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Artur Azevedo e a formação da dramaturgia brasileira

Formação

“Geralmente se diz e se repete ser a dramaturgia a parte mais enfezada da literatura brasileira (…) Nosso valor, por este lado, não tem sido tão insignificante como sempre se disse e continua a dizer (Sílvio Romero, na História da literatura brasileira, vol. V, Págs. 1805/6).

Defendendo-se da acusação de ter contribuído para a destruição do bom gosto no teatro brasileiro, escreve Artur Azevedo em 1904: “Eu, por mim, francamente o confesso, prefiro uma paródia bem feita e engraçada a todos os dramalhões pantafaçudos e mal escritos, em que se castiga o vício e premia a virtude”.

Se olharmos a frase com rigor de moralista, veremos aí a desfaçada assinatura da capitulação à busca do sucesso na bilheteria.

Porém se a olharmos também com rigor, mas desta vez com aquele de um crítico formalista, veremos, na frase, a fina percepção de que uma obra de arte é feita de acordo com convenções, e que um critério estético de valor deve se apoiar unicamente no modo como elas foram reaproveitadas, renovadas ou ironizadas pela obra em apreço.

A questão que anima este ensaio, no entanto, é ligeiramente outra, ou paralela a estes dois olhares que têm lá, cada um, suas razões; qual seja, a de retomando livremente termos trabalhados por Antonio Candido em sua Formação da literatura brasileira – momentos decisivos procurar discernir qual o valor e qual a função desta assertiva de Artur Azevedo no contexto em que ele a lançou, e em relação à sua própria obra, e o valor e a função desta.

Quer ele, portanto (o ensaio) livrar-se de uma disfarçada esquizofrenia que investe o crítico histórico do nosso teatro e de sua dramaturgia diante das vicissitudes de ambos. De um lado, lamenta-se pelo “atraso” do teatro diante de outros gêneros artísticos; de outro, critica-lhe, mas reconhece-lhe o valor, ainda que a contragosto e de cara fechada, por se ter afeiçoado ao gosto do público, ou mesmo de ter afeiçoado este a um certo gosto.

Só que nem o gosto, nem a dramaturgia, nem o teatro eram exatamente aqueles que a intelectualidade almejava. Daí nascem, por vezes, julgamentos severos, que valem como vaticínios, pois além de criarem esteiras de impossibilidades para o passado, também o fazem em relação ao futuro, porque onde aquele não existe este periclita: o teatro brasileiro não existe, o teatro ou a dramaturgia nacionais não se formaram como aconteceu nas outras artes, ou ainda o de que a sociedade brasileira era canhestra demais para permitir que florescesse entre nós um teatro sério com os temas do tempo.

Floresceu a comédia, e assim mesmo a de costumes e sua descendência, porque a realista, séria e sentenciosa, acabou rejeitada pelo público, assolado e devastado que foi seu gosto pela “mágica aparatosa” do século XIX, pelo cancã, pela licenciosidade e pela libidinagem mal contidas pelos órgãos censórios.

O vaticínio de Machado

Aquele primeiro vaticínio, o de que o teatro no Brasil não existia, é o de Machado de Assis, e foi exarado em seu artigo “Notícia da atual literatura brasileira”, depois rebatizado como “Instinto de nacionalidade”, nome com que ficou célebre e ajudou também a tornar célebre o seu autor.

A gravidade da sentença era maior porque exarada diante da exuberância dos outros gêneros literários, ainda que vista, a exuberância, com um certo olho crítico.

A frase de Machado, no artigo publicado em Nova York em 1873, é sintomática: “Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade.

Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país e não há negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro”.

Na época a dramaturgia ainda era pensada como parte inalienável dos gêneros literários, e pensava-se o teatro a partir da encenação de um texto.

