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Dois ensaios do poeta português E. M. de Melo e Castro, com comentários do crítico literário Flavio Aguiar

ENSAIOS DE POETA PORTUGUÊS

Prosseguimos nossa homenagem a E. M. de Melo e Castro, poeta português nos últimos anos radicado no Brasil, ensaísta, professor, um verdadeiro factótum da palavra, apresentando dois de seus muitos ensaios críticos. O par escolhido revela a polaridade permanente de duas das múltiplas faces da escrita criativa.

No primeiro, “A aventura da Construção”, E. M. de Melo e Castro expõe toda a sua consideração do processo de construção de poemas. Sair das normas – esta parece-nos ser sua preocupação central. Não se trata apenas de sair por sair. Trata-se de instaurar “um novo mundo humano e extremo”.

Trata-se, pois, de recuperar o fazer humano de sua alienação cotidiana nas formas consagradas de uma espécie de negação do ser, de desistência da busca da liberdade inventiva.

Para ele este gesto (tomamos aqui a expressão no seu sentido brechtiano) instaura uma poesia “amarga”, porque consciente da abertura mas também dos limites deste labor.

O poeta navega então como equilibrista no fio da navalha, entre “matéria e anti-matéria”, “criação e anti-criação”, sorvido por este verdadeiro “buraco-negro” que é a aventura da criação, sem saber o que o espera do outro lado. Parafraseando o ponto de vista do crítico e professor canadense Northrop Frye, não é o poeta que descobre e descerra o poema; este, latente na linguagem, é que o descobre e o sorve para dentro de si.

O poeta se transforma, assim, num Ulisses sem Ítaca a que retorne. A aventura o chama para sempre, como no Inferno de Dante a aventura chama para si o guerreiro grego e seus companheiros de viagem.

No segundo ensaio, “A leitura do livro impossível (antes de 25 de abril de 1974)”, o poeta se lança na reflexão sobre a criação literária e as circunstancias históricas. Quais eram nossas fronteiras antes do 25 de abril?

Em torno de que programas se debatia a escrita em Portugal, premida entre uma opressão que não cria e uma busca de liberdade que não se instaura?

As perguntas de E. M. de Melo e Castro repercutem intensamente neste nosso Brasil de hoje, em que, de certo modo, o 25 de abril de 1974 nos aparece como um difuso sonho de recuperação da dignidade de nossa polis, continuamente pisoteada pela malta de velhacos e falsários que se adonou das veredas das palavras, transformando aquelas em vielas aparentemente inexpugnáveis da mentira institucionalizada como a única verdade possível.

Ambos os ensaios se encontram no volume “O fim visual do século XX”, antologia organizada pela professora Nádia Batella Gotlib para a Edusp, publicada em 1993, com apresentação dela.

A Aventura da Construção
Não procuremos uma definição de poesia: sejam antes os atos e objetos da poesia que no-la revelem.

Atos e objetos da poesia, que são os poemas. Atos em que o homem se projeta para fora de si, construindo-os e encontrando-se. Porque é no despertar de nós próprios que a poesia se cria.

Porque a construção do objeto belo, na sua lenta e dolorosa procura, é a própria poesia e o seu método criador.

Isto é, a deliberação da procura da beleza é o caminho e a garantia da autenticidade humana, visto que só o homem, que em beleza se realiza e para o qual a vida inclui necessariamente o fenômeno estético, pode ter a estrutura suficiente para suportar dignamente a responsabilidade dos seus livres atos.

O belo assume o valor ético e simultaneamente técnico, indispensável e universal, cuja maestria é apenas apreensível por um lento e doloroso trabalho de descoberta subjetiva.

A beleza é participação do homem indivíduo na inter determinação do sistema expansivo e aberto que é a obra de arte. Desse modo, o que até agora se tem chamado “comunicação” não é mais que uma consequência da força centrífuga inerente ao objeto poema ou quadro, e que o projeta para além  de si próprio, de encontro ao leitor ou espectador.

Esse leitor ou espectador é que poderá captar ou não essa força centrífuga, tendo, por si e para si, uma percepção específica do poema ou do quadro.

A obra de arte possui também uma força centrípeta que atrai o espectador, transformando-o em participante.

