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JOÃO CABRAL /Antonio Brasileiro

“A teoria da literatura sempre me impressionou mais do que a literatura propriamente dita.”
João Cabral de Melo Neto

A criação – ou melhor, a confecção, a lapidação: construção, como preferia ele ― exigia bisturi. Lápis bisturis. Poesia, coisa de cirurgião. A lâmina que opera, coisa admirável. Mas é nos pintores que a mão cirurgiã de Cabral toca mais límpida. Mondrian já vem de outro poema – Escritos com o corpo –, quando “o olho é tacto” e “certa insuspeitada energia” se pode ver nos mondrians vistos ao vivo. É curiosa esta observação de Cabral da insuspeitada energia de um mondrian não das reproduções fotográficas (que é como a maioria das vezes se vê este artista), mas da tela viva. Só o olho sensível e experiente consegue perceber a vida por baixo da película das tintas de um quadro tão “frio” como os de Mondrian. Agora, em O sim conta o sim, Mondrian é tratado pelo ângulo das ideias. Enxerta réguas e esquadros à mão já sábia (e, por sábia, tentada pelo fácil, a facilidade, esta facilidade que Cabral desprezava) “para obrigar a mão / a abandonar todo improviso”.

Outro pintor evocado é Juan Gris. A este atribui uma lente de alcance. Lente avião, a sobrevoar o ateliê, a pintar a própria mesa de trabalho.

foi Miró quem lhe caiu no gosto. Conheceu-o pessoalmente, ilustrou livros com seus desenhos, escreveu um pequeno ensaio sobre o célebre catalão. Temendo não estar mais comandando sua mão direita, já sábia, Miró troca de braço. Cabral escreve: A esquerda (se não é canhoto) / é mão sem habilidade; /reaprende a cada linha, / cada instante, a recomeçar-se.

Reaprender. Mais que reaprender: desconfiar do que já sabe. (O fácil – evocaríamos Drummond, num poema antológico: Isso é aquilo – é o fóssil.) Cabral, em verdade, foge mesmo da poesia, a poesia em si, a com palavras. Admira Valéry, a grande influência de sua vida depois de Le Corbusier, “mas o Valéry não como poeta: a poesia dele é uma coisa muito perfumada.” O que o marcara em Valéry fora “o pensador, o que não acreditava na espontaneidade”. Aquela espontaneidade que era conscientemente posta de lado pelos cubistas – estes, também, tão admirados por Cabral, Le Corbusier à frente de todos. Em vários momentos – e não só do jovem poeta, mas também do homem maduro – Cabral declina sua dívida ao arquiteto. “Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência que teve Le Corbusier.” Lucidez, claridade, construtivismo – foi isto o que ele significou. Palavras escolhidas a dedo. “Em resumo: o predomínio da inteligência sobre o instinto.” Le Corbusier, o artista do são, do construído, não do espontâneo, do mórbido.

Alinhamos observações de Cabral, mas as escolhemos para evitar muito cedo os (inevitáveis) choques. No nosso modo de ver, suas invectivas não se sustentam por muito tempo; a emoção de sua tessitura depõe contra toda “lucidez”. O humor cabralino, diferentemente do de seu mestre Valéry, é impaciente e cáustico. Sobre a inspiração, um dos seus bodes expiatórios (assim como em Valéry), dizia que ela “tem raiva do apuramento formal.” (…) Sua fala podia ser (e muitas vezes era) seca: “Inspiração não tenho nunca”. Entre os dois tipos de poetas (em sua esdrúxula tipologia, agora já chamados de os inspirados e os esforçados), colocava-se jactanciosamente entre os segundos. “Arte é construção (…) Um poeta, um romancista, é um artista como um sujeito que faz sapatos.” Os exemplos deste mal humor cabralino estão disseminados ao longo de várias entrevistas. Dir-se-ia uma maneira própria de expressão. Uma linguagem.

propósito, reconhece a existência de duas formas de linguagem, a matemática, que é racional, e a afetiva, que é da poesia e de outras formas de expressão, “para compensar o excesso de linguagem racional”. E (agora esquerzo humor) o exemplo: “Não se pode dizer a uma mulher que seu marido morreu como dois e dois são quatro.”

