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COVARDIA E PRECONCEITO CONTR A EX-PRIMEIRA DAMA MARISA

Dona Marisa e Lula

As gatas pingadas de São Paulo que estrelaram um deprimente ato de preconceito contra a presença de Marisa Lula da Silva na UTI do Hospital Sírio Libanês, onde a primeira dama do Brasil entre 2003 e 2011 luta para recuperar-se de um AVC, ajudam a ilustrar uma cena que expressa  os piores traços da camada dominante da sociedade brasileira mas não chega a ser novidade.

É uma forma de covardia. Para atingir Lula, ataca-se sua mulher – em coma induzido, neste momento.

Em outubro de 2011, quando o próprio Lula internou-se no mesmo hospital para tratar-se de um câncer na laringe, foi criticado por ter procurado atendimento no mesmo Sírio, um dos mais caros hospitais do país, em vez de bater as portas do SUS.

Assim, a cena de 2017 não representa um caso isolado de intolerância.

Marca a continuidade de gestos de óbvia inspiração fascista contra uma pessoa em  luta pela própria vida.

É um comportamento sem freios nem constrangimentos depois de maio-agosto de 2016, período da “encenação” que derrubou Dilma, na definição do  ex-presidente do STF Joaquim Barbosa.

Você tem o direito de discutir se a família de Lula não agiria de forma mais   coerente se procurasse ser atendida pela rede pública, única opção de escolha para 75% dos brasileiros. Vamos falar sobre isso mais na frente.

Antes, cabe registrar o ponto essencial, que é o papel que, como presidente e líder político, Lula desempenhou na defesa da saúde dos brasileiros.

E aqui vale uma observação difícil de negar.

Apesar das carências e lacunas  que permanecem,  em nenhum período da história brasileira foram registradas melhorias e progressos tão notáveis como nos 13 anos e cinco e cinco meses em que o condomínio Lula-Dilma permaneceu no Planalto.

Neste período, ocorreram algumas das  grandes lutas políticas das duas últimas décadas, onde a disputa por verbas e prioridades não funcionou como banal guerra de números mas como espelho relativamente fiel de visões de mundo, interesses de classe  e prioridades do espectro político brasileiro.

Em retrospecto, pode-se até dizer que  duas batalhas importantes anunciaram os confrontos  que levaram ao impeachment. Nas duas oportunidades, quando ganhou e quando perdeu, Lula esteve do lado certo,  na defesa da saúde pública.

Uma delas  foi a guerra pela extinção da CPMF, em dezembro de 2007.

Foi vencida pelo núcleo duro do condomínio empresários-políticos que hoje celebra o massacre de um embrião de Estado de bem-estar social construído ao longo décadas.

Só para se ter uma ideia de seu significado.

Graças a CPMF, entre 2003 e 2006 foram investidos R$ 46,6 bilhões na área de saúde.

Já na ampliação do atendimentos hospitalar e ambulatorial do SUS, chegaram R$ 32 bilhões.

Mesmo tendo sido aprovada pela Câmara, a renovação da CPMF foi derrotada pelo Senado. Obteve uma maioria de 45 dos votos, mas precisava de 49 para ser aprovada.

A decisão guardou vários momentos políticos inesquecíveis, como a abstenção de  Napoleão Sabóia, presidente do Senado e, em teoria, aliado do governo, aonde chegou a ministro.

Também foi marcada por um discurso de última hora de Pedro Simon, que fez um apelo dramático — e sem sucesso — para que os líderes do PSDB voltassem a mesa de negociação para permitir a manutenção da CPMF, criada grande Adib Jatene no governo de Fernando Henrique e depois abandonada pelos herdeiros tucanos.

    Num país onde 25% da população consome 45% das verbas disponíveis para a saúde, a CPMF cumpria uma função distributivista.

Era uma forma de ampliar o bolo disponível  e modificar uma tendência, abertamente favorável a minoria do patamar de cima da pirâmide, que tem acesso ao sistema privado – onde cada centavo gasto com plano de saúde pode ser deduzido do imposto de renda.

Por essa razão, no final da votação, a visão de que o plenário fizera uma opção pelo egoísmo social era tão clara para muitos brasileiros que um advogado tributarista não teve pudores em divulgar cálculos risíveis para amenizar a situação.

