpretação de Copenhague, ela nos diz que a dualidade onda-partícula para ser resolvida depende do observador e de seu experimento.

O julgamento da herança de Oppenheimer diz mais sobre quem o julga. De certo mesmo é que este paradoxo é de tal magnitude que ficará oscilando e nos assombrando pelo que ainda resta da história humana.

Guilherme Preger é engenheiro eletricista e doutor em teoria da literatura pela UERJ. Autor de Fábulas da ciência (Gramma).

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