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MMA do Senhor: quando a igreja usa lutas como instrumento de evangelização

Evento, batizado Ultimate Reborn Fight, reúne centenas de pessoas no antigo ginásio do Canindé, arrendado pela igreja evangélica em São Paulo

Sexta-feira à noite. Divididos em vestiários de um ginásio em São Paulo, lutadores se recuperam de combates enquanto outros se aquecem, colocam luvas e se preparam para as lutas seguintes.

Do lado de fora das portas, quem domina o centro do octógono montado para a quinta edição do Ultimate Reborn Fight (URF) é o bispo Leandro Miglioli, de 41 anos, da Igreja Apostólica Renascer em Cristo.

Sob as luzes da Arena Renascer — ginásio à beira do rio Tietê arrendado à igreja em 2015 pela Portuguesa —, o bispo Lê, como é conhecido, usa o microfone para um testemunho de fé em que cita a história de Davi e Golias, uma das histórias mais conhecidas da Bíblia.

“Davi partiu para cima de Golias e a vitória mais improvável aconteceu. Davi atirou uma pedra e Golias foi nocauteado imediatamente. Fui nocauteado pela cocaína dos 15 aos 20 anos, quando conheci o que dava a Davi o poder de vitória. (…) O dia em que coloquei meus pés nesta igreja nunca mais usei drogas”, diz o bispo.

“Você não entrou aqui hoje por acaso, apenas para assistir a essas lutas que adoro, mas porque Deus tem um propósito em sua vida. Se tiver a atitude que tive, que Davi teve, Jesus vai entrar em tua vida, e nunca mais esse gigante que te assola irá te vencer.”

Com as mãos ao alto e cabeças curvadas, o público, estimado pela organização em 3 mil pessoas, consente e repete as palavras da oração puxada pelo bispo.

A interrupção dura cerca de dez minutos e evidencia a principal diferença entre o URF e outros eventos profissionais de MMA (Mixed Martial Arts, ou artes marciais mistas).

Nos torneios da Renascer não há mulheres com placas entre os rounds nem álcool na plateia, e a disputa atlética serve de cenário para atrair jovens que não necessariamente dedicariam uma noite de sexta-feira à religião.

“O MMA é um esporte que exige muita dedicação e trabalho. Na igreja ele é praticado com a mesma qualidade: respeitando regras, com ordem e decência. Então não é manifestação de violência”, afirmou  o apóstolo Estevam Hernandes Filho, de 63 anos, fundador da Renascer, para quem a igreja é “pioneira na realização de eventos esportivos como estratégia de evangelismo”.

A Renascer nega que haja relação entre os problemas recentes e a aposta nas lutas. “O objetivo do incentivo ao esporte é realmente alcançar vidas, ajudá-las, levar as pessoas a ter uma vida mais saudável e a conhecer Jesus. Não só esta como todas as atividades da igreja Renascer têm apenas este objetivo”, afirmou a assessoria.

Hernandes diz que o próximo passo da igreja no mundo do MMA é criar uma escola na favela de Heliópolis, em São Paulo, e promover um a dois eventos profissionais por ano. “Nosso objetivo é investir mais nestes eventos, não apenas em São Paulo, mas em outras regiões do país.”

Vale-tudo gospel

De volta ao ginásio paulistano, boa parte do público é formada por fieis da Renascer e fãs dos lutadores – alguns usam até camisetas com estampas de atletas. Os ingressos custam de R$ 30 a R$ 50 e tudo é transmitido pela Rede Gospel de Televisão, a rede VHF e UHF da Renascer.

Durante as lutas, é possível ouvir gritos tradicionais do público de MMA – como o “Uh, vai morrer!” -, mas nada que domine a arena. O sermão do bispo Lê promove engajamento: pessoas ficam de pé, erguem as mãos, fecham ou olhos ou repetem parte das frases. Mas há também gente aparentemente indiferente à pregação.

Com exceção da ausência de mulheres em trajes mínimos e de cerveja na arquibancada, o ritual é o mesmo de outros torneios de MMA: apresentador com tom dramático, três juízes, nada de cabeçadas, golpes nos genitais ou na nuca.

No octógono os atletas são todos profissionais, ainda que em início de carreira. Não é preciso treinar na igreja e nem ser ligado à Renascer para participar do evento, que vale registro no Sherdog, o banco de dados que é referência no MMA. O pagamento costuma ser em ingressos para os próprios torneios, de acordo com o nível do atleta.

Quem mais se destacou até hoje nos treinos da Renascer é um alagoano radicado em São Paulo, de 29 anos. José Alexandre, ou Zé Reborn, como é conhecido, foi convidado à equipe depois que um vizinho testemunhou o dia em que ele nocauteou um colega com apenas um soco durante uma brincadeira.

Hoje, cinco anos depois, o peso-mosca ostenta um cartel de 21 vitórias em 31 lutas profissionais.

“Comecei a treinar na igreja, mas ficava naquela: ‘Caramba, treinar um esporte violento na igreja’. Mas quando a pessoa conhece não é nada daquilo que se pensa. Pessoas de fora criticam e acabam se entregando, aceitando, se reconciliando com Deus e tudo mais”, afirma.

A família, também evangélica, resistiu à novidade no começo. A mulher ficava ressabiada e irmãos diziam: “Sai disso, volta para a igreja”, ao que Zé respondia: “Mas eu estou na igreja, mano!”.

Saudado pelo público e pelo narrador como grande atração da noite — ainda que sua luta não fosse a principal —, Zé Reborn demonstrou no octógono a concentração que exibia ao receber, ainda no vestiário, a benção do pastor Giraia.

Disparou um chute de direita que fez o adversário segurar-lhe a perna, mas permaneceu calmo após ser lançado ao chão. Levantou-se e levou a luta ao solo novamente, invertendo a guarda. Buscou uma finalização até encaixar a guilhotina que encerrou o combate aos 4’27” do primeiro round.

Só então abriu um sorriso e gritou. Escalou as grades do octógono, sob abraços de Giraia. Ao receber o prêmio pela vitória, foi carregado nos ombros e posou para fotos com o pastor e o apóstolo Hernandes.

Apesar da celebração, o lutador ainda não consegue viver de seus socos e chutes. Pai de três crianças, trabalha como auxiliar de limpeza de condomínio por pouco menos de dois salários mínimos e treina à noite, até três vezes por semana.

As bolsas por luta variam de R$ 800 a R$ 2.000, mas ele diz já ter atuado em troca de ingressos e até de graça para melhorar o currículo. “As pessoas falam sobre sair do emprego e me dedicar apenas aos treinos. Viver só de luta é um sonho, claro. Mas como faço se sair do trabalho? Tenhos filhos”, questiona.

Apesar de saber que um eventual patrocínio poderia ajudá-lo a se dedicar ao MMA em tempo integral — aproximando-o do objetivo de lutar com atletas de ponta e até fora do país —, ele não demonstra ansiedade e diz que a parte financeira não é prioridade. “É uma honra lutar pela igreja. Não é sobre dinheiro. É conversão.”

 

Ismael dos Anjos

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