Ignorando que o enfraquecimento do setor público empurraria pacientes para o setor privado, que cobra em moeda sonante por seus serviços, disse que os assalariados acabariam ganhando com a medida, pois  o fim da CPMF permitiria que um trabalhador com salário de R$ 500 fizesse uma economia de RS 156 por ano — ou 50 centavos por dia.

Também se afirmou que  grandes empresas – que se livraram do monitoramento das transações financeiras que a CPMF permitia – planejavam repartir com os consumidores uma parcela do dinheiro que deixavam de recolher aos cofres públicos.

A outra disputa envolveu o Mais Médicos, e marcou uma das últimas vitórias políticas importantes do governo Dilma. Mesmo boicotado pela oposição parlamentar e pelas entidades médicas, que colocaram filiados na rua em vergonhosos atos de repúdio,  o apoio sem distinção partidária da maioria dos prefeitos permitiu uma vitória sem sustos no Congresso.

Responsável pelo atendimento direto a 68 milhões de brasileiros que vivem nas periferias urbanas mais miseráveis e nos pontos extremos da pobreza rural, os 18 mil médicos do programa Mais Médicos costumam resolver 80% dos problemas de saúde destes brasileiros antes que eles assumam um estágio mais grave, muitas vezes incurável.

 Parece claro que estas lutas políticas ajudam a formar uma perspectiva realista para se debater a decisão de procurar atendimento num hospital privado, caro e exclusivo, que recusa  até pacientes com planos privados de custo médio.

 Vivemos num país onde a saúde disponível para a maioria da população funciona como um clássico caso de cobertor curto. Quando a pessoa cobre os pés, expõe a cabeça. E vice-versa.

O apoio da população ao SUS se reflete em pesquisas de opinião que demonstram um alto índice de satisfação com o atendimento, muito superior aquilo que se poderia imaginar pela leitura — sempre catastrófica — dos jornais e reportagens de TV.

Em outubro de 2011, quatro anos depois da eliminação da CPMF, reportagem de Ricardo Mendonça na revista Época mostrava que 51% da população concordaria em pagar mais impostos — desde que o dinheiro fosse encaminhado a saúde.

Se você perguntar minha opinião pessoal, acho que homens públicos devem ser atendidos pela rede pública. É seu lugar natural, de quem fala pelos cidadãos e deve viver como eles. A regra deveria valer para todos: para o senador e o prefeito, seja filho de banqueiro e o filho de bancário, o advogado, o sociólogo e  o metalúrgico.

Esse comportamento ajudaria a valorizar o existência do SUS e poderia para ampliar medidas de financiamento. Também seria um estímulo, óbvio, para o aprimoramento do atendimento que, mesmo começando com autoridades, poderia chegar ao cidadão comum.

É razoável imaginar, como fazem tantos observadores,  que os homens públicos prestarão mais atenção ao hospitais públicos quando estiverem condenados a recorrer a seus serviços em caso de necessidade.

Mas é bom desconfiar de utopias fáceis, pois elas também possuem contradições.

A disputa por vagas no atendimento público começa pelo acesso a bons hospitais — nem todos são iguais –, bons equipamentos  e bons médicos, que também são diferentes entre si.

A presença de uma autoridade num leito do SUS sempre pode levantar a hipótese de que ele estaria tirando a vaga de um paciente que não pode pagar por um atendimento privado.

Também lançaria a dúvida de conflito de interesses. Poderia estar usando de seus poderes no Estado para garantir benefícios como paciente. Seria o pistolão de si mesmo.

Como se vê, são inúmeras as armadilhas num país no qual a concentração de renda atingiu um nível de sistema feudal, onde oito senhores do castelo tem renda  a 50% da população, segundo a ONG britânica Oxfam.

Nesta situação, não há saída além do fortalecimento do SUS. A alternativa, que envolve o subsídio a planos “populares”, como cogitado pelo ministro Ricardo Barros, é só uma forma de piorar o que precisa melhorar — e é um bom retrato da turma que organizou um ato de preconceito contra Marisa Lula da Silva.

Paulo Moreira Leite

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