Machado nem precisava escrever mais sobre o teatro; como bom contista, ele revela ao mesmo tempo em que oculta tudo na primeira frase ou no primeiro parágrafo. Lá está o indício para o bom leitor de contos policiais: depois de falar na poesia e no romance, o teatro e a dramaturgia se perdem naquele genérico “todas as formas literárias do pensamento”…

E o que Machado vai ditar mais adiante é que no teatro brasileiro coevo não sobrevive pensamento. Diz que ele (o teatro) pode se resumir “a uma linha de reticência”. No passado ainda se admitiam peças nacionais, embora a cena vivesse mais de traduções. Mas hoje, em compensação, “ (…) o gosto do público tocou o último grau da decadência e perversão”.

Isso, diz ele, desespera qualquer artista da pena que queira arrostar essa fortaleza de mau gosto, com “obras severas de arte”. “Quem lhas receberia”, prossegue o crítico, “se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?”.

Artur Azevedo vai de certo modo ecoar essa observação de Machado em seus escritos no futuro, quando defendia sua atividade como dramaturgo e de “rei nacional” do exuberante teatro musicado.

Aquela frase que acima consta, sobre ser uma boa paródia melhor do que um dramalhão mal escrito, é de artigo em que o autor das mais celebradas revistas de ano do século XIX se defende da pecha de ter sido ele o corruptor do gosto teatral da época, junto com Jacinto Heller.

A acusação, publicada no Jornal do Comércio de Belém do Pará, é de Cardoso da Mota, que fora ator no Rio de Janeiro, segundo Azevedo.

Além de acusar os dois, autor e empresário da peça e espetáculo A filha de Maria Angu, paródia da opereta de Charles Lecocq (libreto de três autores), La fille deMme. Angot, Cardoso da Mota levanta contra Azevedo a pecha de incongruência e hipocrisia, pois, diz ele, depois de aquinhoar-se bem com o teatro depravado, “ (…) bate-se hoje como um leão pela moralidade do teatro, que foi o primeiro a violar. É atualmente o maior, senão o único e sincero paladino do teatro-escola”.

Para se defender das acusações, ressoando aquelas frases de Machado, mas sem encampar-lhe necessariamente o ponto de vista, Artur Azevedo alega que quando chegara ao Rio de Janeiro o mal já estava feito; ele simplesmente seguiu a esteira de navegações alheias.

E vai mais longe, dizendo que tentar o teatro sério só lhe rendeu dissabores, censuras e injustiças; “ (…) ao passo que, enveredando pela bambochata, não me faltaram nunca elogios, festas, aplausos e provento”.

Ou seja: Azevedo levanta o argumento de que, se o público é de mau gosto, a crítica também o é. E pede desculpas por citar a renda como argumento, mas diz: “(…) que diabo! Ela é essencial para um pai de família que vive de sua pena!…”, dobrando-se mais uma vez às necessidades da bilheteria, mas elogiando a arte enquanto trabalho, e isso em país em que ainda se viam negros, e quase só negros, carregando os grandes vasos de barro com os dejetos e excrementos das casas ricas ou pobres, familiares ou de tolerância, lembrança da escravidão abolida há menos de vinte anos.

O vaticínio de José Veríssimo
Examinemos agora o terceiro vaticínio, antes do segundo, e o leitor logo compreenderá a razão. Diz ele que a sociedade brasileira era canhestra demais ou complexa de menos para inspirar os dramas mais sérios e profundos do tempo.

Seu autor mais sofisticado foi José Veríssimo, e ele consta de sua História da literatura brasileira, publicada em 1916, doze anos depois do artigo de Artur Azevedo e oito depois de sua morte.

Discordando da severidade de Machado, Veríssimo assinala que, “dentro de suas imperfeições”, o teatro brasileiro apresenta certa vitalidade, e isso se deve ao fato de que, somando-se a sua tendência para a imitação do teatro francês, junta-se “um íntimo sentimento do meio”.

Assinala ainda, aí concordando o criador de Lição de Botânica, que isso fora coisa do passado, levada de roldão “pelo estrangeirismo logo depois triunfante”.

