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APOROFOBIA, O DESPREZO PELO POBRE

Aporofobia

É quase impossível hoje definir exatamente o que é ser pobre, exceto talvez pelo estigma que esse termo assumiu num universo de classe média.

Pode parecer chocante, mas os habitantes da classe média se afastaram da pobreza como se fosse de uma chaga.

Ainda no meu tempo de jovem, havia na pobreza uma dignidade resoluta daqueles que ocupavam um lugar repleto de alternativas. A casa simples era cercada de nichos de plantas diversas, os cômodos acomodavam a todos com aperto e generosidade, as tarefas incluíam criatividade na feitura dos brinquedos e dos sabores.

Era um tempo em que um pai pobre podia nutrir família com parcimônia e com seu próprio labor. Um tempo de artífices, em que a zona de conflitos ficava distante da pobreza.

Ainda era um mundo prioritariamente rural e as distinções eram pouco evidentes. Não existiam supermercados e o armazém de secos e molhados era frequentado por todos em suas trocas, pacíficas ou não. O escambo ainda era um modo de vida viável e as roupas eram rudes de verdade. Com um pedaço de pano, uma agulha e linha, uma mãe cerzia a roupa dos filhos até que o tempo não lhe desse mais jeito.

O remendo também fazia parte dos dias, dos biscates, dos amores.

O pai dos pobres era o líder maior da nação em sua transição. Getúlio Vargas usava, como seus eleitores, terno de linho branco. Sapatos engraxados por engraxates que zanzavam pelo centro urbano que começaria a fervilhar quando Juscelino trouxe os primeiros eletrodomésticos, os primeiros automóveis mais velozes do que charretes. Começava o desenvolvimento e a quebra do envolvimento seria seu primeiro efeito, mas não o único.

A substituição do escambo pelo consumo é uma zona limítrofe, pois o humano passa rapidamente a se identificar com o objeto e as relações se tornam excessivamente desiguais. E ter coisas define uma pessoa como uma cicatriz.

No campo como na cidade, o trabalho assume uma ligação direta com o consumo e aqueles que trabalhavam para muitas relações, passam a produzir para consumir e consumir passa a ser sinônimo de exibir. E distinção que era sinônimo de distinto passa a significar separação. Se antes ser distinto era parte da dignidade de cada um, na separação começa a ser sinônimo de superioridade social.

O que era sinal de orgulho, honra e satisfação pela própria capacidade de realização e pelo valor de si próprio e dos demais, passa a ser sinal de preconceito. O artífice sai de cena e agora é a vez do empregado. Logo será do colaborador.

Se o artífice ocupa o espaço da cidade em diversas ocasiões, roçando um terreno, como pedreiro na construção de uma casa, como carregador de peso ou como estafeta, o empregado ocupa um lugar na organização, ainda que miúda, em escalas verticais. O colaborador, por sua vez, já se assemelha ao patrão e faz seu papel como um mimético.

Essa transição será verificada no transcurso da soberania da classe média, que também se imagina superior, justamente por ser a falha no degrau do alpinismo social.

Sua falta de identidade servirá a muitos enganos e talvez o pior deles seja o preconceito. Todos que forem admitidos em seu reino de fugacidade serão acompanhados pelo preconceito. E o preconceito não mais os abandonará.

Dada a importância do preconceito como material de acesso ao nível das distinções, precisamos apontar sua natureza e sua satisfação. Se a distinção deixa de ser sinal de honra e passa a ser sinal de ascensão, os sinais assimétricos de natureza biológica também serão sinônimos de redução: raça, gênero, sexualidade ocuparão o lugar privilegiado desses preconceitos.

Os sinais de preconceito serão gestados no coração de todos, calmamente, como uma questão natural. As famílias se afastarão de suas raízes em busca de silêncio e cuidado e vão alimentando as gerações de um tipo de aceitação conivente, também silenciosa e obsequiosa.

Passarão pelos vales que outrora estavam verdes e que agora inspiravam apenas os desertos desumanos, passarão pelos picos áridos das escaladas de dívidas sem fim em busca de outras distinções, terão o poder e sentirão a satisfação desse poder como um ácido e como uma droga reveladora.

A tecnologia será uma porta de acesso e uma zona de distinção e sentirão o prazer de estupefaciência comunicativa, serão inundados de produtos plásticos e os desertos de areia quente se transformação em bólidos biomecânicos.

A educação será democratizada para que possam julgar seus antepassados pela ignorância e não pela valentia.

Da mesma forma que a geladeira tornava menos criativa a conservação de alimentos, os veículos tornavam preguiçosos os pés e os telefones distanciavam as pessoas.

A privacidade assumia um lugar de mistérios e exibicionismos e consumia os sonhos com altímetros barulhentos. Já não era possível identificar-se com a simplicidade da pobreza, pois ali só parecia existir degradação e vergonha.

A pobreza, forma ancestral de viver que havia durado dez mil anos e que só fora menosprezada pela ascensão do capitalismo, agora era identificada com fracasso, ócio e vadiagem.

