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A destruição da democracia brasileira.

Estão assassinando a democracia

A democracia já acabou no Brasil. As instituições, anacronicamente, ainda existem. Mas a cena política está configurada de forma a tornar inefetivo qualquer comportamento democrático.

Muito se discutiu e se discute acerca do golpe parlamentar ocorrido no Brasil em 2016 e suas implicações, buscando nesse (e em outros) fenômenos políticos pontuais a origem dos problemas contemporâneos.

Sem diminuir a importância de grandes eventos e seus impactos evidentes, tento observar fenômenos de menor impacto imediato, mas que acumulados tem um resultado de grande magnitude na reconfiguração da cena política.

Apontando para um sentido em determinado processo histórico.

Quando falo em desdemocratização busco chamar a atenção para o caráter processual da desconstrução de um regime político, resultado de um acúmulo de fenômenos produzidos pelas contradições nas estruturas políticas de uma determinada sociedade.

A desdemocratização é o oposto da redemocratização.

Desdemocratização e golpe, nesse sentido, apontam para a mesma realidade, sendo o primeiro termo utilizado para compreender o processo mais extenso e o segundo termo usado para compreender fenômenos específicos.

O presente texto, mesmo considerando a importância do segundo, elege o primeiro como unidade de análise.

Robert Dahl e as condições para a estabilidade de um sistema democrático
Em seu livro “Poliarquia”, entre os vários elementos constituintes de um sistema democrático e seus exemplos históricos, o autor estadunidense faz observações extremamente relevantes sobre a possibilidade de manutenção de um sistema democrático.

Primeiro, tal sistema não é dado; ele precisa ser construído. E da mesma maneira pode ser destruído. Segundo, a manutenção de tal sistema depende de condições políticas específicas.

O autor sustenta a hipótese de que, para um sistema democrático se manter, é necessário que a cena política seja caracterizada:

a) por baixos custos de tolerância política;

b) por altos custos de repressão política.

A lógica racional estabelecida é relativamente simples: “Quanto mais baixos os custos de tolerância, maior a segurança do governo. Quanto maiores os custos de supressão, maior a segurança da oposição”

(DALH, 1997, p. 37). Considerando um sistema político hipotético, se o líder do executivo tiver uma série de impedimentos legais para mobilizar o aparato repressivo do Estado (o rompimento da legislação exige custos), e se na perda de um processo eleitoral ele apenas deixará seu cargo, essa seria uma situação favorável ao sistema democrático.

Agora, se não houver impedimentos para o líder do executivo exercer coerção física, e se sua derrota política não significar apenas o afastamento do cargo, mas o seu encarceramento e sua morte, essa situação seria extremamente desfavorável para um sistema democrático.

No segundo caso, seria racional por parte dessa liderança romper com as regras democráticas e lutar com todos os seus recursos disponíveis pela manutenção de seu cargo.

Quando falo em desdemocratização brasileira, sustento que ocorreu desde o início do século XXI no Brasil uma elevação dos custos de tolerância política, processo esse colado à diminuição dos custos de repressão. Esses dois movimentos podem ser compreendidos com o debate sobre corrupção no país.

A corrupção enquanto debate contemporâneo

Tema clássico da teoria política, a corrupção foi discutida por filósofos, políticos e pela imprensa no mundo ocidental de diversas maneiras.

No nível mais teórico, passando por Maquiavel e atravessando “O Federalista”, o tema foi apresentado pela oposição entre “interesse público” e “interesse particular”, sendo as situações de corrupção (ou degeneração) identificadas pela prevalência do segundo sobre o primeiro.

Sob a perspectiva neoliberal, esse debate é bastante distinto. O economista John Williamson, famoso pela cunhagem do termo “Consenso de Washington”, defende a liberalização como forma de combate à corrupção. Segundo o autor o problema da corrupção seria um mal que acomete a América Latina de maneira especial, embora todos os países padecessem desse mal. No argumento do autor, é interessante identificar dois aspectos. Um, o axioma das vantagens do livre-mercado. Em tal sistema de pensamento, não existe exatamente uma contradição entre interesse público e privado; ao contrário, a própria iniciativa privada produziria o bem público.