Faz o elogio de Pena, que considera um verdadeiro fundador dentro do nosso pobre teatro, nesse ponto ecoando mais as observações positivas de Sílvio Romero sobre o autor de O noviço do que as dos outros críticos, como as do próprio Machado.

Estes outros sempre elogiavam as suas habilidades mas lamentavam não ter ele se dedicado a gênero mais nobre ou não ter tido tempo para “amadurecer” devido a sua morte precoce.

Diz Veríssimo que graças às peças de Pena a dramaturgia e o teatro brasileiros tiveram um modelo para tornar a comédia verossímil, garantindo-lhe “boa observação” e “representação exata”.

Mas, observa, no drama sucede o contrário: “(…) tudo isto falta ao drama brasileiro, que ofende sempre o nosso sentido de verossimilhança”.

Há nesta observação de Veríssimo uma injustiça ao Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias; mas desculpemo-lo, pois, que se saiba, o drama do autor maranhense ainda não fora à cena, embora fosse naquela época quase septuagenário.

Veríssimo tenta ir mais fundo nos porquês desta inadequação quase congênita do drama brasileiro: “A nossa sociedade, quer a que se tem por superior, quer a média, não tem senão uma sociabilidade ainda incoerente e canhestra, de relações e interdependências rudimentares e limitadas.

Poucos e apagados são por ora os conflitos de interesses e paixões que servem de tema ao drama moderno (…)”.

A observação de Veríssimo, severa e interessante, tem também uma implicação não desprezível sobre o que seja então o que pode interessar a esse “drama moderno”.

Estamos nas proximidades ainda de convulsões de monta na sociedade brasileira: ressoam ainda os canhoneios e as conseqüências da Revolta da Chibata; alevantam-se os camponeses do Contestado, no planalto de Santa Catarina; a leitura nacional ainda se refaz do impacto de Os sertões, evocando e apostrofando a Guerra de Canudos.

Quase recém se desenrolara a tragédia pessoal de Euclides, morrendo o autor daquele livro em duelo inglório e estúpido com o rival amoroso.

Em 1911 Lima Barreto começava a publicação de Triste fim de Policarpo Quaresma, evocando a década de sangue e violência que se seguiu à Proclamação da República e a situação pungente do pobrerio e das classes médias não abastadas da Capital Federal.

Mas tudo isso não faz parte do campo do “drama moderno”, cujo terreno são a sociedade “superior” e a “média”, onde o que medrava mesmo, se posso tomar os termos de empréstimo, eram a bambochata dos acordos de conveniência na economia, a farsa na política e a comédia de costumes, ou a tragicomédia, na vida social.

Lá em 1904 Artur Azevedo já desenhara, a seu modo, esse caiporismo às avessas, porque do público e de seus arautos na crítica, que se julgavam todos os primeiros do Brasil porque habitantes da inigualável  Capital Federal. Ressalta isso ao denunciar que um crítico considerara sua peça O retrato a óleo um verdadeiro “insulto” à família brasileira.

Aponta ainda que tivera uma outra peça, um drama em parceria com Urbano Duarte, proibido pelo Conservatório Dramático. Para concluir, cita que para poder levar ao palco Jóia teve de desistir dos seus direitos autorais!

É diante desse quadro que Azevedo faz o elogio de Heller, que decidiu levar ao palco, e ganhou a concorrência, A Filha de Maria Angu. Para ele Heller, como empresário (e isso numa terra em que o empresariado incipiente era afeito aos favores dos paços e dos gabinetes), era um trabalhador do teatro e pelo teatro.

Quis, diz ele, “obedecer a um pensamento de arte”. Valorizou o repertório nacional, e as peças “modernas”, como quereria Veríssimo anos mais tarde. O que ganhou?

“O público fugiu, e fez-lhe ver claramente que desejava a paródia, a opereta, a mágica, o riso, a gargalhada. Ele fez a vontade do público. É um aventureiro?