A poesia, refúgio da linguagem afetiva – eis o poeta, agora em sua melhor essência.

Há que se avaliar a estética cabralina levando-se em conta que parte dela nos foi legada por entrevistas. É sabido que Cabral escreveu pouco sobre suas ideias. Uma entrevista é feita sobretudo de emoções. Perde-se, portanto, algo pelo caminho. A crer em sua própria teoria, por espontâneo, o principal. O espontâneo “vem de cambulhada”, diria. Assim como, em respostas datadas de 1953 e 1989, escolhidas de propósito, para mostrar a constância no tempo, essas verdadeiras boutades: “O teatro é para mim a coisa mais cacete do mundo, e acho que o palco torna ridícula qualquer pessoa ou coisa.” – “Eu acho a rima o troço mais chato do mundo, e o decassílabo um negócio sinistro.”

Não é longo o tempo transcorrido entre a criação de Morte e vida Severina (1954/1955) e A educação pela pedra (1962/1965). Mas é Morte e vida severina o livro mais conhecido. Não só dos dois, mas de toda a obra do poeta. Cabral não gostava disso. Mas não tinha razão. Embora o sucesso deste livro viesse só cerca de dez anos após sua publicação (e já saídos outros, inclusive A educação pela pedra), não há por que inculpar o leitor brasileiro por sua preferência. Se há alguma culpa aqui, é do próprio poeta. Morte e vida severina é um poema mais nosso na forma. Há metro, há rima. Gostamos disso. É do nosso espírito (espírito preguiçoso, diria Cabral). O heptassílabo, nossa redondilha maior, que o compõe em grande parte, é um dos responsáveis pelo sucesso do poema. Cabral sabia disso. Não seriam, pois, o monótono francês octossílabo, ou os elegantes e difíceis hexassílabos e endeeassílabos, tão ao seu ao gosto, que iriam destronar nossos preferidos cantantes heptassílabos e decassílabos, “sinistros” que fossem esses últimos. A educação pela pedra é um livro cansado. Um poema como “Tecendo a manhã” – Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos – só se sustenta por sua “mensagem”. Não se exige conhecimento de poesia para amá-lo. Assim como “Catar feijão”, onde o sentido ocupa o todo, inclusive o espaço específico – e fundamental – da própria arte. E se cito esses dois poemas, é porque há uma linhagem crítica no país que gosta de citá-los. (Sobre “Catar feijão”, a propósito, disse tê-lo escrito justamente para não ser algo poético: “Não gosto da poesia que fala de coisas já poéticas.”)

Compreendemos a desconfiança de Cabral ante o fácil; já registramos seu asco à espontaneidade. Mas daí a escolher, conscientemente, o caminho canhestro, vai o risco. É certo que Valéry o convenceu “de que, para criar algo, é necessário um esforço”. É verdade que seu credo reconhecia que “meu esforço não é escrever harmonioso, não é escrever bonito, é escrever claro”; e que “há uma obrigação moral do poeta ser ‘claro’ no poema.” O que não se deve é esperar que todo mundo concorde com isso. Ademais, há que isentar, aqui, Valéry de parte dessa culpa. Em depoimento de 1978, ao delimitar a influência do escritor francês, afirmando que a leitura de Valéry lhe oferecera outra opção – qual seja a de permitir “a realização do que já tramava” –, Cabral concluía que, “de resto, tenho profundas discordância com a poética de Valéry, com seu hermetismo.”