Se a força centrífuga é uma força de “choques” que atinge o sujeito, a força centrípeta é uma força de fascinação que o atrai para a obra de arte, mas, sem ambos os casos, de fato, o leitor ou espectador não comunica com o autor da obra de arte, mas apenas consigo próprio, nela. Ou, mais exatamente ainda, ele reage ao complexo das percepções que lhe são possíveis.

“Poesia loucura da forma”. Por loucura entende-se, não o estado patológico, mas sim o ultrapassar do senso e da razão lógica e discursiva.

é o delírio da forma. Por delírio entende-se, sim, o limite último da compreensão e da incompreensão, da apreensão e da repulsa dos fatos e das situações, e dos valores por eles criados. Parmênides e Heráclito não foram filósofos, mas sim poetas, segundo a concepção helênica, por lhes faltar a sistematização e a inteligência da nostalgia que vai do ser ao ente, se usarmos terminologia de Heidegger. Filosofia não é só essa inteligência, mas também a sua expressão e a descoberta do ser no ente.

Ora, o caminho da poesia atual, ou seja, do futuro, é descobrir o ente no ser, é dar vida ao ser, fazer dele uma forma de vida, uma essência, uma loucura, um delírio da linguagem até ao seu próprio exceder e destruir.

Só da destruição do ser e da forma pode nascer, respectivamente, a essência e a poesia. Heráclito e Parmênides são poetas à maneira pré-filosófica. São poetas sincréticos e primitivos, sendo a poesia nas suas mãos de funções religiosas, morais, épicas, dramáticas, políticas, referenciações que mais tarde serão chamadas filosóficas.

Poesia não pode ser o regresso a essa condição. Poesia hoje só pode ser o ultrapassar da forma por si própria, a loucura da filosofia, o delírio da razão: ente nascido do ser, magmas brotando das pedras duras, secas, frias. Assim, a matéria é, em si própria, a razão.

É a poesia nascida da forma-razão pelas suas próprias potencialidades e limites; é a poesia excessiva de si própria, para lá das funções estéticas, mas só através dessas mesmas funções pode ser uma amarga aproximação concreta.

A poesia, um esforço de construção vocabular no nível do material, coloca o ente perante a realidade absorvente do não-ser; isto é, um poema é um objeto contraditório da sua própria substância, lançando-se perigosamente entre o abissal do ente e o abismal do não-ser.

Um poema e a sua própria matéria: duas fases de um só objeto, forças contraditórias da mesma matéria, o esforço dinâmico da construção.

Duas fases da mesma matéria, isto é, a matéria e a antimatéria de um mesmo cosmos, de uma mesma dinâmica sobrevivente. Sobrevivente, isto é, o que vive “sobre” ou o que vive em si e para além.

Dessa amarga poesia direi apenas umas tantas luzes que não se explicam. Direi: “hoje fui ver a lama do tempo”; “trago de lá as mãos cheias de coisas vazias”; “espanto-me de ainda estar ainda aqui a escrever, sem poder dizer nada do que realmente escrevo” “hoje não sou eu, mas um monstro cheio de coisas que esqueceu”.

E assim por diante. O processo poético sempre foi um verdadeiro processo de construção: construção do ente perante o não-ser e ante os outros; construção também de si próprio, pelo espanto de ver o não construído tomar forma e realidade com a secular certeza de não poder ser de outro modo.

Daí a necessidade terrível de acabar com tudo o que no processo poético seja ofuscação sistemática e não seja absolutamente necessário e vital. Da descrição, passou-se ao poema-objeto; da adjetivação total, gerou-se a guerra aos adjetivos; as imagens tomaram volume; as metáforas cindiram-se em si próprias até uma nova realidade; os paralelismos perpendicularizaram-se; e as qualidades das coisas substantivaram-se, para que nós as pudéssemos palpar; os verbos agiram.

Um novo mundo humano e extremo cria-se pelas nossas mãos, nos nossos olhos e tem o corpo colado ao nosso. Uma exigência de nós próprios perante todos os outros seres e todas as coisas realiza-se pelo conhecimento que ficou dos adjetivos, das imagens, das metáforas, dos paralelismos, dos substantivos, dos verbos que nos furam os cinco sentidos – indeterminadas correspondências sugestivas.

Desta amarga e tensa poesia, não direi a expressão esgotante do ser, como era o objetivo dos expressionistas alemães[iv].