Não; os aventureiros acabam ricos”. Heller acabou pobre; sintoma, para Azevedo, da tacanhice material e espiritual que cercava o teatro brasileiro.

Essa leitura do artigo de Azevedo mostra que a alegada tacanhice do meio, ressaltada por Veríssimo, e que ao longo do século XIX teria sido motivo, em diferentes graus da precariedade da prática das artes no Brasil, deve ser complementada pelo reconhecimento da tacanhice e da precariedade específicas das condições materiais e espirituais que cercavam a vida intelectual e artística no Brasil.

Quero dizer, dramas talvez não faltassem, nem mesmo tragédias; mas rareavam os espíritos para percebê-los e os meios para divulgá-los, ainda mais em país de classes dirigentes e de muita gente letrada sempre movida por um “espírito litorâneo”, parodiando o dizer de Antonio Candido em Brigada Ligeira.

E em matéria de artes e vida intelectual, qualquer um que vá além da vulgarização do marxismo sabe, espírito é infra-estrutura e não super-estrutura, é força produtiva e não produto.

Às dificuldades do meio Artur Azevedo opõe duas coisas. Em primeiro lugar, sua erudição. Faz no artigo breve escorço da excelência do gênero “paródia”, de seu reconhecimento na França, citando Scarron, Meilhac e Halévy, e argumenta que Mme.

Angot foi considerada uma “obra-prima da opereta francesa” (embora estreasse em Bruxelas…). Ou seja, procura mostrar que não padece da estreiteza provinciana que caracteriza o meio. Por outro lado aponta ao final, como n’OMambembe, que a solução urgente para alguns de nossos males é a construção de um Teatro Municipal que dê estabilidade a companhias de escol.

Quer dizer, contrariando ainda que de modo timorato os princípios do liberalismo econômico, mas eivado de favores, vigentes no Brasil de então, prega pelo menos através de um símbolo a necessidade de uma política pública para o teatro brasileiro, que dê base para a cena e para a dramaturgia nacionais.

O segundo vaticínio
Vamos agora ao segundo vaticínio, o de que o teatro e a dramaturgia brasileira não completaram uma “formação”, ao contrário do que se deu nas outras artes, sobretudo naquelas da poesia e do romance.

Deixei-o para o terceiro lugar por ser seu tiro de mais longo alcance. Passando em julgado na severa crítica de Machado, o vaticínio não teve recurso pleno que o contrariasse até nossos dias, ainda que vários advogados de valor tenham apresentado argumentos que o contestam.

Entre ações e reações, Machado situa na literatura brasileira o que se pode chamar de a “formação de uma tradição”, e a consciência dela, o que é mais importante, pois sem isso o sentido da formação não se completa. Sim, só que isto aconteceu no romance, na poesia lírica e na crítica; no teatro, não.

Em termos de teatro e dramaturgia houve solução de continuidade. Houve a aparição inicial de alguns talentos dignos de louvor, onde não falta, mesmo que a contragosto, o elogio ao Pena.

Depois dos balbucios do teatro romântico, chegou a vez da robusta geração realista, com Alencar, Bocaiúva, Pinheiro Guimarães e seus ousados projetos de reforma da cena e da dramaturgia nacionais, na direção de emprestar-lhe sisudez e senso de responsabilidade, ajudando a formar o gosto e o público.

Mas… “(…) nada disso foi adiante. Os autores cedo se enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos hoje, que é nada”.

Não é por acaso que o artigo de Machado foi escolhido por Antonio Candido para encerrar seu livro Formação da literatura brasileira – momentos decisivos.

Nessa obra chave da crítica brasileira, Antonio Candido aponta os parâmetros da formação de nossa literatura, isto é, a descreve, tendo por base os séculos XVIII e XIX, como projeto e como processo, como desejo e como realização, não como algo que simplesmente se fez quase por acaso (assim como o achamento…) desde que o primeiro português letrado viu a terra e tomou da pena para dar notícia ao rei.