O “hermetismo” de Valéry: o grifo é nosso. Não por não admiti-lo; afinal, é uma palavra ancha. Cremos porém poder associar tal atribuição a uma certa visão materialista que Cabral tinha do inconsciente. “Para mim (ele pensava) o inconsciente não tem nada de metafísico. Ele faz parte do ser humano, como qualquer outra parte do corpo, como um braço ou uma perna. Noutras palavras, eu tenho uma visão materialista do inconsciente.” Um modo de dizer não dizendo? Em outro momento confessou: “O mundo interior, para mim, é fonte de tormento, acho uma chatice.”

Hermetismo, clareza, esforço – algo em Cabral é incongruência. Mais vida, dir-se-ia, que razão. Miró, que lhe merecera ensaios, poemas e lembranças, era, segundo ele, “um instintivo; um sujeito inteiramente incapaz de teoria”. Cabral queria ser um teórico, como confessara. Um crítico. Ou, antes, um engenheiro, um arquiteto. Alguém que traça planos. (Ao modo, diríamos por nosso turno, de Voltaire, quando este explicava – em seu Dicionário filosófico – como o raciocínio poderia comandar o entusiasmo: “É como um cavalo de corrida que se lança impetuosamente para a meta: mas a pista foi traçada regularmente.”)
A incongruência que, linhas acima, lhe atribuímos, passa por esse vai-e-vem das opiniões, onde admiração e repulsa quase se irmanam. Falando sobre Gaudí, o arquiteto da Sagrada Família, em Barcelona, disse: “É a antiarquitetura.” Explicava: “Gaudi não tinha planos. Pouca coisa ele desenhava e previa. Ia improvisando no local e na hora.” Ora, argumentava Cabral, a arquitetura é o contrário disso. “Na arquitetura você começa a fazer depois que os detalhes estão todos planejados. Gaudí fazia arquitetura como o poeta romântico escreve.”

Aqui há pelo menos dois tópicos a observar. O primeiro, essa ideia simplória da antecedência (racional) do plano sobre o resultado. No comentário ao método de Gaudí (não estamos falando do valor da obra desse arquiteto), nega-se sua arquitetura por não obedecer a regras da própria arquitetura. Que regras são essas (não há que “construir” – e os poetas são por excelência construtivos! – sua própria estrada?), Cabral deixa na sombra.

O outro tópico é o que circunscreve a última frase do texto: Gaudí fazia a arquitetura como o poeta romântico escreve. Cabral, julgamos, se atropela. Sua ojeriza aos românticos – “Nós nunca nos livramos do Romantismo. A maior desgraça que aconteceu para a humanidade talvez tenha sido o romantismo”.– costuma vir de cambulhada com o pejo contra todo lirismo, essa “confissão lamurienta”: “Sou profundamente antilírico. – No tempo dos gregos, a poesia lírica era a poesia que se cantava, a poesia para ser acompanhada pela lira. Ou seja: era apenas uma partezinha muito pequena da poesia! Hoje, é tudo lírico.”

Entende mal, mas não faz mal. É também lírica, pelos mesmos motivos que ele condena, sua própria poesia. Não se vá, por outro lado, ficar tão apegado à etimologia – viva que é (e ele sabe disso) toda linguagem. Mas essa associação do lirismo ao romantismo a fizemos para içar a palavra expiatória: inspiração. O sem-sentido da crítica de Cabral à inspiração – “inspiração no sentido de escrever de um jato, como se o Espírito Santo baixasse de repente…” – é a caricatura de uma teoria sem adeptos, como disse Jean Hytier comentando passagem idêntica de Paul Valéry. Vale a pena transcrevê-la:

Como todos o fazem, Valéry atribui o papel principal à inspiração e, quando parece atacá-la, isto se deve ao fato de estar preso a uma tese descabida que faz do ditado por alguma potência misteriosa, externa ou interna, a totalidade da atividade poética, tese esta que não foi e não pode ser sustentada por ninguém. Isto é a caricatura de uma teoria sem adeptos; mesmo que muitos deles tivessem exagerado o misticismo da inspiração, sempre reservaram um lugar para as necessidades técnicas.”

