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Literatura e cinema por Randal Johnson

Dona Flor e seus dois maridos

As relações entre literatura e cinema são múltiplas e complexas, caracterizadas por uma forte intertextualidade.

Embora questões relacionadas a adaptações e a diferenças entre os dois modos de expressão artística tendam a dominar discussões sobre o assunto, uma perspectiva mais compreensiva teria de ser multifacetada, incluindo, por exemplo, filme sobre escritores, sejam eles documentários ou filmes de ficção, sejam de longa ou curta metragem.

Nesse sentido poderíamos pensar, por um lado, em curtas como O enfeitiçado (1968) e O sereno desespero (1973), de Luiz Carlos Lacerda, que tratam de Lúcio Cardoso e Cecília Meireles, respectivamente.

Por outro, filmes como O homem do pau-brasil (1982), de Joaquim Pedro de Andrade, e Bocage: o triunfo do amor (1997), de Djalma Limongi Batista, representam certos aspectos da vida e obra de Oswald de Andrade e Bocage, respectivamente, mas não se trata nem de “adaptações” nem de biografias cinematográficas stricto sensu.

Inumeráveis filmes contêm, dialogicamente, alusões ou referências literárias, sejam elas breves ou extensas, implícitas ou explícitas. Terra estrangeira (1995), de Walter Salles Júnior e Daniela Thomas, tem como ponto de partida o verso de Fernando Pessoa “viajar, perder países”, embora não haja mais referências a Pessoa no filme.

Num sentido mais explícito, poderíamos pensar no caso de Exu-Piá: coração de Macunaíma (1985), de Paulo Veríssimo, que dialoga não só com o romance de Mário de Andrade, mas também com o filme de Joaquim Pedro de Andrade (1969) e a montagem teatral de Antunes Filho (1979), sem ser, contudo, uma “adaptação” cinematográfica.

Referências ou alusões fílmicas à literatura podem ser orais, visuais, ou até escritas (por exemplo, um plano em que a câmera focaliza um livro ou uma página de livro). Em História de Lisboa (1994), de Wim Wenders, a personagem principal lê poemas de Fernando Pessoa e uma figura representando Pessoa aparece pelo menos duas vezes nas ruas de Lisboa durante a filmagem.

Há um momento em Bicho-de-sete-cabeças (2001), de Laís Bodansky, em que a câmera focaliza, do ponto de vista do jovem internado, versos de Arnaldo Antunes rabiscados na parede de um manicômio.

E o que dizer de um filme como Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, que constrói o roteiro com trechos dos Autos da devassa e de poemas de Cecília Meireles e dos poetas envolvidos na Inconfidência Mineira?

Ou Como era gostoso o meu francês (1972), de Nelson Pereira dos Santos, que é pontuado, com efeito irônico, por citações de exploradores, cronistas e jesuítas como Nicolau Durand de Villegaignon, Jean de Léry e Manuel da Nóbrega?

Também teríamos de incluir, numa discussão mais abrangente das relações entre literatura e cinema, uma série de questões envolvendo roteiros, desde escritores que participam de sua elaboração até o status literário que alguns roteiros ganham, mesmo em medida limitada, ao serem publicados.

E há ainda os casos de cineastas que escrevem romances e romancistas que fazem filmes. Poderíamos pensar, por exemplo, em Glauber Rocha, cujo romance Riverão Sussuarana (1977) dialoga explicitamente com Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Aliás, Guimarães Rosa e sua personagem Diadorim figuram no romance de Glauber.

E isso sem mencionar o inegável impacto que o cinema tem sobre a literatura, em termos conceituais, estilísticos ou temáticos.

Basta pensar, por exemplo, na prosa dita “cinematográfica” de Oswald de Andrade ou Antônio de Alcântara Machado, em romances como Operação silêncio (1979), de Márcio Souza, que tematiza o cinema de múltiplas formas, e Camilo Mortágua (1980), de Josué Guimarães, que usa o cinema como elemento temático e estruturador, ou num caso como o do escritor argentino Manuel Puig, que disse em várias ocasiões que, quando era menino numa pequena cidade na Argentina, seu maior desejo era ser um filme, porque a realidade que ele via na tela era mais bonita do que a realidade que o circundava.

E a importância do cinema em sua obra está mais do que evidente em romances como A traição de Rita Hayworth e O beijo da mulher-aranha.

Enfim, as variações e as possibilidades de inter-relacionamento dos dois meios de expressão artística são praticamente infinitas, e longe de mim pretender esgotá-las nestas poucas páginas. Passemos às adaptações.

Da literatura ao cinema

No final do ensaio. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil, o crítico José Carlos Avellar escreve:

“A relação dinâmica que existe entre livros e filmes quase nem se percebe se estabelecemos uma hierarquia entre as formas de expressão e a partir daí examinamos uma possível fidelidade de tradução: uma perfeita obediência aos fatos narrados ou uma invenção de soluções visuais equivalentes aos recursos estilísticos do texto.

O que tem levado o cinema à literatura não é a impressão de que é possível apanhar uma certa coisa que está num livro – uma história, um diálogo, uma cena – e inseri-la num filme, mas, ao contrário, uma quase certeza de que tal operação é impossível.

A relação se dá através de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, onde cada poeta estimula o outro a inventar-se livremente, a improvisar, a fazer exatamente o que acha que deve fazer”.

Com sua costumeira perspicácia, Avellar aponta nesse trecho tanto o problema enfrentado por muitos observadores (leigos e profissionais) da relação entre a literatura e o cinema quanto uma chave para uma compreensão mais rica dessa mesma relação.