A literatura adquire foro de um atestado de maturidade espiritual, enquanto sistema que congrega num anelo espiritual, não despido de tensões, autores, obras e público (que inclui a crítica).

Pode ela ser precária, remediada perto de outras opulentas, chinfrim ou brilhante; mas não há outra que exprima o anel de saber que delimita e ao mesmo tempo liberta a imaginação autônoma de um povo, ainda que nunca de todo separada da tradição do Ocidente, e também de outras, no nosso caso.

No último capítulo da obra, dedicado à consciência crítica, assinala Candido primeiro a sabedoria de Alencar, que define em suas classificações românticas, através da literatura, os momentos principais de nossa formação social (a vida do primitivo, a Colônia e a sociedade contemporânea [de então], dividida em espaço rural e vida urbana).

Mas logo a seguir cita o “Instinto de Nacionalidade” como retomada e superação do ponto de vista de Alencar, mostrando que o grão de sal ou de fermento que torna o escritor nacional é… “(…) certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.[xiii]

Fazer esta outra Independência, “que não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga”, assinala Machado e ressalta Candido, é trabalho de gerações. Diz então o autor da Formação, encerrando o livro, e mais importante ainda, dando por completo o processo e realizado o projeto, e por alcançado o desejo e cumprida a missão:

“Estas palavras [de Machado] exprimem o ponto de maturidade da crítica romântica; a consciência real que o Romantismo adquiriu do seu significado histórico. Elas são adequadas, portanto, para encerrar este livro, onde se procurou justamente descrever o processo por meio do qual os brasileiros tomaram consciência da sua existência espiritual e social através da literatura, combinando de modo vário os valores universais com a realidade local e, desta maneira, ganhando o direito de exprimir o seu sonho, a sua dor, o seu júbilo, a sua modesta visão das coisas  e do semelhante”.

Foi de tudo isso que o teatro ficou de fora. Ficou de fora por causa dos juízos exarados naquele passado em que a formação literária, artística e espiritual da nação se completava. Mas ficou de fora também depois, quando se formou, de modo mais sistemático, o espírito da crítica nacional.

O casamento desfeito
Nas palavras de Machado pode-se ler um atestado de casamento seguido de divórcio.

Houve um noivado promissor entre autores e público, a que se seguiu futuroso casamento, tendo por Igreja o palco. Mas depois veio o divórcio litigioso, pois o público, nubente infiel e folgazão, foi se divertir no café concerto; a noiva (os autores casmurros e despeitados) voltou-lhe as costas, e o padrinho (a crítica séria) também.

Mas…  como já disse, a situação perdurou. O teatro no Brasil, e a dramaturgia brasileira também, passaram a viver quase que num mundo à parte, distante dos espaços sérios onde se pensava e se repensava a nação e sua formação e reformação contínuas; no teatro, aparentemente, só se pensava a sua pândega, ou o seu provincianismo.

Passou-se o novo veredicto de que o teatro e a dramaturgia, em que pesem as exceções, só se aviventaram de fato, isto é, tornaram-se coisa séria e contemporânea de seus inspiradores europeus, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, com a chegada aos portos nacionais, aos trambolhões para variar, das tendências de vanguarda e do teatro de direção.

O símbolo disso tudo foi a célebre encenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, dirigida por Ziembinski, em 1943 no Rio de Janeiro.

Curiosa circunstância de critério e rigor acadêmicos acalentou este sentimento de penúria do teatro e da dramaturgia em relação a sua família literária vista, senão como opulenta, como mais remediada, e seguramente nouveau riche depois da geração de 45, com Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, entre outros.

Na Formação da literatura brasileira, de 1959, o teatro está ausente, e de modo justificado, nunca é demais lembrar. Esta obra do professor Antonio Candido já foi injustamente acusada de ter seqüestrado o barroco, tratando apenas da Arcádia e do Romantismo[xv]. Esta acusação é injusta porque anacrônica.