Direi, antes, a construção extrema do ente colocado num mundo de materiais externos, abolindo a dicotomia interno-externo. E não direi da expressão, porque na realidade ela nada de útil consegue dizer ou trazer ao homem (o sentimento ou o ideal) e a si própria.

Porque os meios dessa expressão, embora tensos, rigorosos e depurados, são apenas representações e equivalências. É que há uma barreira entre o ente e a sua expressão, entre o sentimento e a beleza que lhe corresponde como origem ou como resultado, entre o ideal dos homens e a sua concretização comunicável.

Daí provém uma visão dos homens e do mundo fragmentada e desentendida em atomização instável, em equilíbrio forçado, rodeada obsessivamente de fatos, de palavras, de outros homens, num contínuo esforço entre um encontro mútuo sempre um pouco mais além (na verdade, impossível) e uma terrível libertação da energia contida em si própria, que corresponderia à total destruição como espécie (também certamente impossível).

Impossível e por isso mesmo obrigatoriamente tentável e dolorosa, quer num sentido, quer noutro. Isto leva a uma objetivação formal e a uma pressão direta sobre o poder alusivo das palavras, até esvaziá-las totalmente, para assim reforça-las potencialmente como coisas autônomas, talvez mesmo vivas.

E neste ponto vêm as palavras novas, reforçadas apenas de si próprias, propor a realidade poética com uma força que lhes é contrária e por isso mesmo vital. E neste ponto surge um polo objeto da realidade poética: a antipoesia.

As palavras vazias de si próprias apenas podem existir num mundo sem palavras, e o nosso mundo sem palavras perde a coesão e a substância. A antipoesia só pode ser, portanto, construtora de seres e de mundos.

Mas o antimundo que seria então construído seria semelhante ao nosso, na relação entre os antiobjetos e os anti-seres, e estes seriam constituídos por antimatéria.

É, pois, necessário um alargamento de dimensões, de perspectivas e de possibilidades interpretativas, para que a nossa própria percepção do universo não se estiole e se harmonize com as circunstâncias, as observações e as realidades que cada dia mais agudamente se nos impõem.

A matéria e a antimatéria, embora não possivelmente confrontáveis em realidade simultânea, podem, no entanto, criar perspectivas mentais e sensíveis em que um jogo “criação-anticriação” seja efetivamente significativo e de utilidade objetivável.

Jogo é possibilidade de interação, não-definida, num grau de probabilidade definível estatisticamente. Jogo é pois a possibilidade que tende para um todo em expansão. Jogo é, de outro lado, a materialização perceptível dessa totalidade instável.

A pressão das formas propõe-se-nos, assim, de um modo não unívoco, uma polarização em forma e antiforma, mesmo de matéria e antimatéria, não possivelmente coincidentes, mas propondo uma abertura e uma fluidez das suas próprias dimensões desagregadas numa estrutura energética.

A possibilidade de uma antiforma, ou mesmo antiintuição, cujas propriedades se podem por enquanto avaliar pelas propriedades da forma e da intuição, propõe-nos uma possível antipressão e antiarte, inescapavelmente provável.

Concebemos a abertura do espaço, a estrutura descontínua da matéria, o universo expansionista, o interseccionismo dos planos de percepção, a aceleração das partículas, até à sua possível desintegração.

Está nos limites da nossa ideação do universo, da matéria e da percepção um antiato criador válido em si próprio, mas assumindo o papel de desfixador de estruturas, ativador da dissociação energética, equacionador de expansões para fora dos limites mesmo das atuais possibilidades intelectivas.

Os monismos racionalistas ficam então na pré-história da estruturação mental e formal do intelecto humano[vi]. Toda a nossa experiência física e mental se nos propõe em termos de expansão, abertura, polidimensão, criação, anticriação, poesia, antipoesia.

Num nível de sensação imediata mesmo, não podemos fugir também à estrutura múltipla e aberta de percepção fenomenológica, mas é impossível estabelecer ligações diretas entre sensação e percepção. Esta é a via da ativação no universo e da compreensão amplificadora ilimitada.

Poesia, antipoesia – os recursos serão equivalentes. Imagens, metáforas, palavras, sílabas, sujeitos a uma tensão polifacetada, mas exatamente estruturada na expansão progressiva das suas próprias formas.

Desse modo a duplicidade das imagens poéticas multiplica-se indefinidamente num espaço em expansão, ao mesmo tempo que a imagem se tensiona e clarifica em si própria, focando-se sobre si própria, partícula ativa da matéria poética.