Todos os atributos que auxiliaram os seres na jornada pela terra de modo colaborativo e cuja virtude residia justamente na sinergia entre todos os seres, rapidamente declinou diante de um artifício cujo nome é riqueza. E a ideologia tornou a riqueza natural no interior da evolução darwinista, pois parecia que o mais apto prevalecia sobre a solidariedade.

De repente, com a ascensão do capitalismo, havia ricos na Bíblia, na Grécia clássica, ricos em Roma, ricos na idade média e os ricos pareciam ter surgido da natural cobiça humana. Ninguém parecia perceber que a insistente parola de sua naturalização servia para que todos aceitassem sua existência sem resistência ou pudor.

Cortados os vínculos com a pobreza, também cortavam os vínculos com o passado e com os antepassados. Entravam na classe média imunizados com os cheiros diversos de suas linhagens e buscavam perfumes artificiais a contaminar os ambientes. Tudo era reavaliado e desfigurado em nome da isonomia dos aspectos.

O layout era presumível. Calças apertadinhas nas canelas, celulares nos bolsos de trás, sapatos de tênis, cabelos aparados em barbearias de moda.

Para as mulheres, as mesmas similaridades que acontecia no interior dos celulares, como indicativos de pertencimento que ocultava tudo que seria digno de autonomia e em que cada bit e cada algoritmo clamava por resignação em simulacros.

Só seria possível existir dentro do aparelho carregado no bolso do saiote.

As pressões sociais amplificaram a autovigilância a níveis intoleráveis e as doenças foram se acumulando e somatizando seus aspectos mais perversos, pois operavam no interior da psique.

A separação se completava exatamente no momento do ingresso pleno do ex pobre no coração mesmo da classe média e que o fazia sentir que havia vencido no mundo do consumo.

Agora tinha as distinções e objetos que só os privilegiados haviam ostentado por longos anos e os exibia como troféus desleixados, polindo de vez em quando a superfície brilhante que outrora tanto havia causado inveja e penúria.

Os alimentos, os suprimentos, os vestuários, os emissores de sinais, tudo se transformara em falsas considerações, em imagens contorcidas de realidades, em manifestações de desejos sem fim nem cabimento. E tudo foi se consolidando em colaboração com seus captores que exibiam as mesmas distinções, os mesmos desejos, ligados aos mesmos altímetros de distinções.

Mas o sentimento, ah, esse era tão simples, tão claro que não precisava se ocultar: todos tinha um grande desprezo dos pobres, agora sinalizados como os mais inferiores entre os inferiores, aqueles que haviam sido expurgados da existência por serem considerados absolutamente desumanos.

Haviam perdido a memória da autonomia, da consideração, da compaixão, das generosas doses de humanidade que só entre os pobres é possível, das formas colaborativas que habitam entre eles, pois todos vivem das mesmas ignorâncias sobre o futuro, sobre o ego, sobre a ambição, pois entre os pobres não existem ilusões, sabedores que são dos destinos de sua peculiar humanidade, de seu círculo de presença e da vida no presente de Deus.

Mas de fato, aqueles que desprezam a pobreza não são os ricos ou as velhas classes médias. Estes utilizam os pobres na medida de suas necessidades. Nutrem verdadeira estima aos pobres que os servem.

Por vezes os incorporam às famílias, como empregadas domésticas ou babas, ou jardineiros, que dizem de tanto tempo de convivência são considerados como tal, desde que não extrapolem seu lugar social.

Os que desprezam os pobres são aqueles que saíram da pobreza rumo à classe média. Para os novos ingressantes na classe média, o jeito de emular os ricos é ter desprezo pelos pobres. Estes modificam até a memória e só se recordam do sofrimento que passaram enquanto eram pobres.

E a pobreza então se torna um estigma que precisa ser esfregado até sangrar para ser erradicada como um tempo de vilipêndio e horror. E quanto mais sobem na escala média de seu status, mais horror nutrem pelos que ainda habitam a margem e que agora são identificados como os que não se esforçam.

Então, querem dar aos filhos o que não tiveram, esquecidos que o que tiveram fora humanidade e a foram perdendo enquanto se transformavam em objetos.

Essa espécie bovarismo que acomete aqueles que se julgam ascendentes no miolo classemediano e pra recordar, em termos psicológicos, o bovarismo consiste em uma alteração do sentido da realidade, na qual uma pessoa possui uma deturpada autoimagem, na qual se considera outra, que não é.

Não se enganem, são os que ascenderam à classe média pelos caminhos do endividamento os cultivadores aporofóbicos, com um horror tão contagioso que por vezes chega até os antigos proprietários de homens, que sempre haviam visto em suas peças vivas encantos prosaicos.

A elite cultural e financeira é hipócrita o suficiente para nutrir sentimentos vagos de humanidade.

Os novos ricos, por sua vez, estão tão contaminamos com suas novas memórias que preferem o exílio do que já foram ao confronto gentil de seus velhos hábitos de solidariedade.

Os velhos poderes ainda estão solidamente fincados na tradição e nas estruturas estáveis da dominação. São os empoderamentos que surgiram com o alargamento da classe média que precisaram inventar uma desculpa esfarrapada para justificar seu egoísmo e nutrir seu preconceito, alimentando de horror o seu passado.

Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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