A obra de Candido descreve o processo formativo de uma literatura nacional enquanto projeto de expressão de um “estar coletivo no mundo”. Isto para um autor de antes do Iluminismo é grego, ou melhor, não é grego nem latim, é incompreensível; nem sabe ele o que é literatura, em termos modernos, nem o que seja “literatura nacional”, na nossa acepção, ainda mais na América.

Primeiro formou-se um sentimento nacional na literatura, na passagem do século XVIII para o XIX. O barroco foi incorporado depois à nossa literatura nacional, assim como o Teatro de Anchieta, por exemplo.

Mas no caso do teatro consumou-se um seqüestro, ainda que involuntário, nem culposo, muito menos doloso. Antonio Candido, pertencente à geração da revista Clima, era daqueles que procuravam caminhar do espírito de generalistas que animara a vida intelectual brasileira até então (os anos 40) para o espírito de especialistas, que animaria a geração universitária posterior, a da revista Paralelos.

Nesta ótica o teatro era para especialista, ou seja, o colega e amigo Décio de Almeida Prado e outros do ramo. Além disso, sem o teatro, a Formação já é uma obra de fôlego; com ele, seria de tirar o fôlego, tanto do autor como do leitor.

De qualquer modo aconteceu que o teatro e a dramaturgia ficaram sem a “sua” Formação. Tiveram, é certo, obras de notável valor que dele e dela se ocuparam; Décio de Almeida Prado escreveu uma “evolução”, por exemplo, depois escreveu uma “apresentação”, e mais recentemente, pouco antes de sua morte, deu à cena editorial até mesmo uma História concisa do teatro brasileiro.

Sábato Magaldi publicou seu pioneiro Panorama em 1962; Galante de Sousa deu à cena o seu O teatro no Brasil, e antes e depois destes publicaram-se “Histórias do teatro brasileiro” de valor, como a recente de Cafezeiro[xvi], além dos muitos estudos sobre autores, gêneros, grupos e períodos.

Mas a palavra mágica – Formação – não veio à cena, ficou no bastidor, ou mesmo fora da casa. Se alguma vez chegou ao palco, foi no máximo como coadjuvante; nem virou estrela, nem ficou em cartaz.

Talvez devesse mesmo ser assim: o teatro e a dramaturgia são cada vez mais, e desde o advento das vanguardas do começo do século XX, modalidades artísticas que se interpenetram em sua criação.

Não se pode pensar no texto teatral, no século XX, senão a partir da consciência de que ele não é apenas um texto para a cena, mas um elemento mesmo da cena, embora mantenha a possibilidade de ser fruído em leitura fora dela.

É difícil portanto falar em processos formativos numa modalidade artística que se reforma quase que a cada reapresentação.

Temos a consciência de que uma peça, com um elenco hoje, não será exatamente a mesma com outro amanhã.

Mas tudo isso, essa sensação de júbilo que fala da vitalidade de uma arte feita de e para a presença física do ator e do público, não elimina a sensação de dor de que o teatro e a dramaturgia eram e continuaram sendo olhados, ainda que disfarçadamente, como os primos pobres, os barrados no baile das artes que ajudaram a fundar a nação.

Considerações finais: eppur si muove!
Há algo de profunda injustiça nesse sentimento. Primeiro porque, respeitando-se sem dúvida o escrúpulo acadêmico de Antonio Candido na sua obra, forçoso é reconhecer que para os intelectuais brasileiros do século XIX o processo e o projeto de formação de uma literatura nacional incluíam o teatro, era inseparável dele, e não se compreendia sem ele.

O teatro seria o braço armado da intelectualidade, o formador do gosto, o professor das multidões.

Eles assim pensaram, assim agiram, e assim criticaram. Só por esta concepção se pode compreender o verdadeiro amuo de Machado, e também o despeito de Alencar quando o público, seguido de Nabuco, lhe rejeita O jesuíta, em 1875, embora seja forçoso reconhecer que o drama, naquela época, já fosse temporão, e mesmo na de sua criação, em 1861, já fosse epigonal, distante do rigor de Mãe, por exemplo.