Da produção madura de Cabral deve-se dar um destaque para “Agrestes” (1981-1985). Três ou quatro poemas deste livro – a rigor, de uma das seis partes do livro, a intitulada “Linguagens alheias”– refletem boa parte da estética cabralina, esta mistura de secura e irritabilidade com inteligência e mestria. Em O poeta Thomas Hardy fala, os dois primeiros dísticos são bem claros:

Não é por não ter o ouvido músico:
de jovem, fui flautista em meu burgo.
É por que quero que escrevo o verso
que a vosso ouvido soa de ferro.”
Aqui, a ojeriza ao fácil, que, mesmo com o risco de jogar fora água e criança, Cabral condenava com veemência. Em Diante de uma folha branca, homenageando (a seu modo) Van Gogh e Mallarmé, a responsabilidade de artista é o que transparece.
A folha branca é a tradução
mais aproximada do nada.
Por que romper essa pureza
com palavra não milpesada?

As folhas brancas não foram mais desafiantes para Cabral que para outros poetas, mas Cabral parecia temê-las com mais intensidade. Não para evitá-las, como já vimos, mas para aguçar-lhe as lupas. Algo desse desafio podemos encontrar num dos seus mais bem realizados poemas (de “Serial”): O ovo de galinha –
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.
Coisa repleta, o ovo; inversamente repleta (de possibilidades), a folha branca. Eis porque os liames dessas duas representações. A folha branca e virgem, / na mesa, e de todo ofertada”, versus o ovo fechado e a atitude “circunspecta, / quase beata, de quem tem / nas mãos a chama de uma vela. E, finalmente, em

O último poema (mas, provocadoramente, não o último dessa parte de “Agrestes”), uma canhestra alusão à inspiração poética: Não sei quem me manda a poesia / nem se Quem disso a chamaria. Aqui, a mesma lírica irada do antilírico: …peço: que meu último poema // mande-o ainda em poema perverso, / de antilira, feito em antiverso.

Incorrigível Cabral. O poeta do não-eu (do exterior, do outro) em sua nudez. Escrever é estar no extremo / de si mesmo (…) /nudez, a mais crua que há – escreveu (em Exceção: Bermanos, que se dizia escritor de sala de jantar).

Não há biografados, só autobiografias. Cabral e Valéry foram o que foram: era preciso dizer. Em um e outro, em prosa ou poesia, o acidental homem moderno. O artista moderno, melhor dizendo. Não o homem todo, pois, mesmo que inventado – e tardia invenção, como se disse –, não cremos venha a vingar.

Mas esse jeito próprio de ser, que aqui registramos como de se mostrar, tem seu espaço cativo. Não há engodo; nem camuflagens. Se os dois poetas dizem: abaixo a lira, viva o antiverso –, não ficarão a não ser pela prosa que expressou isto. Ou melhor: pela poesia dessa prosa, como dizia T.S. Eliot de Paul Valéry.

Embora, no caso de Cabral, a prosa de alguma poesia também seja enriquecedora. A exemplo do poema O artista inconfessável:
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e difícil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

É um poema de “Museu de tudo”, livro menor (1966-1974). O próprio poema não chega a ter qualidade literária. Mas o confessional, agora, justifica sua transcrição. A constatação da inutilidade do nosso fazer-aqui estendido ao nosso viver. O poeta tem sua opção (“mais vale o inútil fazer”), embora dolorida (fazê-lo embora sabendo que ele é inútil). Dolorida, mas nobre; tal procedimento (fazer o inútil) é mais difícil do que não fazer. Mas – e, enfim, círculo que se fecha – realmente inútil, pois para o leitor Ninguém.

Amuos, dirão. O poeta de cenho franzido. Que, no fundo, não é assim. O seu dizer ao leitor Ninguém / que o feito o foi para ninguém, não está longe, na verdade, do que dizem de uns cem anos para cá quase todos os poetas. Há uma real incomunicabilidade da poesia quando a queremos muitíssimo, muitíssimo mais universal.

