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Uma vitória do povo, por Aldo Fornazieri

A verdade dessa duríssima campanha foi pronunciada ontem à noite por duas vozes: uma a de Lula e outra de Alckmin. Lula afirmou que a vitória não era dele, nem do PT e nem dos partidos que o apoiaram. A vitória foi do povo, foi da democracia, foi das mulheres e homens que a construíram.

Alckmin proclamou que somente a liderança de Lula poderia derrotar a máquina da mentira, a medonha máquina do Estado que foi posta em movimento em benefício de Bolsonaro.

É verdade: qualquer outro candidato que não fosse Lula teria perdido essa eleição. Se por um lado isto engrandece ainda mais a figura histórica de Lula, por outro, não deixa de ser assustador.

De fato, essa vitória foi do povo e da democracia, foi a vitória das mulheres, dos negros, da juventude, da educação, da cultura, da ciência, dos trabalhadores.

A apatia do primeiro turno foi substituída por milhares de possas nas ruas. A arrogância do “já ganhou” do primeiro turno foi pisoteada pela combatividade do segundo turno.

A percepção do perigo permitiu que se construísse a vitória dos moradores de rua, dos que têm fome, dos que moram debaixo da ponte. Foi a vitória daqueles que não têm esperança e foi a vitória da esperança.

Esta vitória derrotou o autoritarismo, a violência, o ódio, a incompetência e a indiferença.

Esta vitória derrotou o deboche contra os mortos e o desprezo pelos vivos.

Foi uma vitória que derrotou a desumanidade e que restaurou o sentimento do humano, de que somos uma comunidade e de que temos um destino comum.

Por isso, foi uma vitória da humanidade, da vida, do planeta, da natureza.

Foi uma vitória das florestas, dos rios, dos seres das águas, dos pássaros dos céus, dos animais, das flores, dos frutos, dos grãos e das sementes.

Foi a vitória de todos aqueles que querem deixar como legado para as gerações futuras, um planeta no qual se possa viver, no qual se possa contemplar as belezas naturais.

Seremos indignos da nossa existência se deixarmos como legado uma  terra devastada, ruínas e escombros, áreas improdutivas e desérticas, secas de água, vazias de esperança.

Seremos indignos da nossa existência se deixarmos como legado uma terra sem flores, sem que as vinhas possam crescer e frutificar, sem que vindimas possam ser feitas e sem o vinho para alegrar os corações.

Todo esse mal foi imediatamente derrotado. Mas não está morto.

Ele paira em todos os lugares como uma ameaça. Essas eleições ainda deram-lhe força no Congresso, em governos estaduais. Temos que lutar muito ainda para que possamos deixar um bom legado.

Temos que lutar muito para que possamos ser realmente dignos da dádiva da vida que recebemos.

Se aplicarmos a teologia das religiões e dos deuses antigos, que é a mesma teologia bíblica do pecado e da punição de Jeová, do Deus judaico-cristão, podemos dizer que este Deus puniu Bolsonaro, a sua esposa Michelle, Damares Alves, Silas Malafaia, Edir Macedo, o pastor Valadão, o pastor Hernandes e tantos outros vendilhões do Templo.

Essa teologia diz que os pecadores serão punidos pela ira divina com derrotas, consequência dos pecados que cometeram.

Sim, toda essa gente pecou contra a Constituição e contra o povo, pronunciou palavras blasfemas o tempo todo, assassinou a inocência para conseguir votos e não teve nenhum escrúpulo. Instrumentou os iracundos para que cometessem violência, espalhando o medo.

Não hesitaram em jogar granadas e dar tiros contra os agentes da lei.

Estimularam um país sem lei. Assassinaram para conseguir votos nas periferias. Perseguiram cidadãos com armas em punho pelas ruas movimentadas de São Paulo.

Tudo isso foi derrotado. O mal imediato foi afastado. Haverá tempo para recuperar o fôlego, recompor os nervos, restabelecer a calma.

Lula terá tarefas gigantescas pela frente. Terá que exercitar até à exaustão sua imensa capacidade de diálogo.

O realismo político nos indica que a tarefa será mais de reconstrução, de religação de diálogos, de fios de esperança, de recuperação de institucionalidade esgarçada, de práticas democráticas, de procedimentos legais.

Lula terá que compor um sólido e competente governo plural. Até porque foram forças plurais que o elegeram.

As figuras que mais pontificaram nessa pluralidade no segundo turno foram Simone Tebet e Marina Silva, o senador Randolfe e Janones, entre tantos outros. Terá que dialogar com parte dos congressistas que foram seus adversários. Terá que dialogar com governadores de oposição.

Por fim, louve-se o TSE e Alexandre de Moraes.

Sem a firmeza e a contundência deles é até de se duvidar de que essas eleições teriam ocorrido.

Ao menos não teriam ocorrido da forma que ocorreram. Muitos criticaram as medidas excepcionais que o Tribunal e o ministro adotaram, classificando-as de censura e extrapolação do Estado de Direito.

Mas a história mostra que não se pode deixar que o Estado de Direito seja destruído, que a democracia seja destruída, pelos seus próprios instrumentos.

Diante da violência excepcional de que Estado de Direito e a democracia são atacados, é legítimo que os limites da lei sejam utilizados de forma excepcional para salvar a ambos.

Caso contrário a democracia é assassinada e a violência pode tingir de sangue as leis, a Constituição e o Estado de Direito. Foi isto que o TSE e Alexandre de Moraes evitaram. Este reconhecimento lhes é devido. E essa honra eles merecem.

Enfim, foi uma vitória dura e, em vários aspectos, amarga. O gosto mais amargo foi a derrota de Haddad em São Paulo. Mesmo que amarga, ela pode e deve ser comemorada. E nisto também está a sua doçura.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.

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