Até os albores do século XX a arte dramática permanecia solidamente ancorada na literária, e através da dramaturgia era mesmo parte integrante e inalienável dela.

A segunda razão pela qual o sentimento de “minoridade” é injusto é porque, apesar dos vaticínios contrários, formou-se sim no teatro a transmissão de um legado, é claro que carregado de tensões, e também a consciência de seu papel.

Ocorre que esse legado não foi aquele que a nossa intelectualidade almejava. Mas não é por isso que se pode nega-lo. José Veríssimo mesmo reconheceu que na comédia éramos mais felizes, e tínhamos modelo fundador. E tivemos linhagem que não pode ser contestada.

Nossa comédia, com base nos textos de Pena, Macedo, Alencar, França Júnior e outros, construiu um legado de visão sobre a sociedade nacional e sobre a arte teatral em seu conjunto, através da imitação criativa direta de outros autores, mas também através da paródia, como gênero ou como traço de estilo, que estão entre as boas realizações teatrais em sentido universal.

Isto é, essa tradição não cumpre apenas uma função local, qual seja, a de permitir que o público se identifique, ainda que canhestramente, no palco.

Ela conforma o legado de um valor estético, cria um estilo teatral, mobiliza uma dramaturgia para si, e inclusive, no século XX, desborda para outros campos de atuação, influenciando o rádio, o cinema, a televisão, e a própria literatura (pensemos no conto “Pirlimpsiquice”, de Guimarães Rosa, em Primeiras estórias).

Quer dizer, nossa tradição da comédia de costumes ajudou sim a formar o público teatral, não aquele dos sonhos dos intelectuais, é verdade, mas um público que assistiu à transmissão de um legado do século XIX para o XX, e de que se valeram Coelho Neto, Gastão Tojeiro, Abadie Faria Rosa e tantos mais, e que alguns, como Joracy Camargo, Álvaro Moreyra, Oduvaldo Viana, Ernani Fornari e outros tentaram renovar.

E o grande operador da transformação do impasse em legado foi justamente Artur Azevedo. Os papéis se inverteram. Ele, agora investido do papel de marido bonachão (o autor que tudo perdoa), foi buscar a noiva folgazã (o público) que se divertia com as imitações dos franceses para traze-la de volta ao lar da cena nacional.

Impediu assim que a galhofeira se desmiolasse de todo nas féeries que lhe aportavam d’além-mar. Baseado na tradição da comédia de costumes, e até mesmo naquela que ele praticou quando tentou criar comédias mais sofisticadas, conseguiu nacionalizar o teatro musicado.

Reinou mesmo sobre ele junto ao público, através do teatro de revista, que recriava as formas daquele, emprestando-lhe mesmo as plumas de uma certa crítica social, ainda que leve, diante da cena nacional. E criou ainda essas duas súmulas de nosso teatro de então e do século XIX que são A Capital Federal e O mambembe.

Atestando a consciência de seu papel, escrevera ele em artigo anterior ao de 1904, defendendo sua revista dos acontecimentos de 1897, O jagunço (o artigo é de 1898): “A par de cenas de revista, encontram-se ali cenas também de comédia, um pouco de observação e sátira de costumes, alguma preocupação literária e, em todo caso, um esforço louvável para que os espectadores educados não saiam do teatro arrependidos de lá ter ido”.

Façamos o pano cair sobre esta frase. Bem avaliada, ela dá conta de que quando deixou definitivamente a cena em 1908, depois mesmo de ver o fim do gênero em que reinara, a revista de ano, Artur Azevedo cumprira sua missão, com as dores e o júbilo que desde sempre estão nas máscaras da vida teatral.

O teatro brasileiro tinha uma função na sociedade brasileira e um valor, ou um conjunto de valores estéticos, como legado para as novas gerações.

Flávio Aguiar é escritor, professor aposentado de literatura brasileira na USP e autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).

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