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Vidas foram perdidas durante atrasos e interrupções politicamente motivados na campanha de vacinação contra a COVID-19

A batalha política contra a vacina para covid-19

Diante do cenário dinâmico e complexo do surto de COVID-19, países de todo o mundo estão expandindo os programas de vacinação contra a doença para incluir as crianças pequenas. Apesar das hospitalizações e mortes associadas à COVID-19 em populações pediátricas serem menos comuns, a doença emergiu como uma nova causa de mortalidade para crianças e adolescentes em comunidades pobres.[i]

No Brasil, a vacina contra a COVID-19 da Pfizer-BioNTech (ComiRNAty) foi autorizada pelo regulador federal de saúde (ANVISA) para adolescentes com idades entre 12 e 17 anos em 11 de junho de 2021, seis meses após o início da campanha nacional de vacinação. Ainda assim, o ministro da saúde Marcelo Queiroga anunciou em 16 de setembro a intenção de suspender a vacinação contra a COVID-19 para adolescentes sem comorbidades devido a uma morte sob investigação e preocupações relativas a eventos adversos nesta faixa etária, mesmo que mais de 3,5 milhões de adolescentes já tenham sido imunizados.

Apesar das dúvidas levantadas pelo presidente Bolsonaro e pelo ministro da saúde Marcelo Queiroga, múltiplos estudos clínicos randomizados, controlados e programas de vigilância têm garantido a segurança da vacina para crianças e adolescentes. Felizmente, a imunização deste grupo etário foi apenas temporariamente suspensa e tem progredido desde então, e ao menos 25% já receberam duas doses.

Recentemente, uma nova batalha contra a COVID-19 no Brasil tem sido travada entre a ANVISA, cientistas, anti-vacinas e autoridades federais: a vacinação de crianças de 5 a 11 anos de idade. Logo após a autorização da vacina ComiRNAty pelas autoridades reguladoras, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro afirmou, “as crianças não têm morrido de uma forma que justifique uma vacina para crianças”[ii]. Esta posição foi apoiada também pelo Ministério da Saúde que realizou uma audiência pública sem precedentes sobre a vacinação de crianças contra a COVID-19, incluindo perguntas sobre se a vacina deveria ser administrada apenas com o consentimento dos pais (ou tutores) e prescrição médica. Lamentavelmente, esta recomendação excluiria as crianças mais pobres e mais marginalizadas, com acesso reduzido aos serviços de saúde, da possibilidade de vacinação.

Em seu conflito permanente com o regulador federal de saúde, Bolsonaro ameaçou revelar os nomes dos funcionários da ANVISA responsáveis pela aprovação da vacina para crianças e tem constantemente lançado dúvidas sobre a eficácia e segurança das vacinas contra a COVID-19. Apesar da minimização da gravidade da infecção por SARS-CoV-2 em crianças brasileiras pelo presidente, das frágeis acusações de que as vacinas podem ser perigosas para as crianças e do atraso na aquisição da vacina pelo Ministério da Saúde após a aprovação pela ANVISA da utilização da ComiRNAty em crianças com idades entre 5 e 11 anos em 16 de dezembro de 2021, a vacinação desta população começou no Brasil em 15 de janeiro de 2022.

Entretanto, as mudanças logísticas na entrega das doses pediátricas para os estados dificultaram o transporte de doses de ComiRNAty para os locais de armazenamento, aumentando o risco de perda de lotes de vacinas. Em 20 de janeiro, os reguladores brasileiros também concederam autorização para uso emergencial da CoronaVac em crianças com 6 anos ou mais. A vacina com vírus inativado, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a empresa Sinovac, sediada em Pequim, também foi criticada pelo presidente através de discursos e das redes sociais.

Apesar da evidência científica disponível[iii] e as vidas perdidas para a COVID-19, uma nota técnica (n°. 2/2022 – SCTIE/MS) publicada pelo Ministério da Saúde em 22 de janeiro classifica a hidroxicloroquina como eficaz e segura para o tratamento contra a COVID-19 e salienta que a eficácia e segurança das vacinas ainda não estão demonstradas. Ao mesmo tempo, os aliados do presidente continuam exigindo a suspensão da distribuição da vacina, por meio da propagação de notícias falsas na internet e em aplicativos de mensagens.