O pessimismo cabralino não conhecia tréguas. Aos 76 anos ainda esbravejava contra as homenagens que lhe queriam fazer. “Está vendo aquele ali? É meu primo, Manuel Bandeira. Sabe de que ele morreu? De homenagem. Quando fez oitenta anos, foi tão homenageado que não saiu mais da cama. O próximo serei eu.” Queixou-se, então, da crítica desconhecer seu humor negro. E, citando uns versos de Morte e vida severina – Mais sorte tem o defunto / irmão das almas / pois já não fará na volta / a caminhada – explicava a origem deles:

Dizem que, na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: “Puxa, como faz frio neste lugar”. Ao que um dos soldados respondeu: “Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta”. Foi assim que essa frase foi parar no meio de Morte e vida severina. Há mais humor negro do que isso?

A rigor, não nos parece ser propriamente o humor negro o conceito em questão, mas a infelicidade. O que, queremos dizer, está mais à altura da grande poesia, do grande poeta que é Cabral. Em outro momento, ante a célebre frase de Theodor Adorno – “É impossível escrever poesia depois de Auschwitz” – ele retrucou: “Isto é uma boutade, porque o mundo não se detém e sempre foi violento. A poesia nasceu muito mais da infelicidade que da felicidade.” Um dos melhores poemas de Agrestes fala da morte. Ou melhor: do morrer.

Descreve este morrer. Escande-o. Acompanha-o, como a um cortejo mesmo, passo a passo. Como a morte se infiltra é bem um daqueles poemas que Cabral deve ter “pensado”, assim como ocorreu (quatro anos de trabalho) com Tecendo a manhã. Ou não: ele já o trazia na alma. Se alguns cuidados houve, deve ter sido tão só na escolha das palavras que melhor se adequassem à rima pretendida.

O que, frisemos, não é pouco. O polir das coisas, mesmo que só das formas – ou, sobretudo, das formas – está na raiz de uma estética como esta. Está ali, em O ovo de galinha:
O ovo revela o acabamento,
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

Um trabalho de toda a vida: eis um pouco o que foi João Cabral. Embora ele tenha dito (em 1976) que considerava sua obra acabada aos 45 anos. “Gostaria de ser considerado um autor póstumo”. Mais uma frase de efeito, bem vemos. Mas há aqui algo que não deve passar despercebido. Os 45 anos é a idade de Cabral ao publicar A educação pela pedra. Livro que nos pareceu cansado. Mas é a essa altura que o poeta situa o seu apogeu. Apogeu e queda. Dizia: “Não sinto mais em mim a energia que precisei usar para escrever o pouco que escrevi até então.” Não escrevera pouco nesse espaço de vinte anos, vale observar; e ainda escreveria boas coisas nos trinta e quatro que iriam até sua morte.

Mas este depoimento (resposta a uma pergunta de Rubem Braga) traz um dado importante para compreender melhor o “rigor” de Cabral, junto com sua estudada maneira de ser. Transcrevamos inicialmente o trecho inteiro:

Um problema sério para qualquer escritor é esse: no princípio, o escritor (e não só o escritor, qualquer artista) cria coisas que são o resultado de uma luta: de tensão entre o que quer dizer e a maneira de dizer. Depois de certa idade, o verdadeiro escritor estabelece (através das influências, da experiência dessa mesma luta) sua maneira. A partir daí tudo o que ele faz traz sua marca de fábrica e ele, que lutou tanto para chegar à sua marca de fábrica (digamos, com uma palavra meio desmoralizada: seu estilo), tem a tendência (humanamente compreensível) de deixar-se entregar à sua maneira. Essa fase que é a da pós-maturidade é para a maioria a mais fecunda. Mas para a minoria (para quem escrever ou criar é uma experiência extrema, que se passa no extremo do ser), esse domínio fácil do fazer, da própria maneira, torna-se insuficiente, decepcionante. Repetir-se o irrita porque parece puro automatismo, fácil, e renovar-se, isto é, continuar criando no antigo estado de tensão, de luta permanente, é difícil, por já não dispor da força psicológica, e até da saúde física, para continuar exercendo esse esforço criador de parto, isto é, de dor de luta.