O problema – o estabelecimento de uma hierarquia normativa entre a literatura e o cinema, entre uma obra original e uma versão derivada, entre a autenticidade e o simulacro e, por extensão, entre a cultura de elite e a cultura de massa – baseia-se numa concepção, derivada da estética kantiana, da inviolabilidade da obra literária e da especificidade estética.

Daí uma insistência na “fidelidade” da adaptação cinematográfica à obra literária originária. Essa atitude resulta em julgamentos superficiais que frequentemente valorizam a obra literária sobre a adaptação, e o mais das vezes sem uma reflexão mais profunda.

Falando de A hora da estrela, novela de Clarice Lispector (1977) filmada por Suzana Amaral (1985), por exemplo, Geraldo Carneiro escreve:

“Para evitar mal-entendidos, esclareço que A hora da estrela é um belo filme, uma das estrelas da cinematografia brasileira dos anos 80. Ainda assim, no confronto com o livro homônimo de Clarice Lispector […] arriscaria afirmar que o filme é extraordinariamente insatisfatório”.

Referindo-se ao mesmo filme, Luiza Lobo opina: “Ao ser retratado na tela, este enredo [do livro] ignora a riqueza da narração, de certos diálogos e os meios-tons da descrição, no sutil universo de significações constantes do texto de Clarice, que não podem ser transmitidos pela câmera”.

Sobre o livro e o filme Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado e Bruno Barreto, respectivamente, Ana Cristina de Rezende Chiara diz: “não faço uma pergunta mas uma constatação: o livro me parece melhor que o filme. Isso apesar de o filme ser um belo filme. Belo porque tem eficácia narrativa, conseguindo resumir a massa discursiva de Jorge à espinha dorsal da trama”.

Em todos esses casos, os filmes sob análise são julgados criticamente porque não fazem o que os romances fazem, porque, de um modo ou de outro, não são “fiéis” à obra-modelo.

Na realidade, isso é um falso problema, que só se coloca sob certas condições. Não é, por exemplo, um problema para o espectador que não conhece a obra original.

De modo geral, também não é um problema quando se trata de uma obra literária pouco conhecida ou valorizada. Será que alguém se preocupa com o fato de Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos, ser uma adaptação da novela História para se ouvir de noite, de Guilherme Figueiredo?

Ou de Sinhá Moça, de Tom Payne e Oswaldo Sampaio (1953), basear-se num romance de Maria Camila Dezonne Pacheco Fernandes?

Que me conste, não houve grandes discussões em torno do fato de um dos melhores filmes brasileiros desde a retomada de produção em meados dos anos 1990, Os matadores, de Beto Brant (1997), ser adaptado de um conto de Marçal Aquino, que também colaborou no roteiro do filme.

A insistência na “fidelidade” – que deriva das expectativas que o espectador traz ao filme, baseadas na sua própria leitura do original – é um falso problema porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, e porque geralmente ignora a dinâmica dos campos de produção cultural nos quais os dois meios estão inseridos.

Enquanto um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal, com toda a sua riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo menos cinco materiais de expressão diferentes: imagens visuais, a linguagem verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a própria língua escrita (créditos, títulos e outras escritas).

Todos esses materiais podem ser manipulados de diversas maneiras. A diferença básica entre os dois meios não se reduz, portanto, à diferença entre a linguagem escrita e a imagem visual, como se costuma dizer.

Se o cinema tem dificuldade em fazer determinadas coisas que a literatura faz, a literatura também não consegue fazer o que um filme faz.

Tomemos como exemplo o romance Macunaíma, de Mário de Andrade (1928), e a sua versão cinematográfica, de Joaquim Pedro de Andrade (1969), duas obras-primas dentro de seus respectivos movimentos artísticos e culturais.

A rapsódia de Mário abre com as seguintes palavras: “No fundo do mato virgem, nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.

Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma”.

Há uma série de coisas que poderiam ser comentadas aqui: a criação de um espaço mítico, o nascimento miraculoso (“filho do medo da noite”), a composição racial, a feiura do herói.

Quem conhece o filme de Joaquim Pedro sabe que o diretor optou por uma interpretação cômica dessa abertura, com um travestido Paulo José dando à luz um “herói” representado por Grande Otelo.

Sabe também que optou por uma definição geográfica mais concreta, pelas palavras do narrador, em off, no final da primeira sequência: “Foi assim, no lugar chamado Pai da Tocandeira, Brasil, que nasceu Macunaíma […]”.

Sabe, além disso, que optou por uma caracterização mais negativa do herói, quando a mãe, dando-lhe um nome, diz “nome que começa com Ma tem má sina”, uma caracterização tirada do capítulo VII, “Macumba”, do romance.

Mas quero chamar a atenção para o que acontece antes da primeira sequência, durante os letreiros.

Os letreiros são sobrepostos a um fundo verde e amarelo, obviamente representando uma floresta.

A música que acompanha os letreiros é a marcha patriótica Desfile aos heróis do Brasil, composta por Heitor Villa-Lobos. A letra da música começa e termina com os versos seguintes:

Glória aos homens que elevam a pátria
Esta pátria querida que é o nosso Brasil
Desde Pedro Cabral que a esta terra
Chamou gloriosa num dia de abril…

Esta terra do Brasil surgindo à luz
Era taba de nobres heróis

Antes da primeira imagem fotográfica do filme, portanto, as cores e a música, dois elementos que a literatura só pode expressar por meio da linguagem verbal, combinam com a letra da música para estabelecer o universo temático do filme – a questão do herói brasileiro –, mas introduzem outras conotações ligadas ao nacionalismo musical de Villa-Lobos, ao modernismo e ao envolvimento dos intelectuais e artistas modernistas com o Estado Novo de Getúlio Vargas. Fidelidade? Uma questão irrelevante.

RANDAL JOHNSON

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