Tempo - Tutiempo.net

TOMARA QUE DEUS EXISTA/POR Delmar Bertuol

Deus, não lhe falte

Era domingo de manhã. Depois da festa sem abreviaturas da noite anterior, fomos limpar o salão e arrematar o resto de carne e de chope.

A roda de conversa estava feita à entrada do clube. O chope em cima da noite pouco dormida mascarava a ressaca. Outros na cozinha, limpando. Sempre tem uns que trabalham enquanto os outros ficam na bonança. É assim na sociedade capitalista. É assim num pós-festa.

Ela chegou sem querer chegar, mas precisada de vir. Tinha seus sessenta bem aparentados na pele maltratada pelo sol e nos dentes carentes dum urgente odontólogo.

Encabulada, que a pobreza é motivo de vergonha na sociedade pretensamente meritocrática, perguntou se por ventura não havia sobrado latinhas. Dessas de alumínio que se vende no “compro metal e bateria velha”.

O pior é que não tinha. Os refrigerantes foram servidos em garrafas pets de dois litros, decerto pra justamente economizar e sobrar mais pro chope, que dispensa embalagem.

Um mais familiarizado com o lugar disse que avançasse. Fosse à cozinha ver se podia ter algo que lhe interessasse. Ela negou-se dum pronto. “Tenho vergonha!”, disse explicitamente. Além disso, não podia se distanciar do seu carrinho. Aquele que tava lá do outro lado da rua cheio de cacarecos e que, amanhã bem cedo, iria lhe render não sei quantos pilas.

O da-vez ainda tentou argumentar. Qual vergonha? Ali era tudo gente. E gente simples, fez questão de adicionar. E quanto ao carrinho, vigiaríamos. Não adiantou. Não moveu o pé dali da entrada, distante daqueles que ela julgava com mais méritos do que ela.

O citado, então e antes que ela voltasse às suas mercadorias estacionadas, disse que ela aguardasse ali mesmo. Iria lá dentro ver se por ventura tinha alguma latinha, vai saber. Ela, esforçando-se pra falar, juntou coragem e pediu que, se tivesse alguma comida que não fosse nos faltar, aceitava também, com o desculpar da solicitação.

Pro bem da natureza, mas azar da mulher, não havia mesmo muita embalagem. Latinha, nenhuma.

O homem, contudo, trouxera uma generosa marmita que não iria nos faltar. Era comida o suficiente pra alimentar ela e o par de netos, sorriu satisfeita.

Saiu agradecendo e nos desejando tudo o de melhor. Decerto sabendo que com sua vida que ela julgava inferior não conseguiria, passou a conta a Deus. Que Ele nos protegesse e nos acompanhasse hoje e sempre.

Cético, não sei se Deus existe. Mas volta e meia Lhe falo. Com mais ou menos convicção. Depende do grau de minha necessidade.

Em desespero, quando preciso d’algo, torço muito pra que Ele exista e não me ignore. Mas, naquele dia, não foi por mim que eu rezei esperando que Me escutasse. Foi por ela. Ela julgou que nada poderia fazer por nós. Mal sabe ela que eu tampouco posso ajudá-la para além de um pedaço de carne com arroz de ontem.

Se Deus existir, espero que não a ignore.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
Acompanhe Pragmatismo Político no Instagram, Twitter e no Facebook

Delmar Bertuo

OUTRAS NOTÍCIAS