O grifo do texto é nosso. Aí é que vai incidir nossa observação. Mas um pouco antes – “…tem a tendência (humanamente compreensível) de deixar-se…” – também destacaríamos esse “humanamente compreensível”. É a pós-maturidade de um escritor, para a maioria a fase mais fecunda de sua vida. Mas não para uma minoria – e agora entramos no nosso destaque. Para esses, o domínio do estilo é algo decepcionante. Não nos demoremos nessa “decepção”; é sobre o trecho entre parênteses que queremos falar: para quem escrever ou criar é uma experiência extrema, que se passa no extremo do ser.

Um surpreendente Cabral. A experiência extrema de criação, aqui elevada à eterna criação. Jamais a trégua. A criação não como prêmio, mas destino. Dor. Contrapondo-se à ideia nietzschiana do prazer na criação – “O artista tem maior prazer em criar que o resto dos homens em todos os tipos de atividade” (Humano demasiado humano) – Cabral atribuirá essa experiência extrema a uma espécie de condenação. Condenado a criar, é com pesar que constata o próprio destino conspirando contra ele, ao abater-lhe as forças físicas e psíquicas.

Há definição mais clara que esta para a função da poesia? Teríamos ainda alguma dúvida, a crer em Cabral, quanto à existência de poetas (uma maioria) e poetas (uma minoria)?

Ostinato rigore – rigor obstinado –, uma divisa de Leonardo da Vinci. Valéry a adotara e Cabral teria feito o mesmo, pois os dois escritores se tocam em muito mais que muitos pontos. Valéry falava em “floresta encantada da linguagem” (La forêt enchantée du Langage), um lugar onde as ninfas, que não existem, precisam ser perpetuadas (Ces nymphes, je les veux perpétuer), como escrevera lindamente seu mestre Mallarmé em L’après midi d’un faune.

Queria dizer, na verdade, que há uma parte no homem que só se sente realizada na criação (Il y a une partie en l’homme qui ne se sent vivre qu’en créant: j’invente, donc je suis. Como, então, purificar a literatura das emoções, rejeitar aquelas coisas reputadas poéticas – choses reputées poétiques?

Cabral dizia: “Você vê os gregos: o Pégaso, o cavalo que voa, é o símbolo da poesia. Nós deveríamos botar antes, como símbolo da poesia, a galinha ou o peru – que não voam.”

Invencionice, diríamos, de Cabral, admirador de Baudelaire. Neste, o albatroz: Ses ailes de géant l’empêchent de marcher; em Cabral, a galinha, o peru: “Para o poeta, o difícil é não voar, e o esforço que ele deve fazer é esse.” Compreendemos tal algaravia? Entre o albatroz e a galinha, haveríamos mesmo de optar por esta última, má avoante e chinfrim?

Leiamos Cabral nas entrelinhas. Indiretamente. Através, por exemplo, de Drummond, o autor brasileiro – como afirmara – a quem mais devia. “Mais de 50 poemas de Carlos Drummond” – ele teve o cuidado de registrar – “são sobre solidão e dificuldade de comunicação”. E prosseguia:

“Como eu o conheci, ele era um homem de comunicação pessoal difícil. Quanto mais longe, melhor ele se comunicava. Pessoalmente, ele falava pouco. Agora, pelo telefone, falava desbragadamente. Carlos Drummond era incapaz de dizer, pessoalmente, se ele estava com dor de cabeça ou não. No telefone ele já era capaz de dizer a você que estava com o pé machucado. Escrevendo, ele dizia a você o coração dele de que tamanho era.”

Antonio Brasileiro

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