Em quatro dias, a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação Nacional do Comércio e Serviços pediram três vezes ao Supremo Tribunal Federal que seja suspensa imediatamente a divulgação dos relatórios de transparência salarial, uma obrigação prevista na Lei de Igualdade Salarial para empresas com 100 funcionários ou mais. Pela lei, sancionada no ano passado, as empresas têm que informar ao Ministério do Trabalho, a cada seis meses, os dados e critérios remuneratórios que adotam.
A partir deles, a pasta vai produzir um relatório que deve ser divulgado nos canais oficiais das corporações, como site e redes sociais.
Os pedidos foram feitos no âmbito de uma ação movida pelas entidades patronais em 12 de março, quatro dias após o Dia Internacional de Luta das Mulheres, para questionar pontos da Lei de Igualdade Salarial, do decreto e da portaria que regulamentaram a aplicação da lei, que foi sancionada ano passado.
Para as entidades, os textos contêm trechos que seriam inconstitucionais e a divulgação dos relatórios, neste momento, poderia causar “graves danos reputacionais às empresas”, além de danos a “garantias fundamentais das empresas e seus funcionários”.
A produção e divulgação dos relatórios são considerados o pontapé inicial necessário para a política de igualdade salarial ser efetiva, uma vez que somente com os dados atualizados o governo e o setor privado poderão enfrentar, de fato, o problema.
Após o pedido apresentado junto com a ação, chamada de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), as entidades protocolaram no STF, nos dias 14 e 15 deste mês, pedidos de liminar que reiteravam os argumentos e alegando como “perigo” o fato de o governo ter estabelecido uma data para divulgar os relatórios, primeiro anunciando o dia 18 e, depois, o dia 21 deste mês.
O caso está sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes que, nesta segunda-feira, (18), solicitou que a Presidência da República, Câmara dos Deputados e Senado Federal se manifestem em até 10 dias sobre a ação.
Ao solicitar as manifestações, o ministro sinaliza que vai buscar novas informações junto às demais autoridades antes de tomar alguma decisão, o que indica que ele concederá liminares.
Cenário mais amplo de diferenças salariais
Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato consideram que a ação movida pelas entidades patronais tem argumentos subjetivos e que o momento em que ela foi protocolada, na véspera da divulgação dos relatórios, indica que ela tem como objetivo não permitir que seja exposta a falta de critérios claros para as diferenças de remuneração entre homens e mulheres existentes até hoje no mercado de trabalho.
“Isso interferiu naquilo que o capital tem como seu maior trunfo na exploração do trabalho, que é o poder. O poder de controle, e esconder suas razões. Com essa transparência você tem um aspecto maior de controle dos trabalhadores sobre a atividade empresarial, sobre as fórmulas que utilizam para dividir a classe trabalhadora, por meio de salários que são diferenciados por critérios não revelados.
É contra isso que estão se valendo, mas claro que não vão dizer isso”, explica o professor de Direito do Trabalho da USP, Jorge Luiz Souto Maior.
Um dos principais argumentos apresentados pelas entidades patronais é em relação a um trecho da lei que fala que, mesmo que a desigualdade salarial entre homens e mulheres encontrar respaldo na CLT a empresa deverá apresentar um plano de trabalho para mitigar as diferenças entre os sexos.
Para a CNI e a CNC isso representaria uma forma de penalização mesmo para situações que não são propriamente ilegais.
A CLT prevê em alguns casos a diferença salarial, como no de dois funcionários que atuam na mesma empresa e com a mesma produtividade, mas tenham mais de quatro anos de diferença de tempo de serviço entre eles.
No caso de exercerem a mesma função, a diferença salarial entre os funcionários é justificável caso um deles exerça a mesma função há mais de dois anos de diferença que o outro funcionário.
“Sob o ponto de vista da razoabilidade sequer se justifica a publicação desses relatórios, em especial para as empresas cumpridoras da lei, e sem que haja uma conduta ilícita, ou discriminatória e sem prévia fiscalização, com riscos tanto para a livre concorrência, como para a imagem da empresa”, dizem as entidades na ação.
Para a advogada trabalhista, Milena Pinheiro, porém, o fato de a legislação prever que a empresa crie um plano de mitigação não significa necessariamente uma punição. Além disso, a Lei de Igualdade Salarial busca expor o cenário mais amplo das diferenças salariais nas empresas.
“A ideia da divulgação dos relatórios é ver se, independente de no cargo específico, há uma violação mais bruta, menos sofisticada da isonomia, se no conjunto da estrutura de uma organização as mulheres estão sendo ocupadas em cargos mais bem remunerados ou menos remunerados”, explica.
Na avaliação da especialista, que tem acompanhado a ação no STF, a lei parte da premissa de que é necessário olhar para os tipos mais sutis de discriminação salarial entre homens e mulheres que vão além da diferenciação prevista na CLT.
“A ideia da lei é exatamente compreender que, no contexto da CLT, que já completou seus 80 anos, a gente não conseguiu mitigar os resultados do IBGE, que mostram que existe uma diferença salarial entre homens e mulheres.
A lei busca expandir a compreensão de que a discriminação não acontece dessa forma mais básica, eu diria ingênua até, de colocar pessoas diferentes em funções idênticas no mesmo lugar ganhando salários diferentes. A discriminação decorre de outros elementos que a lei busca equacionar”, afirma.
‘Direito de defesa e contraditório’
Na ação, as entidades patronais ainda chegam a alegar que a maneira como está prevista a divulgação do relatório e as medidas que o governo poderá adotar a partir da constatação das desigualdades impediriam o “direito de defesa” das empresas.