Neste contexto, é necessário enumerar cinco pontos que fundamentam a vacinação de crianças e adolescentes no país: (1) a vacina ComiRNAty aprovada pela ANVISA é segura, imunogênica e eficaz contra a COVID-19 em crianças de 5 a 11 anos de idade[iv] e em adolescentes de 12 a 15 anos de idade.[v] Além disso, há provas de que a CoronaVac é bem tolerada e segura e induziu respostas humorais em crianças e adolescentes com idades entre 3 e 17 anos;[vi] (2) revisões recentes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) nos EUA, incluindo mais de 17,5 milhões de doses da vacina ComiRNAty administradas em crianças[vii] e adolescentes[viii] relataram um total de 13.495 (~0,08%) eventos adversos, com excepcionalmente raros (~0,005%) relatos graves, incluindo 408 casos de miocardite não fatal (~1 caso por 1 milhão de doses para crianças e ~45 casos por 1 milhão de doses para adolescentes);

(3) no Brasil, há cerca de 20 milhões de crianças não vacinadas com idades entre 5 e 11 anos que podem tornar-se hospedeiras de vírus à medida que os adultos atingem a proteção imunitária e muitos estados não podem alcançar uma elevada cobertura vacinal sem uma ampla cobertura deste grupo. As crianças podem transportar cargas virais elevadas de SARS-CoV-2[ix], o que pode contribuir para a transmissão comunitária entre humanos, além dos riscos apresentados pelo regresso às atividades presenciais nas escolas e creches em fevereiro de 2022; (4) apesar da proporção de casos confirmados de COVID-19 entre crianças e adolescentes ser relativamente pequena e as mortes serem pouco comuns, há provas de que a doença afetou desproporcionalmente este grupo etário no Brasil, especialmente nas regiões mais pobres[x]; e, (5) no Brasil, as mortes por COVID-19 entre crianças e adolescentes excederam a média anual de mortes por neoplasia, doenças do sistema nervoso, causas cardíacas, e outras doenças evitáveis por vacinação (http://tabnet.data sus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def).

 

Os dados acumulados até a segunda semana de janeiro de 2022 mostraram que pelo menos 2.530 crianças e adolescentes de 0 a 19 anos de idade morreram de COVID-19 no Brasil, dos quais ~53% tinham menos de 9 anos de idade. A taxa global de mortalidade para este grupo etário foi estimada em ~4 mortes por 100.000 crianças e adolescentes, com taxas mais elevadas registadas no Norte e Nordeste (~5 mortes por 100.000 crianças e adolescentes), consideradas as regiões mais pobres do país. Além disso, o número de mortes por COVID-19 neste grupo etário pode ser 1,5 vez superior ao relatado nos boletins oficiais dos estados brasileiros (Tabela 1).

Infelizmente, estes números sugerem que nossa nação representa cerca de 20% do total de mortes por COVID-19 em nível mundial e, especificamente para este grupo etário, as taxas de mortalidade são 4 vezes superiores às observadas nos EUA[xi]. Agora, a transmissão comunitária da variante Ômicron levou a um aumento acentuado do número de casos de COVID-19 e hospitalizações em alguns estados brasileiros desde o início de janeiro deste ano, especialmente entre indivíduos não vacinados. Este cenário catastrófico já foi observado na população pediátrica dos EUA e, mais recentemente, em São Paulo e Salvador.

Por mais baixa que seja a taxa de mortalidade associada à COVID-19 em crianças e adolescentes, as mães perderam seus filhos durante estes atrasos e interrupções politicamente motivados na campanha de vacinação. Mais do que uma obrigação moral, a vacinação de crianças e adolescentes no Brasil é uma necessidade sanitária para controlar a pandemia e evitar que as famílias vejam suas crianças morrerem devido ao negacionismo de uma doença evitável por meio da vacina.

*Paulo Ricardo Martins-Filho é professor do Departamento de Educação em Saúde da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Paulo Ricardo Martins-Filho  e Lorena G. Barberia – ScienceDirect.

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