As metáforas propagam-se em multiplicidade de significações simultâneas. A criação repercute-se em níveis simultâneos da realidade significativa. As palavras carregam-se de possibilidades significativas.

As sílabas estruturam-se em unidades sonoras, de intensidade e vibração antimusical. Todo o problema da escrita da prosa e da escrita da poesia é ultrapassado, na medida apenas do fator criação-anticriação presente no texto.

O modo do poema, verso ou prosa etc., tem apenas valor em si próprio, isto é, apenas vale como uma outra via de objetivação do poema. Porque só o ritmo (vibração) – lembremo-nos da teoria quântica – será a estrutura da vida e da poesia. Restará a prosa-prosaica para as afirmações unívocas e lógicas da linearidade inteligível.

Sobra toda uma criação assíntota de si própria. São exemplos dessa “criação-anticriação” as experiências em espaço aberto, a arte abstrata[vii], os objetos caleidoscópicos, toda a evolução da ciência nuclear e espacial, desde Einstein e Bohr, a mecânica quântica e uma certa literatura que chega com James Joyce[viii] e Kafka, e que entre nós começa a impor-se através da poesia, na desarticulação da sintaxe tradicional, das imagens e das metáforas não-fixas, das adjetivações sucessivas substantivadas, da tensão com que as palavras se sobrecarregam e das sílabas que se desintegram dos verbos que atuam, dos adjetivos e dos advérbios que a si próprios se sobrepõem num espaço cada vez mais aberto de relações possíveis.

Se a tentativa de expressão total do ser se esgota na impossibilidade de sair de si própria e totalmente comunicar – como ficou tragicamente demonstrado pelo elevado número de suicídios entre os poetas expressionistas alemães; se a incompreensão recíproca não pode de modo algum ser uma base para a fraternidade, o entendimento e a felicidade, então deixemos de apoiar o nosso sistema de relações, na expressão, na comunicação, na compreensão, como o têm feito as estéticas aristotélicas.

Façamos antes um mundo de construções possíveis onde os homens – cada homem – se identifiquem e se relacionem pelo que constroem, com as suas mãos, com o seu ser.

A aventura da construção, o jogo da realização do ente e a sua abertura no espaço de intermináveis relações possíveis, de incontáveis pontos de encontro objetivos no que belamente realizamos e construímos para nós próprios e para os outros.

E cada homem na sua célula de energia e vibração, preso no seu momento de vida, abre-se inteiro, para lá das sombras da expressão frustrada durante séculos, libertando-se na construção real e interminável de si – construção dolorosa em que a Beleza é a oferta e a via de vitalidade universal.

Ainda não será um livro. Ainda não será uma leitura. Mas que poderá ser? – eis a pergunta central a que se chega neste ofício de criativamente criar, de criticamente criticar, de teoricamente teorizar.

De letras, fonemas e palavras se faz a nossa escrita sobre o papel. De noções, ideias e critérios se jogam as posições entre nós e os outros.

Nós próprios. Mas que diz o papel? Mas quem sabe o que somos?

Que ideologia nos poderá projetar na história?

Que divididos nos achamos fragmentados?

Que fragmentados em nossa própria experiência vivencial nos identificamos com quem?

Desde a exiguidade do espaço até à dificuldade da expressão-audição, nada propicia uma criatividade exercida e vivida. Utopia que sabemos talvez única forma ideologicamente admissível.

E por isso mesmo escreve-se e cria-se. E assim mesmo prossegue-se o que é impossível de prosseguir: ou seja, uma atividade produtora de livros impossíveis. Uma atividade renovadora da própria impossibilidade: aquilo mesmo a que desde o começo do século se chama “vanguarda”.

Mas se é em termos de classes que a história e a ideologia se jogam, a criação é em termos de linguagem e comunicação que se constrói, devendo ser nas características dessa linguagem que devemos procurar as marcas de classe e a codificação das suas posições e conflitos.

As recentes extensões das noções estruturais de “linguagem” e de “texto” às ciências sociais e políticas e até à psicologia talvez contribuam para o encontrar de uma razão para o texto poético, demonstrando a sua universalidade e ao mesmo tempo reformulando a relação ideologia-criatividade em termos de uma indissolúvel necessidade de relação dialética.