E dois, a proximidade que o termo corrupção ganha ao termo “fraude”. A corrupção não seria a prevalência de interesses particulares sobre o interesse coletivo, mas sim um desvio de conduta preconizado em determinado sistema normativo.

A consequência política dessa diferença de concepção é a seguinte: a solução da corrupção, ao invés de ocorrer pela opção política por alguém representaria os interesses coletivos mais adequadamente, ocorre pela intervenção ativa de um sistema judiciário que ordena o comportamento dos indivíduos.

Nessa situação, o judiciário se reposiciona na estrutura social. Ao contrário da avaliação dos Federalistas, que observavam uma natureza humana intrinsecamente má, e a necessidade de um esquema institucional de freios e contrapesos; pela concepção atual, o poder judiciário se eleva a um status de poder moderador, um poder para além da leitura fria da norma, um poder moralizador, já que combate o mal da corrupção.

Essa perspectiva também se apresenta, com algumas nuances, em artigo acadêmico recente de Sergio Moro, juiz da operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro.

Sob o título “Prevenindo a corrupção sistêmica no Brasil”[vi], Moro disserta sobre a operação por ele comandada, e discute como esta revelou uma estrutura de corrupção sistêmica no país.

Ele não apresentou uma definição precisa do conceito de corrupção, mas é sintomático no artigo observar a proximidade que essa palavra possui das palavras “propina” (bribe) e “crime”.

O juiz apresenta uma visão abrangente do problema da corrupção enquanto fraqueza institucional e cultural de determinada sociedade (MORO, 2018, p. 163), e delega a culpa para diversos agentes estatais (e em alguns momentos também empresários, destoando um pouco da argumentação de Williamson) (MORO, 2018, p. 163). E ainda reforça que a solução do problema não pode vir apenas do judiciário (MORO, 2018, p. 162).

Porém, o judiciário, segundo Moro, vinha assumindo um protagonismo no combate daquilo que ele vai chamar de “corrupção sistêmica” na história recente no Brasil. Seria ela que estaria consolidando o Estado de Direito (rule of the Law) no país em uma posição reativa.

“O processo judicial é apenas uma reação contra a corrupção, de maneira que o sistema judicial não pode vendar os olhos diante do crime”.(MORO, 2018, p. 164).

Corrupção aparece aqui estreitamente ligada à ideia de crime, de conduta desviante das prerrogativas normativas a serem defendidas pelo sistema judicial.

A reatividade do judiciário será elemento importante na defesa dos procedimentos adotados nos processos anticorrupção, na caracterização do judiciário enquanto poder moderador neutro, e será discutida mais adiante.

Considero que as perspectivas desses dois ideólogos seja suficiente para retratar a concepção vigente sobre corrupção no Brasil no início do século XXI: uma conduta desviante do padrão normativo.

Essas condutas, que deveriam ser regradas pelo sistema normativo, precisavam ser sustentadas por um poder judiciário, que nesse caso possuiria um papel de consolidação do sistema normativo como padrão de conduta dos integrantes da sociedade.

Essa capacidade moralizante do sistema judiciário brasileiro é questionável de longa data, anterior mesmo à concepção neoliberal de corrupção. O termo “acabar em pizza” sempre foi usado para revelar a incapacidade desse poder em exercitar tal papel.

Mesmo que essa perspectiva moderadora do judiciário orientasse uma série de agentes sociais importantes, não existiam condições materiais (operacionais, de balança de poder com as outras estruturas estatais, de legitimidade social) que permitissem ao judiciário cumpri-lo.

É possível dizer que no início dos anos 2000 foi empreendido um grande esforço para criar tais condições. Mas como será visto adiante, quando as condições tornaram-se reais, o que surgiu não foi um poder moderador.

Rodolfo Palazzo Dias é Pós-doutorando na UFRJ  (I parte)

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