“Não se poderia admitir dentro da tônica constitucional, por exemplo, a imposição de propostas de ajustamento de conduta a todos os empregadores cujos relatórios porventura evidenciem diferenças remuneratórias ínfimas, sem que oportunizasse, de forma prévia e adequada, seu direito de defesa, como impõem os incisos LIV e LV do artigo 5º constitucional”, argumentam na ação.
Para o advogado especialista em Direito do Trabalho, André Lopes, porém, o argumento das entidades não se sustentaria, já que a lei permite que a empresa, ao apresentar os dados de sua força de trabalho para o governo, apresente também as justificativas e critérios de promoções e diferenciações salariais.
“Ao apresentar o relatório a empresa já pode tentar justificar o porquê. Ela pode, inclusive, dizer se de fato existe isso ou por que está ocorrendo determinada situação. Em momento algum a lei coloca qualquer óbice a essa questão das empresas não poderem se defender”, explica.
Além disso, o que a legislação aprovada e regulamentada no ano passado prevê é que, caso seja identificada alguma situação de desigualdade salarial, as empresas terão um prazo para apresentar um programa de mitigação de desigualdades. Em outras palavras, não haverá punição imediata.
Na mesma linha, Souto Maior lembra que, tanto nos casos de punições na Justiça, como o pagamento de danos morais pela empresa que descumprir a regra, quanto uma punição administrativa (no âmbito do Ministério do Trabalho), elas só ocorrerão após um procedimento, seja na Justiça ou no próprio Ministério do Trabalho, no qual está previsto que as empresas devem se manifestar e apresentar suas defesas.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, a Lei de Igualdade Salarial prevê indenização por danos morais em situações de discriminação por sexo, raça, etnia, origem ou idade. Neste caso, porém, a pasta pode adotar medidas de averiguação e fiscalização junto à empresa, como solicitar informações complementares àquelas que constam no relatório.
De acordo com o professor da USP, a legislação trabalhista é clara ao prever que as punições por meio de indenizações só serão cobradas da empresa quando for possível identificar de maneira específica um episódio de discriminação.
“O que lei procura dizer é que diferenças precisam estar objetivamente justificadas. Quando você tem, por exemplo, critério de tempo de serviço, que isso esteja explicitável. Um reajuste de 5% a cada cinco anos, por exemplo, isso demonstraria que não há discriminação”, afirma o professor.
LGPD e livre concorrência
Outro ponto levantado pelas entidades na ação são os possíveis riscos à Lei Geral de Proteção de Dados e à livre concorrência já que, segundo as entidades, a divulgação dos relatórios poderia expor dados sensíveis e, inclusive, dados de estratégias comerciais.
“A LGPD, ainda que no plano infraconstitucional, está em linha com essa argumentação, pois reconhece, a propósito, que os dados pessoais podem constituir segredos comercial ou industrial, determinando, ainda, em seu artigo 6º, inciso VI, os princípios a serem observados na atividade de tratamento de dados, dentre eles, o princípio da transparência (observados, porém, o segredo industrial e comercial)”, diz a ação movida pela CNI e pela CNC.
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, porém, não há risco de se desrespeitar a LGPD, já que a Lei de Igualdade Salarial e o decreto e a portaria que a regulamentaram deixam claro o respeito às diretrizes da LGPD, como a não identificação dos funcionários da empresa pelo nome nos relatórios.
A própria Advocacia-Geral da União conseguiu extinguir uma ação movida por uma entidade patronal local do Paraná na Justiça do Trabalho para que as empresas não fossem obrigadas a fornecer os dados de remuneração de seus funcionários ao Ministério do Trabalho, alegando que isso afrontaria trechos da LGPD.
“Os procedimentos adotados para a elaboração do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios demonstram o comprometimento do Ministério em seguir as diretrizes da LGPD, garantindo a legalidade da atuação. Diante das informações prestadas, é seguro afirmar que o Ministério do Trabalho e Emprego está atuando de forma responsável e diligente na gestão dos dados, preservando a privacidade e a segurança das informações”, afirmou a advogada da União Luiza Zacouteguy Bueno, na manifestação apresentada pelo órgão na ação local.
Na ADI movida no Supremo, a CNI e a CNC alegam ainda que a divulgação dos relatórios exporiam segredos estratégicas dos negócios das empresas, “uma vez que a remuneração de empregados e colaboradores se insere invariavelmente na forma de atuação das empresas e interfere na política de manutenção de talentos.
O segredo não é mantido para esconder ilícitos, mas por ser estratégia de captação e manutenção de bons profissionais. Evita, ainda, a cartelização ou práticas contrárias ao direito econômico de concentração de mercado entre esses empregadores”, dizem as entidades na ação.
Para o advogado trabalhista e membro da Executiva da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD), Nuredin Allan, o argumento contradiz a própria lógica da livre iniciativa. “Ainda que todo mundo saiba quanto ganha todo mundo, faço uma pergunta: não é essa a lógica dessa livre concorrência, dessa liberalidade do mercado, que eles tanto pregam? Então, qual é o problema do concorrente saber que está pagando vezes dois?
Pague também, se não quer perder seu pessoal! Essa é uma lógica, insisto, da livre concorrência, a lógica de mercado, que eles adoram defender sempre para tirar direitos”, afirma o advogado.
“Questões sensíveis às empresas precisam ser tratadas de maneira pontual, ou seja: se a empresa tiver alguns métodos de proteção dos seus empregados ou de políticas internas e não os puder expor, ela vai ter o foro adequado para debater isso. O que empresas não querem é a demonstração que elas não têm política nenhuma. Essa é a grande verdade. Há exceções, mas via de regra as grandes corporações têm zero práticas concretas de políticas salariais, seja de igualdade de gênero, seja que envolvam questão racial”, conclui o advogado.
Edição: Thalita Pires