Assim posto o problema, será algum dia possível esboçar (sequer) uma “história” da ideologia-criatividade em Portugal?

E a noção de história não conterá ela própria as sementes da sua inadequação e impossibilidade, aqui mesmo entre nós medularmente fragmentados, desde a medula até os simples gestos e aspirações?

E que poderemos entender por história, se a fragmentação é anterior à existência de uma coesão de conceitos e princípios, e se do “ainda não” temos dificuldade em saber passar para o “já”?

É assim que desde a geração de 70 (1870) só um intento utópico textual nos guia, quando de realismo, de futurismo, de paulismo, de neo-realismo, de surrealismo, de experimentalismo nos ocupamos, construindo a(s) nossa(s) impossibilidade(s) em forma de livro(s), ou seja, escrevendo criadoramente o livro impossível que a(s) ideologia(s) e a história não nos sabem dar.

Fragmentos, limitação, ambiguidade, impossibilidade, utopia são para nós talvez as raízes epistemológicas de um realismo nosso, com as coerentes consequências no nível da escrita (se é da escrita que aqui nos ocupamos), da estética da escrita, da função da escrita, do poder da escrita.

Se o neo-realismo foi de fato uma procura do ajuste da “literatura” às realidades nacionais, foi através dos particularismos regionais dessa nacionalidade que tentou alcançar um padrão geral de entendimento dos nossos problemas.

Ora, a falha do neo-realismo provém de nunca ter superado esse mergulho analítico-regionalista, não sabendo como, em termos portugueses (apesar das suas raízes no realismo de 70), escrever o homem e para o homem.

Na falta de capacidade de síntese, que permitiria uma extrapolação universal das obras (mesmo na ordem da escrita), se cifra o malogro do neo-realismo português.

Diremos até que esse malogro só aumenta a ambiguidade, a impossibilidade, a fragmentação, a dispersão, que, de dados vivenciais, se transformam contra si próprios em características do discurso criativo das gerações que a seguir poeticamente intentaram criar o seu espaço e “escrever um livro”, sem, talvez por isso, o conseguirem.

Haveria, pois, que quebrar o círculo.

Assim, o internacionalismo da poesia experimental e concreta deve ser visto em dois planos: o do país e o supranacional.

Um dos parâmetros estruturais da poesia experimental da década de 60 é que só em termos internacionais era viável, e só nesses termos se definiu em todo o mundo, desde o Brasil à Tchecoslováquia, desde a Inglaterra ao Japão, aos Estados Unidos, à Itália, às duas Alemanhas, à Iugoslávia etc.

A participação portuguesa nesse movimento subterrâneo fez-se evidentemente à contracorrente do neo-realismo, porque justamente a poesia experimental se faz de pesquisa-síntese e de valores não-regionalistas mas universais de homem para homem, através de um radicalismo formal e de um visualismo semântico: ou seja, de uma codificação conceitual.

Como, com esses valores universais, nós, portugueses, continuamos a escrever o mesmo livro impossível é já um problema de situação histórica.

Dessa mesma história que também é impossível de escrever ou que só utopicamente é viável, já que ainda em 1960 o problema era: como sobreviver (criativamente) num contexto em que as várias formas do real se escapam entre os dedos, ou se impossibilitam ou negam a si próprias num espaço fechado e, por seu lado, as várias possibilidades de ordem são inadmissíveis ou inexistentes?

E ainda: como sobreviver onde a ordem estabelecida para base do real se funda em idealismos irracionais e a ordem nova a estabelecer se reveste da incapacidade de fundamentar e instaurar uma realidade real, por não conseguir reconhecer-se nas circunstâncias e encontrar a sua via própria de instauração?

Entre o idealismo desmaterializante dominando a matéria (à direita) e o real desrealizado (à esquerda), que caminhos seriam possíveis em 1960? – o(s) corte(s) de vanguarda(s), perigosamente desenfeudado(s) de uma e outra tentações, mais dialeticamente definido(s) em relação a ambos os lados.

Corte que, pela sua própria especificidade, é ímpar e instável. Projeto que no abismo uma vez mais se fragmenta.

E assim se viveu e criou até 25 de Abril de 1974, perguntando, quando muito: Que escrita somos nós?

*Flávio Aguiar, escritor e crítico literário, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de O teatro de inspiração romântica (Senac);

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