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O Bocage de José Paulo Netto

Considerações sobre a antologia poética de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, organizada por José Paulo Netto

À primeira vista, uma antologia poética de Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), controvertido autor português do século XVIII, organizada e apresentada por José Paulo Netto, um dos principais intelectuais marxistas brasileiros, biógrafo de Karl Marx e crítico literário.

Mas Da Erótica: muito além do obsceno (Boitempo) subverte o enquadramento convencional do gênero. A apresentação de 42 páginas, a seleção criteriosa de poemas e sonetos e o rico acervo de notas (quase um livro dentro do livro) compõem um retrato de corpo inteiro do poeta libertino que escandalizou as hostes puritanas do conservadorismo.

O ensaio introdutório corresponde a um autêntico trabalho de engenharia narrativa.

A partir da exposição das contingências biográficas que acabaram por se refletir no processo de produção literária, José Paulo Netto põe em relevo as chaves de interpretação da obra bocagiana, associando-as a ideias e acontecimentos que haveriam de definir a sua complexa fisionomia intelectual e existencial.

A síntese argumentativa recusa os limites aprisionantes da pressa e do senso comum.

O que temos diante de nós, no percurso da leitura, é o essencial explicativo e analítico das etapas que delinearam a história de vida de Bocage, bem como das injunções sociopolíticas e culturais que, direta ou indiretamente, interferiram na escala de sua aventura criativa.

José Paulo Netto avalia, com extrema perícia, a conflituosa transição entre modos de produção e as implicações econômicas e sociais no século XVIII, em meio às disputas pelo poder em Portugal.

Também incorpora movimentos, gêneros e matizes culturais que, na sequência das épocas, confluem na construção da história literária portuguesa, situando o caso Bocage na linha de influência de Luís Vaz de Camões (1524-1580), o grande poeta da tradição ocidental, entre outras derivações e possibilidades de aproximação.

Sem fixar o quadro que envolveu as adversidades, os tormentos, a veia boêmia e as escolhas audaciosas de Bocage, seria impossível compreendermos o amálgama de inspiração, convicção, inconformismo e aberta transgressão presente em grande parte de sua obra, toda ela tensionada pelo “desconcerto do mundo”.

Em sentido análogo, ao aprofundar o exame do “solo histórico imediato” no qual transcorreu a jornada do poeta português, o texto do organizador faz sobressair, nas intensidades certas, as razões pelas quais a erótica de Bocage se projeta como “amostra privilegiada e mais expressiva concepção libertina possível” da última década do século XVIII em Portugal.

José Paulo Netto repele a “memória lendária”, as mistificações e as impugnações falseadas que ignoram as fronteiras entre o erótico, o pornográfico e o obsceno, na tentativa de desqualificar e deixar ao relento o legado bocagiano.

Ainda hoje, muitos classificam como “culto à pornografia” as cenas de desejo explosivo e de sexo explícito e as astúcias ilimitadas da sedução em seus versos.

Por mais que, aqui e ali, possamos problematizar desvios e excessos por parte de Bocage, cumpre reconhecer o elogio à liberdade do prazer e a ressignificação da dimensão do desejo em sociedades reféns das imposturas morais das classes dominantes.

A partir do título dado à antologia poética propriamente dita – “A caminho da sensualidade emancipada” –, José Paulo Netto aponta, como via para a superação da visão dualista e excludente de um Bocage “erótico” ou “pornográfico”, uma análise ampla de sua condição de homem de letras na contramão de valores estabelecidos e mentalidades retrógradas.

Uma análise que não se circunscreva aos atuais padrões de avaliação estética, aí incluída a linguagem “obscena” como item vendável no âmbito da mercantilização cultural, e contemple situações concretas em que Bocage se moveu.

No tempo do Santo Ofício, acentua ele, “ser libertino consistia em pensar livremente, conforme os princípios iluministas da razão e da natureza, enfrentando a coerção dos preconceitos e da tradição – e não mais que isso”.

Ao concluir esta breve nota, compartilho a hipótese de que, em determinados casos, a organização de um livro faz supor um exercício alquímico, norteado pelas sutilezas da sensibilidade, pela mescla de componentes singulares e pelo espírito íntegro do organizador (neste volume, realçado pelos belos projeto gráfico e capa de Maikon Nery).

Não são poucas as passagens de Da erótica nas quais esses elementos distintivos se entrelaçam, evidenciando – sobretudo num mundo resignado e reificado como o nosso – a validade das palavras febris de um eterno rebelde como Bocage, resgatado notavelmente por José Paulo Netto.

*Dênis de Moraes, jornalista e escritor, é professor aposentado do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Autor, entre outros livros, de Sartre e a imprensa (Mauad).

Referência

José Paulo Netto (org.). Bocage. Da erótica: muito além do obsceno. São Paulo, Boitempo, 2022, 272 págs. [https://amzn.to/3RsiqsQ]

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